quinta-feira, 11 de novembro de 2010

NADA MAIS DO QUE UMA CRIANÇA

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Há uns vinte anos, aproximadamente, era apenas um local ermo e que ninguém queria. Ali começava o morro, bem na divisa de duas áreas de terra e os lotes eram ruins, chão dobrado e com poucos atrativos. Os anos passaram e uma casa apareceu, depois outra e mais outra, até que um bairro de classe média alta se instalou na parte baixa. O morro também foi habitado, porém, por uma invasão, o que gerou certo receio nos vizinhos mais abastados. Então, como se resolvesse alguma coisa, os moradores da parte baixa construíram um muro imponente, pensando coibir qualquer atitude inesperada ou de “má intenção” da vizinhança de menor sorte.

Sempre observei os contrastes daqueles dois universos completamente díspares, e nunca aceitei muito bem essa situação. Não me refiro à condição de um ter mais dinheiro em relação ao outro, mas a forma de tratamento que esta condição traz. O bairro rico tem todo o atendimento necessário por parte das autoridades, seja ela de qualquer nível ou esfera, enquanto que a parte alta e mais pobre, sofre as mazelas de, muitas vezes, ficar relegada a própria sorte. Descaso governamental ou preconceito daqueles que têm melhores condições? Fazer relação ao fato de se tratar de uma invasão na parte alta, já não mais justifica tal abandono, pois com o tempo, a situação de cada morador foi regularizada. As benfeitorias e o atendimento público para os serviços essenciais até foram instalados no alto do morro, mas a manutenção dos mesmos, quando existe, leva muito tempo para ser considerada efetivada.

Transito, por motivos profissionais ou por ter amigos residentes, nesses dois mundos, e tenho a oportunidade de constatar as mais cruéis situações a que o ser humano pode passar com relação à ingerência na distribuição de renda em nosso país. É certo que, mesmo na parte pobre, existem moradores com um nível social que sequer combina com o lugar, e é difícil entender o porquê da permanência dessas pessoas naquele local. Talvez uma questão de costume, ou, quem sabe, o temor pela não adaptação ou aceitação em outros lugares.

Certa vez, fiquei observando um garoto, de uns doze anos de idade, parado no alto de uma escada, construída de forma improvisada no muro de divisa dos bairros. Ele estava numa plataforma que funcionava como um posto de vigilância, e tinha uma visão privilegiada de todo o bairro de baixo e, também, das duas únicas entradas do morro. O olhar desse menino se mantinha congelado na direção de uma cancha de esportes, localizada na parte baixa. Lá, várias crianças, de idades variadas, se divertiam jogando futebol ou experimentando seus novos brinquedos, que haviam recebido a poucos dias, no Natal. Reparei a feição entristecida daquele garoto, no alto do muro, e tentei imaginar o que passava em sua mente, naquela hora.

Recordei minha própria infância, de menino pobre, e da época de Páscoa. E foi terrível lembrar da segunda-feira, logo após o feriado, quando na escola os outros meninos vinham com todo aquele chocolate que ganhavam de seus familiares, e passavam por mim, num ato de ostentação involuntária. Talvez não existisse maldade naquela ação, mas, é uma coisa que ficou marcada até hoje em minha mente. Lembro que, na época, sempre me perguntava por que eles tinham tudo aquilo e eu me reservava a, unicamente, ficar olhando e passando vontade de provar um mínimo daquele doce. Hoje, adulto e numa situação financeira extremamente mais confortável, ainda não sei se consegui me livrar desse fantasma.

Quando tornei o olhar para aquele menino, notei que ele me encarava, e parecia questionar o mesmo que eu. Por que eles podiam estar lá, com todo aquele conforto, e ele não? Olhamo-nos por alguns instantes, e minha alma pareceu se revoltar, principalmente quando outros garotos, de idade maior, chegaram até ele e entregaram um pequeno pacote plástico, uma embalagem de leite. O menino recebeu aquilo e aguardou que os outros saíssem. Parecia não mais se importar com minha presença, e como se eu não estivesse ali, levou até a boca aquela embalagem plástica e aspirou algo, que não demorei a perceber que era cola de sapateiro. Logo em seguida, foi interrompido por mais duas pessoas, agora adultos. Ele desceu de onde estava, e sumiu com os dois para trás de alguns arbustos. Saí do local e fui para a casa de um amigo, e então, descobri que aquele menino estava naquele local para vigiar a chegada da polícia ou de pessoas estranhas ao lugar e que pudessem levar algum perigo para as ações de um pequeno grupo de tráfico que havia se instalado no lugar recentemente.

Algum tempo depois, poucos meses, voltei ao local e não vi mais aquela plataforma, no alto do muro. A polícia passara por lá e a arrancara, depois de um confronto entre dois grupos de traficantes. O morro estava limpo novamente, sem grupos de comando do tráfico ou do jogo de bicho. Mas, para isso ter acontecido, o preço foi alto. Uma pequena guerra foi deflagrada entre os dois grupos rivais e a polícia precisou intervir de forma áspera, e muitas baixas foram registradas. Entre elas, aquele menino do muro e mais alguns, que agiam sob o comando do tráfico. Todos eles foram executados pelo grupo rival no ato da invasão do morro.

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Hoje, quando passo no local, ainda tenho a impressão de ver aquele menino ali, olhando para o bairro rico e maldizendo a própria sorte. Qual teria sido o destino desse menino, caso o infortúnio não o acometesse desde o berço? Teria sido, talvez, um médico, engenheiro, cientista, político? Ou teria se voltado para o mundo do crime? Quem sabe um religioso, ou um militar atuante em missões de paz ou guerras? O destino dele poderia ter sido qualquer um desses, mas creio que a única coisa que ele queria, naquele dia em que nos encontramos, era ser alguém com poder de escolha sobre sua própria vida, e não viver a mercê de um sistema que impunha a ele a segregação social.

Esse menino usava e vendia drogas, e se necessário, era capaz de atos violentos para defender a própria vida, mas, era somente uma criança, como tantas outras que estão por aí, vivendo uma realidade cruel e que não deveria estar acontecendo. Infelizmente, hoje ele faz parte apenas das estatísticas de morte ocasionadas pelo tráfico de drogas no Brasil. Ou seja, virou só mais um número.

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