segunda-feira, 27 de julho de 2015

O CAOS DA TEORIA



dominó - imagem do Google
Incansável é a busca do ser humano por respostas aos mistérios da vida e do universo. Existem alguns desses segredos que viraram chavão, como o tal “de onde viemos e para onde vamos?” (especulações populares referentes ao meio científico), ou ainda os assuntos da fé (criação, céu e inferno, entre outras dúvidas dentro das crenças), e por aí vai. Mas perceba que nada disso é pequeno, coisa que se resolve com simples especulações ou conjecturas, ou horas perdidas em divagações e filosofia de boteco. Nesses assuntos, e em muitos outros, as cátedras ainda engatinham tais quais bebês prematuros, isso devido ao grau de complexidade que envolve cada um desses assuntos.

Muitos deles, claro, se resolvidos ou respondidos, não irão alterar em nada a rota natural de nossos destinos. Um ou outro, inclusive, sofrem fundamentações espúrias vindas da ânsia humana em questionar sem razão. Outros são assuntos sérios e poderiam indicar mudanças significativas em nossa forma de conduzir as coisas. Enfim, são problemas a serem resolvidos, e que tomam um tempo imenso da humanidade. Penso que parte desse esforço poderia ser dedicado a assuntos de grau de complexidade bem menor, mas que afetam diretamente tudo o que acontece a nossa volta.

Assim é a raça humana. Dedica esforços imensos para vergar um metal que sequer está ao alcance dos olhos mas que intimida somente pelo pressuposto de sua existência, enquanto o que machuca de verdade é a minúscula pedra que está no sapato e que, com a repetição dos micro ferimentos que causa, poderá criar uma enorme ferida.


Escotomas?

O menor dos seus problemas pode ser, amiúde, seu maior atraso. É claro que sim, pois na sua ânsia de crescer a qualquer custo, só o que você vê é aquilo que está gritante e diante dos teus olhos. O que é pequeno ou secundário, mas que está ali e se repetindo a todo instante, passa despercebido.

O acumulo do que é pequeno pode criar uma montanha. Então, quando você dá conta do que está acontecendo, existe um muro quase intransponível diante de você, e moldado inteiramente com aqueles tijolinhos miúdos, irrelevantes até aquele instante. Durante muito tempo, só o que você fazia era desviar, ou passar sobre eles. Afinal, eram só tijolinhos, não é? Até que um dia, assim numa terça-feira qualquer e chuvosa, você notou que não dava mais para contornar, e muito menos existia algo (ou alguém) que auxiliasse você a passar por cima.


Passar por cima?

Isso soa de um jeito estranho, não é? Muitas vezes, ficamos até envaidecidos quando alguém comenta algo assim conosco: “Você é incrível. Passa por cima de tudo como se nada existisse.”. Até que num dado momento notamos uma inversão nessa “verdade”, e vemos que estamos a mercê de um atropelamento por parte de tudo aquilo que “passamos por cima”. O sentimento de fragilidade aparece, e o que era para ser algo fácil para um caráter imediatista, passa a ser um sofrimento claro e angustiante, próprio daqueles que negligenciaram os efeitos que seus atos poderiam acarretar durante um percurso tão delicado quanto a vida.

E nessa hora, o que mais se quer é passar por baixo, de um jeito discreto e silencioso, sem ser percebido por ninguém.


Ninguém?

Não é bem assim. É nesse instante que um conflito interno começa. Pessoas que “passam por cima de tudo” são turronas, donas de uma personalidade forte, e acham que não precisam de ninguém. Nunca. Se, por acaso ou por fato premeditado, precisam de alguém, é por puro interesse.

Então, no momento em que estão no chão, o que deveria ser mais difícil é admitir que se precisa de ajuda. Mas não. As pessoas até admitem, mas o ato de pedir ajuda leva a outro, o de assumir erros e, também, a responsabilidade por tudo o que esses erros acarretaram. E tudo desanda de vez.


Infortúnios?

imagem do site Hype Science
Edward Lorenz descreve muito bem o que os pequenos e quase invisíveis acontecimentos podem causar em nossa vida. Na década de 1960, disse ele que o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode causar, tempos depois, um tornado no Texas”¹. Mais tarde e com aprofundamentos, isso veio a ser conhecido como a TEORIA DO CAOS, que tenta explicar como “uma pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. Por isso, tais eventos seriam praticamente imprevisíveis - caóticos, portanto.².

Não sei o que pensar sobre a Teoria do Caos. Aqui, caos poderia ser definido como algo sem ordem, em completa confusão, caótico. Então, o exemplo da borboleta citado por Lorenz não bate. Imagino a cadeia de reações necessária, de forma ORDENADA, para que tal coisa ocorra. Um evento desse porte, com tanta complexidade, não pode ocorrer vindo apenas das coincidências. É claro que é apenas o ponto de vista de um leigo, e você pode dizer que a coincidência é um dos condimentos principais do caos. E se partirmos do princípio que essa teoria é real, então nós todos, tudo a nossa volta, é fruto do caos. E que também todo problema de dimensões estratosféricas pode ter (e tem, seguindo a teoria) raízes em eventos minúsculos.

Neste caso, então, cada infortúnio de sua vida, por maior que seja, teve origem em algo imensamente menor, em alguma coisa que você sequer reparou ou negligenciou, pensando que nada aconteceria se você simplesmente ignorasse tal coisa. Voltamos, assim, aos pequenos problemas.


Tudo está escrito?

Aceitar a Teoria do Caos é como afirmar a não existência do tão famigerado DESTINO. Sim, pois se essa mesma borboleta que bateu as asas no Brasil e causou um tornado no Texas precisar sobrevoar outra área que não aquela para onde ela deveria ir (isso motivado pela chegada de outro vento forte que uma borboleta qualquer causou ao bater suas asas em algum local remoto), ela será capturada por algum predador e não depositará suas larvas, as mesmas que iriam virar outras borboletas e que causariam outros ventos, que desviariam rotas de outras borboletas, impedindo-as de seguir assim seus desígnios naturais. Tal coisa provocaria um desastre na cadeia alimentar (seguindo a Teoria do Caos), causando impacto na alimentação de seus predadores, que poderiam até deixar de nascer, o que influenciaria também a nutrição e, com isso, a normalidade na existência daqueles que estão um degrau acima nessa pirâmide predatória. Se colocarmos tudo isso numa época que me antecedeu, e como meus pais se alimentam de carne, e estão no topo da cadeia alimentar, vai saber se eles não seriam afetados? Neste caso, eu não estaria aqui, e tudo por causa de uma dita borboleta com síndrome de ventilador.

Estou a um passo de trocar a Teoria do Caos por aquela outra que diz que “tudo é Matrix³. Ou seja, nada é realidade, apenas mera percepção. Porém, alguém diria que foi uma borboleta metida a besta que resolveu pousar num computador e, com isso, gerou Matrix. Acho mais saudável permanecer no Caos.

Enquanto isso, outro alguém dirá que sim, o destino existe, pois alguma força superior já havia previsto, e escrito, que a bendita borboleta nasceria e bateria as asas alí, naquele fatídico momento, a ponto de causar em seu final o tornado. Dirá, é claro, que cada elemento necessário para corroborar o resultado final também foi escrito e descrito minuciosamente no livro sagrado dos três tempos (passado, presente e futuro). Destino. Tudo está escrito.

Não afirmo nada. Só sento e escuto, penso, e fico amalucado. É um círculo, onde cada resposta gera uma infinidade de outras perguntas. E quem sabe seja justamente isso, essa cadeia de ações e reações, que mais me cative, e ela vem justamente da afirmação do Caos.

Eis a parte sólida do mistério. Justamente aquela que mais me dá arrepios e que me deixa reticente. O medo de abrir a caixa.


Pandora?

Em linhas muito superficiais, e para não tomar tempo, Pandora é um paralelo grego ao mito de Adão e Eva, porém um tanto mais dramático.

Caixa de Pandora - imagem do Google
Veja que interessante essas passagens que extraí de um texto: “Pandora está associada com fazer o mal que não pode ser desfeito., “Pandora foi enviada para Epimeteu, que já tinha sido alertado por seu irmão a não aceitar nada dos deuses. Ele, por ‘ver sempre depois’, agiu de forma precipitada e ficou encantado com a bela Pandora. Ela chegou trazendo uma caixa fechada, um presente de casamento para Epimeteu. e “Ao abrir a caixa na frente de seu marido, Pandora liberou todos os males que até hoje afligem a humanidade, como os desentendimentos, as guerras e as doenças. Ela ainda tentou fechar a caixa, mas só conseguiu prender a esperança..

A precipitação levou o tal Epimeteu a se apaixonar por Pandora. Ele “via sempre depois”. Mas havia sido avisado por seu irmão (Prometeu) de que algo ruim poderia acontecer caso ele se encantasse pela bela dona. Prometeu “via sempre antes”. No fim das contas, Epimeteu não seguiu os conselhos do irmão, deu uma cantada na moçoila (ou caiu na cantada dela), a caixa foi aberta e o mundo foi contaminado por tudo o que não presta. Ironicamente, a única coisa que ficou presa na caixa foi a esperança. Ou, pelo menos, se pensa assim. Mas vai saber o que restou lá dentro ainda, não é?

É uma história dramática, com um enredo que somente os gregos poderiam compor, mas é uma parábola fantástica e que cabe como uma luva aqui, em minhas divagações.

Prometeu (aquele que via antes), antecedeu que algo estava errado. Ainda era um pequeno problema. Epimeteu (aquele que via depois), nem deu ouvidos ao irmão. Passou por cima de tudo, e o que era apenas uma desconfiança em seu princípio, ou um indício de um problema ainda pequeno (bastaria não abrir a caixa para que o problema se resolvesse), virou uma catástrofe que afligiu todo o mundo.

A grande questão aqui vem de um dito popular bem conhecido: a curiosidade matou o gato.

Mesmo sabendo que algo muito ruim poderia acontecer, a caixa foi aberta. O que os moveu? A bestialidade que esculpe o caráter humano? A curiosidade em desvendar o desconhecido? A necessidade premente em desobedecer? Ou por que simplesmente resolveram passar por cima de tudo e acharam que poderiam resolver tudo depois?

Não sei se eu abriria a caixa, mas garanto que minha curiosidade seria tanta, a ponto de me tirar dos eixos.


Onde está o fim?

O fim está no começo. Uma pergunta gera uma resposta, que gera outra pergunta para outra resposta e, assim, desenhamos o símbolo do infinito. Nunca termina, pois sequer sabemos se um dia começou. Quando você responder a última pergunta, o fim terá sido modificado, e isso provocado pelas reações de seus atos e de tantos outros que questionam até mesmo seus próprios questionamentos.

No fim das contas, tudo parece ser uma questão de ação e reação. Se ordenadas, são destino. Se caóticas, cabem dentro da teoria do caos. Entre elas um muro de dúvidas.

O que sei é que para evitar um problema maior, preciso cuidar do acúmulo dos problemas menores. E isso é difícil, pois vê-los nem sempre é tarefa facilitada para o ser humano. Talvez isso aconteça por algo que carregamos em nós, a tal megalomania. Ou por desatenção, falta de zelo para conosco, insanidade, falta de responsabilidade... ou outra coisa qualquer.

Mas isso tudo, a causa de não ver os problemas menores, é justamente UM PROBLEMA MENOR. Depois penso nisso. Não acho que gerará algo maior.


Será que não?



Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.



notas:
¹ e ² - A Teoria do Caos.
trechos extraídos da página Mundo Estranho 

³ - Tudo é Matrix
saiba mais em Hype Science

⁴ - Caixa de Pandora
trechos extraídos da página Mundo Educação 

quarta-feira, 15 de julho de 2015

MIGALHAS



image by Samara Bassi
Nunca foi muito fácil falar de mim mesmo. Bom, a bem da verdade, e por mais que alguns deem risada do que direi, no meu caso o ato de falar é que nunca foi fácil. Chame de timidez, introspecção, vergonha, formação intelectual precária, ou seja lá o que for, mas o fato é esse. Tive dificuldades com o tal “falar” durante quase uma vida toda.

Bom, quem sabe por isso eu escrevi tanto nessa minha trilha de migalhas que venho seguindo?

As primeiras experiências do tal "falar" sempre são mais fáceis, apesar de árduas. Calma, eu explico. Quando sequer sabemos o be-a-bá, lá estão pai, mãe, tios e um monte de gente mais velha fazendo aquele famoso (e completamente desnecessário, senão prejudicial) introdutório do ato de falar no estilo eu-falo-erradamente-e-você-repete. Mais ou menos assim, ó: gugú-dadá, bebê qué papá? fala mã-mãe meu bebê cuti-cuti, fala pá-pai bobão, bebê feiz totô?, etc, etc... Obviamente, não me lembro bem dessa fase, mas penso que me arrepiava só de ver um adulto falando assim perto de mim, e, claro, com aquele biquinho que todo mundo faz. Mas, enfim, esse é o começo, e só o que temos que fazer é tentar repetir. Mais depois, a coisa aperta, e os adultos que ensinavam tudo errado passam a nos corrigir sempre que engatamos em alguma palavra. Que vida, não? Primeiro, nos ensinam do jeito mais equivocado, e depois, se nos equivocamos, nos censuram e corrigem.

Próxima etapa: escola. Aqui, outro perrengue para mim. No meu tempo de primário, quatro décadas atrás, a coisa era diferente. As professoras não eram nada compreensíveis, e se não aprendíamos por bem, ia por mal mesmo. É nessa época que se começa a entrar na língua formal, é claro que muito superficialmente, mas o nível começa a mudar. Detalhe. Pouco se explicava e muito se impunha. No entanto, eu ganhei um presente imenso nessa mesma época. Algo que somente lá na adolescência é que dei o devido valor. Trilhei meus primeiros passos numa coisa chamada escrever.

imagem coletada no Google
O tempo passou, e sobrevivi aos primeiros anos de escola. Lembro que a cada vez que algum professor me chamava para ler ou falar, era um calvário. Pedagogos ou psicólogos, hoje, dariam solução facilmente, mas naquela época sequer se sonhava com isso. Crescíamos assim mesmo, com essa sensação de terror de se apresentar em público, de medo de ler em voz alta, ou de pavor em ter alguém julgando.

Quando cheguei nos meus quinze ou dezesseis anos, notei que gostava muito mais de escrever do que do próprio ato de ler. Tá, hoje eu sei. Um completa o outro. Mas eu sequer pensava nisso nessa época. E foi quando um mero professor de português me ajudou a amar desmedidamente o ato de escrever. Ele pegou uma de minhas redações e disse que aquilo estava um lixo, e que eu jamais conseguiria escrever uma migalha sequer que se aproximasse de algo que ele chamou de “composição aceitável”. Fiquei puto da cara com ele, mas hoje eu agradeço. E esses parágrafos, até agora, são dedicados unicamente a esse professor de português.

Pós-adolescência, juventude, fase madura. Em cada uma dessas fases aprendi alguma coisa, e trouxe comigo. Resultado? Hoje eu falo pelos cotovelos, me informo, falo mais ainda, me informo mais, e falo de novo. Procuro bases para argumento, aceito críticas, critico, busco pessoas que se interessam por assuntos que vão além das novelas ou filmes para dialogar... e assim vou. Eu sei que tudo isso é quase uma catarse, e também um escudo, mas sou assim.

Isso tudo que relatei acima fui achando pelo caminho, seguindo as migalhas que estavam na trilha. Na minha trilha. O engraçado é que tudo parecia acontecer mecanicamente. Até que um dia precisei me questionar, me perguntar onde eu estava errando e por que existia uma sensação de vazio nas minhas composições. O ofício de escrever me completava, mas naquilo tudo tinha alguma coisa que não caminhava bem. Eu não conseguia atingir as pessoas como queria, faltava algo. Foi quando me disseram que eu não deveria obrigar os outros a falar minha língua. Era eu quem deveria falar a língua de meu público. Um sábio conselho que trago até hoje. Não entendeu? É mais ou menos como “se está em Roma, aja como os romanos”. Resumo da ópera: lá fui eu me adaptar. Mas foi bom. Conheci pessoas de outras áreas, com outros assuntos e outras idéias. Não sei se consegui a adaptação que queria ou como ela deveria ser, mas entrei num mundo completamente diferente.

Quando comecei essa adaptação, achei que era um tanto tarde, pois eu já estava pra lá dos quarenta anos de idade, mas logo depois, um fato me deu a certeza de que não poderia ter sido diferente. Mas isso explico mais para frente.

O que sei é que minha vida mudou completamente quando pisei na sala de um curso de publicidade. Foi como dar asas a uma imaginação que já voava mesmo sem ter céu para isso. Mudei um tempo de cidade, perdi completamente o medo de expor minhas composições e conheci pessoas de todos os jeitos. Algumas muito especiais. Uma delas, inclusive, resolveu aparecer em minha vida para, pouco tempo depois, deixar um imenso buraco. Um buraco grande a Bessa. Mas, tudo bem, é a vida.

Vai daqui, vai de lá, e as migalhas sumiram do caminho. Aquelas mesmas que eu estava tão acostumado a seguir. Me senti um pouco perdido, sem ter como me guiar, até que enfiei a mão no bolso e encontrei algo inesperado. Um pão que era interminável (isso é metáfora, tá bom?). Levei um tempinho para entender isso, e como aquele pão teimava em não acabar, eu ia rasgando e jogando os pedaços pelo caminho, para ver se ele diminuía ou desaparecia, mas ele continuava lá, no meu bolso, se refazendo a todo instante.

Entrei em tantos assuntos esquinais depois disso. Passei por tantas “vibes”. Criei coragem para dizer as verdades que doíam aos outros mas que, ao mesmo tempo, me engasgavam.

Acreditei em tantas coisas antes impossíveis, que minha trouxa de viagem pesou nas costas. E desacreditei em tantas outras para, somente então, perceber que muita coisa nessa vida se finge de fácil somente para esconder que é, realmente, ...fácil.

Amar é fácil. Acreditar em céu e inferno também. Mas admitir que se gosta de arroz e feijão queimados, pipoca estourada com pimenta malagueta ou algodão-doce roxo, isso é difícil. Sim, pois acreditar no amor é uma convenção. Já céu e inferno é imposição, e acredita-se, muitas vezes, para satisfazer aos outros, mas as pessoas tendem a acreditar. Já nessas outras coisas (o feijão e arroz queimados, a pipoca com pimenta e o algodão-doce roxo), é questão de gosto, e se alguém não gosta, lá vem aquele “ecaaaaa, você gosta disso?”. Pois é. Para alguns, só podemos gostar do que eles gostam. E durante muito tempo, a coisa funcionava assim para mim. Dizer que gostava, ou não, de algo unicamente para satisfazer quem estava perto. Demorei para mudar isso. Mas mudei.

O pão? Continuava no bolso. Só que agora, por onde eu andava eu via passarinhos me seguindo. Num belo dia, resolvi guardar o pão e parei de jogar os pedaços. E aquela passarinhada berrou sem parar. Foi quando um estranho me disse que eu tinha o dever de alimentar aqueles pássaros, pois fora eu quem tinha deixado os ditos mal acostumados. Tá, vamos nessa. Eu continuei, e até exagerei. Pedaços maiores, o pão inteiro, mais frequência na alimentação... até que além dos passarinhos de sempre, resolveram aparecer pássaros maiores, inclusive urubus. Os grandes pássaros, mais ávidos, roubaram o pão de minhas mãos, e se foram, acabando com a mágica da restauração. Ficaram junto a mim apenas os pequenos passarinhos, que passaram a se alimentar de sementes, mas continuaram comigo pelo caminho.

Ali, em meio aos que ficaram, encontrei uma pequena passarinha. Ela, quem sabe, nem fosse a mais aparente. Pelo contrário, ela tinha os mesmos problemas que eu tinha lá atrás. Não gostava muito de aparecer. Mas eu a enxergava perfeitamente, e a admirava tanto que passei a observá-la cada vez mais.

O caminho estreitou, depois alargou demais, secou, virou rio, escarpa, buraco, subida, descida, até se transformar, dois anos atrás, numa bela vereda. Alguns passarinhos ficaram pelo caminho, outros seguiram trilhas diferentes, enquanto os que me seguiam iam comendo sementes e “plantando” as mesmas pelas beiradas, de um jeito só deles. E quer saber o fruto que vertia dessas sementes que eles “plantavam”? Pães mágicos. Somente pessoas com um certo dom é que conseguiam vê-los. Alguns outros, como eu, podiam colhê-los, mas raros eram aqueles que sabiam usá-los corretamente e não os perdiam. Quem conseguia aprender, pasme, virava passarinho plantador de pão. Eu, no entanto, perdi o pão e por pouco não perco a mágica de enxergar os próprios passarinhos. Perdi sim, mas entendi a mensagem. Não aquela do homem me dizendo que eu tinha a obrigação de alimentar os pássaros. Eu falo da mensagem verdadeira.

Hoje eu sei que é fácil alimentar fartamente quando se tem o que dar, sem pensar no futuro. Só que nessa hora, poucos sabem guardar para um momento de carestia. E, além disso, aparecem os esfomeados, aqueles que são gulosos ou, o que é pior, que só aparecem para se aproveitar e roubar daqueles que realmente precisam. Esses esfomeados-esganiçados usurpam o que podem e depois somem. A verdadeira mensagem veio de uma certa passarinha, que desde o começo guardava as migalhas que eu desperdiçava pelo caminho. Então, no dia que me vi faminto, ela deu para mim aquilo que ela amealhou pelo caminho.

Há que se ter o que plantar, mesmo que se tenha um pouco de fome. Se você tem duas sementes, coma uma. Amenize sua fome. Mas a outra semente, plante-a. Só assim, mesmo tendo que esperar um pouco, você terá mais amanhã. E se nascer pão, então espalhe-as pelo caminho, para alimentar quem realmente precisa e sabe reconhecer esse gesto. Mas sempre guarde algumas migalhas. Mesmo pequenas, elas te alimentarão algum dia e, claro, servirão de sementes.

imagem coletada no Google
Essa passarinha, que eu tentei certa vez prender em mim e precisei soltar para não perdê-la, se transformou em algo muito maior do que uma mera companheira em minha vereda. Hoje, faz dois anos que ela disse SiM para mim. Posso afirmar, com toda a certeza de todos esses anos de crenças e descrenças, de que ela é a maior certeza de minha vida. Se um dia eu achei que amar era fácil, ela me fez ver que sim, realmente é fácil. Mas, me ensinou também que não basta amar. Tem o respeito, o companheirismo, a cumplicidade, a vontade de querer amar sempre mais, o caminho, a vereda, as migalhas, a liberdade das asas... Ela me ensinou a ser moleque de novo, e me mostrou que existem pessoas que gostam de falar, enquanto outras preferem escutar. Me mostrou que isso é absolutamente normal. E eu achando que era um estranho por não gostar de falar! Tá, hoje falo demais, não é, Samara? Parte dessa culpa, acho, deve ser tua.

Lá atrás, falei que a adaptação que precisei parecia ter vindo tarde demais, e comentei também que eu estava errado. Pois é. Não poderia ter sido antes. Não sei se acredito em destino, mas gosto de pensar que tudo estava predestinado a ser assim. Senão, penso que teria atrapalhado um pouco a vida de alguém que é bem mais nova que eu. E ela precisava ter vivido o que viveu, ter passado pelas experiências que teve, senão, como poderia, hoje e mesmo muito mais nova, me ensinar tanto quanto ensina?

O fato é que amar, realmente, é fácil, mas somente quando temos a pessoa certa ao nosso lado. E eu amo minha Samara e a tenho SeMpre junto a mim.

Ah! Sim. Faltou dizer algo. Sabe no que eu acredito, depois de tudo o que relatei? Creio que se pode "acreditar" naquilo que quiser, desde que haja vontade de enxergar algo belo, assim como a magia de duas folhas numa poça d’água. Elas não estavam lá para qualquer um, mas sim para aqueles que souberam apreciá-las. Os demais sequer reparam nelas, ou passaram por cima, resmungando com a chuva.


Entendeu? Não? Tudo bem. Espero que teu caminho seja o suficientemente grande para que isso, algum dia, faça sentido.



Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.