quinta-feira, 30 de março de 2023

UM BELO E PERFUMADO JARDIM


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Dez dias passaram desde que ele saíra de casa. A estrada, longa, parecia não ter fim, e ele, cansado, já não suportava as dores dos pés ao trocar os passos.

Saíra da rodovia principal fazia algum tempo, nem lembrava quanto, e agora transitava por estradas secundárias. A comida, pouca, pesava no alforje, mas não poderia abandoná-la. Era seu pouco sustento, e precisaria durar sabe Deus até quando. Ou até que ele achasse novamente algum lugar onde pudesse repô-la.

Sentou sob uma árvore e se colocou a lembrar dos últimos acontecimentos. Pouco lhe veio a mente, talvez por algum bloqueio ou algo assim, e dentro daquilo que lembrava, o que mais o atemorizava era a imagem do teto de sua pequena casa despencando para cima dele. Depois disso, ao conseguir sair dos escombros, lembrava do povo correndo desordenadamente e em pânico. Um lapso insistia em deixar tudo branco, e a imagem posterior a isso já era a da estrada. Sequer a contagem de dez dias era precisa, e nem ao menos recordava de ter reunido alimento ou de ter se despedido de alguém. A única certeza que lhe cabia era a da vontade de jamais olhar para trás.

Cansara de tanto trabalhar e de pouco ter. Não que quisesse muito, mas gostaria de poder viver com dignidade, com menos apertos financeiros. Sim, tinha vícios. Gostava de aproveitar a tarde de sábado com os amigos em algum bar, e também de fumar seu cigarro, mas jamais gastou em demasia. Fumava pouco e a bebida nos sábados era mais para aproveitar aquela conversa e deixar extravasar a canseira do canteiro de obras que tanto maltratava pela semana inteira, do que para se embebedar. Outros vícios? Não apostava dinheiro, não era nenhum pervertido, nem existia mais nada que pudesse denegrir seu caráter. Era honesto e carinhoso. Então, por que tanto castigo? Em tão pouco tempo, no espaço de três meses, perdeu a mãe para uma doença repentina, a namorada foi embora, o cachorro (fiel companheiro por mais de uma década) também morreu, e por fim, sua casa desmoronou. Era demais para ele.

Começava a questionar se Deus realmente estava perto dele.

Levantou e começou a caminhar novamente, até que mais adiante, reparou um casal capinando uma pequena propriedade. Achou estranho, pois não viu nada plantado. Pedras e mais pedras, de todos os tamanhos. Era o que ele enxergava para todos os lados. Olhou ao redor e constatou que todo aquele lugar era inóspito, e não servia para o cultivo de nada.

Aproximou-se da cerca e observou por mais alguns instantes. Era um casal já idoso, e com algumas dificuldades para se locomover e trabalhar. A mulher, beirando os setenta anos, usava um lenço amarrado ao cabelo, e carregava uma expressão sofrida, como se o sol tivesse castigado sua face por toda uma vida. O homem, parecendo ter a mesma idade, arrastava uma das pernas e mais se apoiava na enxada do que a utilizava para a labuta. No entanto, mesmo naquele ritmo lento, o casal não parou um instante sequer.

Duas horas depois, o casal de idosos caminhou para a cerca. A mulher amparava o homem pelo braço, puxando-o com algum cuidado. Quando finalmente se aproximaram, o andarilho reparou que aquela senhora pouco enxergava, e se esforçava muito para ver onde pisava.

―Boa tarde! ―o andarilho cumprimentou, apoiando-se a cerca.

―Boa tarde, meu filho! Que Deus o abençoe! ―a senhora respondeu, educadamente.
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―Minha senhora, estive olhando para vocês, e estou curioso! Por que estão capinando essa terra árida e pedregosa? Aqui dificilmente vocês poderão plantar algo!

­­―Meu filho, isso é o que nos restou de uma vida inteira! É o nosso recomeço!

O andarilho ficou espantado com o que ouviu. Recomeço? Naquela idade? Naquele lugar?

­­―Perdão, mas eu fiquei sem entender! ­­―uma expressão aturdida acompanhou as palavras do andarilho.

A senhora ajudou o esposo a se sentar e deu-lhe uma pequena garrafa, que parecia ser o único sustento que eles possuíam naquele instante. Era água. O senhor idoso tomou aquilo lentamente, em pequenos goles, e devolveu a garrafa para a esposa, que a ofereceu ao andarilho.

―É difícil achar água por estas paragens! ­­―ela esticou o braço com alguma dificuldade. ­­―Tome, sirva-se. É o pouco que temos, mas o senhor deve ter sede!

Uma sensação de culpa tomou a consciência do andarilho. Olhou para aquele casal e a única coisa em que pensou foi no restante de alimento que ainda sobrava no alforje. Era seu único sustento, e precisaria conservá-lo, mas a situação que se apresentava cortou-lhe o coração. Recusou a água, devolvendo a garrafa para a mulher e retirou tudo o que tinha no alforje. Pulou a cerca e sentou-se, ajudando a mulher a fazer o mesmo. Ali ficaram por mais de uma hora, conversando e se alimentando com aquele pouco. A noite começava a se aproximar, e sem que o andarilho esperasse, a mulher convidou-o para pernoitar na pequena tapera em que habitavam. Lá, a miséria era ainda maior.

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―Fomos muito bem de vida, moço. ­­―as palavras mal tinham força para sair do velho senhor, que sentado ao lado daquilo que parecia uma cama, escorava-se na parede cheia de frestas. ―Tivemos fazendas, carros, caminhões. Esbanjamos o que tínhamos. Nosso único filho estudou na Europa, e quando voltou, trouxe junto uma mulher que só queria saber de festas caras. Quando nos demos conta, nosso dinheiro havia sumido. Eles tiraram tudo o que tínhamos. Um tanto eles gastaram, e o outro eles roubaram mesmo. Perdemos tudo, fomos escorraçados de nossas terras, e ficamos sem rumo. Nosso filho nos abandonou, e sequer sabemos onde ele mora...

...para não terminarmos a vida num asilo, eu e minha velha fomos trabalhar. Isso mesmo, nunca fomos de nos entregar facilmente. Todos os amigos viraram as costas quando notaram que não tínhamos mais nada. Aprendemos a economizar, e com o pouco que ganhávamos, refizemos a vida...

...depois de alguns anos de trabalho duro, melhoramos de vida novamente, mas estávamos diferentes. Não esbanjávamos mais. Cuidávamos daquilo que conquistamos novamente, mas sem ganância. Tentávamos ajudar a quem precisasse, até que num certo dia, um homem bateu em nossa porta pedindo abrigo e comida. Ele estava com a mulher e um filho, e não vimos perigo em acolhê-los...

...na manhã seguinte, eles nos assaltaram. Eu levei um tiro na perna e minha velha, coitada, foi jogada contra a parede por aquele homem que alimentamos. Quase ficou cega. Hoje, eu mal posso andar, mas a guio, enquanto ela, sem ver, me carrega. Escoramo-nos um ao outro. Mas perdemos tudo novamente.

­­―E esta terra? O que fazem aqui? Vocês não vão conseguir transformar isto aqui em algo que forneça sustento. ―o andarilho interrompeu a conversa, mostrando um tanto de indignação pelo que escutava. ­­―O que pretendem aqui? Já são velhos e sem forças!

―Meu filho! ―a mulher adiantou-se ao marido, tomando-lhe a palavra. ­―Não podemos esperar que alguém faça por nós, e muito menos que caia tudo do céu. Esta terra não tem dono e ninguém a quer. Ela é como nós. Então, nos unimos a ela. Enquanto pudermos andar e enxergar, vamos trabalhar, vamos viver e vamos agradecer. E quando não pudermos mais, morreremos, mas sempre sabendo que jamais desistimos. Já apanhamos da vida, e aprendemos com tudo. Cometeremos outros erros, é claro, mas não os mesmos.

­­―Mas, senhora! Aqui só existem pedras!

­­―Só existem pedras para aquele que só quer enxergar pedras, meu filho. ­­―ela continuou, calmamente. ­­―Para nós, existe um belo jardim debaixo das pedras, onde plantaremos lindas flores. E para o lado de cá da propriedade, as pedras construirão uma casa confortável para nós. Do outro lado, plantaremos nosso sustento, e do outro, teremos um lindo tanque com peixes e marrecos.

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O andarilho olhou ternamente para aquele casal. Era provável que eles jamais conseguissem tal feito, mas agora ele entendia. Faziam aquilo para manterem-se em pé, vivos. O sonho os mantinha eretos, dignos de si próprios. E por ali, o andarilho acabou ficando. Foi acolhido como a um filho. Até que 3 anos depois, o casal partiu desta vida. O andarilho, que havia ajudado a cultivar um jardim, construiu uma pequena capela, toda feita daquelas pedras que o casal tanto sofrera para carregar de um lado para outro, e os enterrou dentro dela, em respeito a tudo aquilo que ele adquiriu com aqueles que o acolheram. Aprendeu muito com eles. Ganhou sabedoria.

Tempos depois, o andarilho retornou para a cidade, justamente para o local de onde partira alguns anos antes. Lá estava sua casa, ou os escombros dela. Tudo estava exatamente igual, como no dia em que virara as costas para aquele lugar. Nenhum de seus antigos vizinhos se atrevera a retornar para aquela encosta de morro. Ele, ao chegar, largou o que tinha nas mãos, arregaçou as mangas e começou a carregar os pedaços de parede de um lado para o outro.

Não demorou e logo alguém veio até o local, curioso para saber o que ele fazia.

―O que eu pretendo, carregando essas pedras? Construirei, antes de qualquer coisa, um belo jardim. Um lindo e perfumado jardim.

Marcio Rutes


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sexta-feira, 24 de março de 2023

TUDO CULPA DO SALAME

 

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―Cadê a mala, amor?

―Ali no canto. Mas, pra que essa pressa?

―Taylane, minha amadinha. É nossa filha que vem nascendo! Qualquer erro nosso, qualquer descuido, e pode ser fatal pra ela! ―o marido se agitava, enquanto corria de um lado para o outro, completamente desesperado. ―E fica sentada aí na cama, senão vai molhar tudo. E a bolsa?

―No guarda-roupas, amore!

―Não essa! A bolsa da tua barriga. Gravidez. Lembra?

―Ah! Essa? É! Ela tá aqui ainda.

―Bom! Já liguei pro seu pai, e ele já deve ter saído de casa. Tá vindo pra cá. Já liguei para a sua médica, e também para o hospital. Tudo certo. Vamos embora?

E lá foram os dois, porta afora. Quando entraram no elevador, o marido tirou uma lista do bolso e começou uma checagem de cada item.

―Pelo visto, não esquecemos nada. A Taylândia vem ao mundo cercada de todos os cuidados.

―Washington Wesley Wanderson da Silva! Dá pro senhor se acalmar?

―Mas, meu amor! É o dia mais importante de nossas vidas.

―Eu sei. Mas você precisava me depilar também? ―ela questionou, fazendo cara de tristeza.

―Não reclame. Sei lá quem iria fazer isso lá no hospital. E nem pensar em saber que qualquer homem olhou as coisas da minha mulherzinha.

―Deus do céu! Você é um poço de ignorância, Washington Wesley Wanderson da Silva!

O pai de Taylane, quando viu os dois aparecerem na porta do elevador, já correu para encontrá-los. Todo afoito, mal cumprimentou e já saiu carregando a filha para o carro.

―Pai, por que essa pressa?

―O WWW (o marido) está com a razão, minha filha. É a Taylândia que precisa desse cuidado todo. Você é minha única filha, e ela é minha primeira neta. Então, sossega aí que vou colocar a sirene no carro pra abrir caminho.

­―Por favor, papai! Sirene não, eu imploro! Vou morrer de vergonha. Tudo bem que o senhor é delegado, mas pra quê isso?

A pobre coitada mal foi escutada. E assim, os três chegaram ao hospital. O marido e o sogro literalmente pularam do carro e correram para a rampa, mas pararam assim que notaram a falta de Taylane. Quando olharam para trás, repararam a moça já saindo do veículo, toda torta e segurando as costas. Voltaram e cada um pegou em um braço, carregando-a sem deixá-la encostar os pés no chão.

Dentro do hospital, tudo encaminhado. Era só esperar pela médica, que não demorou para chegar.

―Demorou, doutora! ―o marido, batendo o pé, reclamou.

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―São 4 horas da madrugada. Até os médicos dormem, vez ou outra. E um nascimento não é assim, como quem tira uma rolha de uma garrafa, sr. Washington. Bom, vamos lá! Cadê minha paciente?

O marido olhou para o relógio e apertou um botão qualquer. A médica, ao vê-lo fazer isso, baixou os ombros e desanimou, mirando-o diretamente nos olhos.

―Você não fez isso de novo, não é? Era só mais um treinamento?

―Duas horas e três minutos. Precisamos melhorar esse tempo! Não acha, meu sogro?

―Concordo, WWW! Acho que mais uns três treinamentos e baixamos uns 45 minutos.

―Eu não acredito! ―a médica bufou, saindo para o lado. ―Isso é uma gravidez que está no oitavo mês, e não um jogo de futebol. Vocês são loucos?

A médica sentou ao lado de Taylane e colocou a mão na barriga da moça.

―Coitada dessa criança! O pai é um doido, e o avô apóia e colabora. O que eu fiz pra merecer um cliente assim?

―Você, doutora? E eu? Convivo com esses dois malucos o tempo inteiro!

Um mês depois, uma mensagem fez o telefone de Washington vibrar. Era Taylane, dizendo que estava com vontade de comer salaminho. O marido, exagerado em seus atos, passou no açougue e comprou logo dez unidades.

“Vai saber qual é o que ela tá com vontade de comer!”. ―ele pensou, indo para o carro.

Ajeitou tudo no banco da frente do veículo e se preparou para sair, mas um dos salames insistia em não ficar na sacola. Ele, tranquilamente, pegou o salame e enfiou no bolso da jaqueta. O que importava, naquele instante, era voltar para casa. Já era tarde e ele estava cansado, e possivelmente a esposa só esperava por aqueles ditos salames para poder se saciar e repousar.

―Vou correr, senão é capaz da minha neném nascer parecida com um salame.

Já em casa, ele colocou a jaqueta nas costas da cadeira e chamou a esposa. Ela não se fez de rogada. Comeu até se refestelar. Mas o desejo foi além. Ainda fez o marido preparar pudim, brigadeiro de panela e macarrão com molho. Para encerrar, tomou quase meio litro de Coca-Cola sem gelo. O marido só olhava, sem entender como aquilo tudo poderia se ajeitar dentro da franzina esposa.

Durante a noite, na cama, ela parecia inquieta. Virava-se constantemente, até que dormiu. Repentinamente, o marido colocou uma das mãos nas pernas da esposa e reparou algo estranho. Então, tratou de chamá-la.

―Amorzinhoooo. Acho que você tomou refrigerante demais. A cama tá toda molhada.

Ela acordou e tateou a cama, constatando que era verdade aquilo que o marido falara. Ficou parada alguns instantes e, quando o marido acendeu as luzes, os dois se olharam, assustados.

“A bolsa estourou”! ―os dois gritaram, juntos.

―WWW, calma. ―a esposa, que jamais chamara o marido pelo apelido, gritou, tentando impor alguma ordem.

Ele sequer prestou atenção no que ela falava. A primeira coisa que fez foi ligar para o sogro que, obviamente, dormia profundamente.

―Alô, meu sogro. A bolsa estourou!

―O quê? Como? Bolsa estourou? ―o sogro balbuciou, até que acordou em um estalo, assustado. ―Que inferno! Como? Então perdi todo meu dinheiro que estava investido lá? Eu sabia que aquele corretor iria me passar a perna... ―um instante de silêncio. ―Mas de qual bolsa você está falando? Eu não investi nada na Bolsa de Tóquio! E nesse horário, só a bolsa japonesa deve estar aberta!

―A Taylândia, seu tonto! ―Washington irritou-se, tentando explicar que era a bolsa da barriga da esposa.

―Piorou! Se eu não investiria no Japão, vou investir na Tailândia? Tá burro, é?

―Burro tá você, seu tonto! Não é o país. É a Taylândia, a sua neta. A bolsa que rompeu é a da Taylane. Acordaaaaaaa. E vem logo pra cá, que eu to preparando tudo!

Ao desligar, o marido correu para a gaveta de sua escrivaninha, para procurar a lista de providências a serem tomadas naquele instante. Mas não achou nada. Desesperado, começou a contar nos dedos, até que parou e olhou para a esposa, que tranquila, só esperava por ele para poderem descer até a entrada do prédio.

―Como...?

―Bom, enquanto você se desespera, eu penso. E faço as coisas com calma. Vamos?

―Mas, e a...?

―Já peguei.

―E a...?

―Também!

―E... e... e...?

―Dá pra calar a boca e se vestir logo, que to começando a ter contrações? ­―Taylane não se aguentou e soltou um berro, fazendo com que o marido corresse para a cozinha e vestisse, unicamente, a jaqueta.

Ela, com contrações, mal reparou que o marido esquecera as calças. Naquele instante, ela notou que precisava pensar nela mesma, ou então, as coisas poderiam piorar um pouco. Chegara a hora de ver se aqueles treinamentos valeram para algo.

E tudo já se mostrou estranho no elevador. A demora foi tanta que o marido já pensava em descer pelas escadas mesmo. Até que, repentinamente, a porta do elevador abriu e eles puderam entrar. La dentro, um zelador já idoso descia com alguns apetrechos para limpeza. Ao ver aquele casal, arregalou os olhos, principalmente ao reparar que o marido estava apenas de cuecas. Mas calou-se. Vai que era alguma nova moda?

Lá embaixo, na entrada do prédio, o sogro já esperava, ansioso. E ao vê-los, tomou um susto.

―WWW. Pode me explicar esses trajes?

Washington sequer prestou atenção nas palavras que o sogro dissera. Passou por ele e foi até o porta-malas do veículo, jogando para dentro toda a bagagem que carregava. Deu novamente a volta e entrou, mandando o sogro acelerar.

Duas quadras mais adiante, o sogro parou o carro e ficou olhando para o genro, que estranhou o fato.

―Parou por que? Estamos com pressa, não estamos?

―Seu animal. Você me fez esquecer minha filha lá atrás.

Enquanto os dois discutiam, outro veículo dobrou a esquina e, sem esperar que o veículo daqueles dois estivesse parado bem no meio da avenida, chocou-se com o carro do sogro de Washington. O delegado desceu rapidamente e começou a xingar o outro motorista. Ou melhor, a “outra” motorista.

―Tinha que ser mulher! E, claro, só poderia dar nisso! Eu sou delegado, sabia?

―E eu sou juíza, sabia? E sabia, também, que o seu veículo estava parado de forma irregular, no meio de uma via pública?

―Calem a bocaaaaaaaaaaa!

Todos silenciaram e olharam para trás. Era Taylane, que arfante, acabara de chegar até onde eles estavam.

―As contrações estão aumentando. Vai nascer logo!

O desespero foi geral. Até a juíza, que sequer sabia o que estava acontecendo, entrou na dança. Precisavam ir rapidamente para o hospital, mas o veículo do pai de Taylane, naquele estado, sequer sairia do lugar. O carro da juíza também ficara muito avariado, e naquele horário não havia viva alma na rua. O marido tentou usar o telefone celular, mas estava sem bateria. O sogro, na pressa, esquecera o telefone em casa, e a juíza, ao procurar pelo telefone dela, descobriu que quebrara no acidente.

―E agora? O que fazemos? ―o marido suplicou, olhando para a juíza.

―Ei... eu poderia prendê-lo por atentado ao pudor, moço.

O pai de Taylane andou um pouco e reparou algo que poderia ajudar. Pediu aos outros que esperassem e, um pouco depois, voltava até eles com uma carona.

―Pai, isso é um caminhão da coleta de lixo!

―É um veículo, não é? Entra logo. Vai!

O marido ajeitou a moça na cabine do caminhão, e como não havia lugar para todos por lá, o pai e a juíza, que resolveu acompanhar para não perder o delegado de vista, precisaram ir na parte de trás do caminhão, literalmente pendurados.

Como o motorista havia recebido ordens tanto de uma juíza quanto de um delegado para “andar depressa”, abusou o quanto pode. Parecia se divertir com a situação. Mas não parava de olhar para as pernas de Washington. Não entendia por que alguém andava apenas de cuecas naquela hora da madrugada.

Na parte de trás do caminhão, cada um se agarrava como conseguia. E a pior parte ficou para o delegado. Em uma esquina, um saco de lixo se desprendeu e caiu sobre ele. No interior, algum tipo de líquido com cheiro putrefato derramou todo nas calças do pobre coitado. As blasfêmias eram ouvidas a metros de distância, mas logo foram substituídas por sonoras gargalhadas, pois ele reparou que não havia sido o único atingido por aquele líquido. A juíza também estava toda molhada, e completamente irritada. Com as calças encharcadas por aquele líquido mal cheiroso, ela não sabia se xingava ou chorava.

Quando o caminhão parou diante do hospital, o delegado pulou e tratou de tirar as calças, para se ver livre do mal cheiro. A juíza, estranhando aquilo, baixou o olhar e reparou que a situação dela também estava complicada, e piorava ainda mais com aquele cheiro insuportável. Sem escolha, e tomada pelo instinto de não perder o delegado de seu ângulo de visão, não pensou duas vezes. Também arrancou as calças e foi atrás daquele homem.

Na recepção do hospital, um alarde estava montado. Na pressa, ninguém lembrou de ligar para a médica. E quando conseguiram localizá-la, descobriram que ela não chegaria a tempo para fazer o parto. Um enfermeiro, vendo que ninguém se entendia e já conhecendo tanto Washington quanto o pai de Taylane, tratou de puxar a moça para o lado, e levou-a para outra sala, para tranquilizá-la e iniciar os procedimentos necessários. Enquanto isso, na recepção, a bagunça só criava mais tamanho, até que a atendente não aguentou e ameaçou chamar a polícia.

―Pode chamar. Eu sou delegado.

―E eu, juíza!

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―Então, vocês vão calar a boca, porque isto aqui é um hospital. Vocês estão pensando o quê, afinal? E posso saber por que os três estão quase pelados? Vocês estavam onde? Numa suruba?

―Olha o respeito, menina! ―o delegado levantou o dedo, irritado.

―Baixe o dedo, senhor! ―a enfermeira retrucou. ―É desse jeito que um delegado resolve as coisas? E mais um detalhe! Que cheiro dos infernos é esse? Ecaaaaaaa.

Os três se olharam, e só então Washington reparou que estava sem calças. O pobre coitado parecia desnorteado. Toda a sua atenção e zelo viraram naquilo. Sentia-se um fracassado. Mas balançou a cabeça, sabendo que não poderia ficar ali parado. O sogro e a juíza, engalfinhados em uma briga de impropérios e palavrões, não ajudariam em nada, e a esposa sumira.

Washington aproveitou que a atendente estava distraída com a briga dos outros dois e saiu de fininho. Foi se enfiando pelos corredores, até que por uma janela de vidro ele notou a esposa deitada em uma maca. Bateu no vidro e, quando estava por abrir a porta, um enfermeiro segurou-o pelo ombro.

―Posso saber o que o senhor está fazendo aqui?

―Sou o marido daquela moça ali!

―Vai assistir ao parto? Então, venha comigo! Mas antes, o senhor pode me explicar onde estão suas calças?

Washington não teve muita escolha e seguiu o enfermeiro. Aquilo não estava nos planos dele. Assistir ao parto da esposa? Ele não suportava ver sangue. Entrava em desespero a cada vez que isso acontecia.

Quando chegaram na outra sala, onde o enfermeiro iria preparar Washington para assistir ao parto, o rapaz se desesperou. Precisava fazer algo. Então, quando o enfermeiro se distraiu, ele pegou um gorro e um avental médico e saiu silenciosamente. Vestiu-se no corredor mesmo, e se esgueirou, olhando para todos os lados como se estivesse em uma cena de guerra. Inesperadamente, escutou algumas vozes e entrou na primeira sala que viu. Era uma sala com uma porta enorme, dividida em duas partes, mas ao que parecia, era apenas uma ante-sala. E para o azar do rapaz, aquelas vozes estavam cada vez mais próximas. O que restou para ele foi seguir em frente, até abrir outra porta igual a primeira. Assustou-se, pois acabou dando de cara com várias pessoas rodeando uma mulher, que estava deitada em uma mesa.

―Taylane? ―Washington murmurou, reconhecendo a esposa.

―Quem é o senhor? ―a pergunta veio de um homem enorme, que estava parado do outro lado da mesa onde a esposa se encontrava deitada.

Washington foi ladeando a mesa lentamente, até parar ao lado daquele homem.

―Eu sou o marido. E o senhor, quem é?

―Eu sou o médico que irá fazer o parto, pois a doutora Luiza não chegará a tempo.

Nesse momento, Washington olhou para a mesa onde a esposa estava deitada. O que ele viu, acabou fazendo com que um nó descesse por sua garganta. Taylane estava com os joelhos dobrados e abertos, e completamente desprovida de qualquer vestimenta.

Sem saber o que fazer, o rapaz enrubesceu e olhou para o médico. Gaguejou algumas palavras, e começou a arrancar o avental que utilizava, até ficar apenas de jaqueta e cuecas. Estava irritado e com ciúmes, e só pensava em afastar o médico dali. Suas mãos, afoitas, acabaram parando dentro dos bolsos, e ele notou que havia algo em um deles. Algo redondo e comprido, o salame. Então, pegou-o e começou a ameaçar o médico.

―Nem pense, seu doutorzinho. Nem pense que você vai ficar ai, olhando as coisas da minha mulher. ―o rapaz bufava e balançava aquele salame bem perto do nariz do médico.

Uma das enfermeiras, vendo a cena, tentou interceder, e o médico aproveitou a situação para “desarmar” o rapaz. Mas como ele não parava quieto, o médico largou o salame no primeiro lugar que viu, e que foi justamente na mesa onde Taylane estava, e bem entre as pernas da moça.

Outro enfermeiro entrou com uma câmera nas mãos. Taylane havia encomendado o registro em vídeo do nascimento da filha, e ele começou a filmar. Ao lado, ninguém se entendia. Duas enfermeiras tentavam conter Washington, enquanto o médico, desesperado, fazia de tudo para voltar para seu posto. Taylane, entre soluços e gemidos, tentava chamar a atenção de alguém, até que, com um resto de forças, soltou um berro.

―Socorroooooooooooooo.

Todos pararam imediatamente. O médico arregalou os olhos, mas não descuidou do rapaz, que estava, àquela altura, bem preso nas mãos das enfermeiras. Mas Washington foi o primeiro a perguntar algo.

―Nasceu?

Novo silêncio. Até que o enfermeiro, que filmava tudo, se voltou para as pernas de Taylane e caiu na gargalhada. Em seguida, desligou a câmera e olhou irônicamente para o rapaz, dizendo:

―Olha! Tem algo aqui, mas se for uma criança, acho que sua mulher deve ter ficado com muita vontade de comer alguma coisa, porque tá com uma cara danada de parecida com um salame.

Aquelas palavras, por mais que fossem apenas por brincadeira, surtiram um efeito não esperado em Washington. Ele, ainda mais irritado, livrou-se das enfermeiras, mas foi contido pelo médico. Taylane, vendo que não aguentaria mais, relaxou o corpo, e sem esperar, sentiu que Taylândia começava a dar as caras ao mundo. E como ninguém se entendia novamente, o enfermeiro que filmava largou a câmera e fez o que sabia. Amparou a criança e ajudou no parto. Minutos depois, um choro tomava o ambiente.

―Ah! Agora nasceu. E é uma menina! ―o enfermeiro comemorou, segurando a criança nas mãos. ―Mas ainda não entendi por que esse salame estava aqui! É alguma simpatia?

Um silêncio aterrador tomou conta daquela sala, quebrado unicamente pelo barulho do marido se estatelando ao chão.

Algumas horas mais tarde, com um número enorme de policiais e jornalistas na recepção do hospital, uma repórter gravava a matéria que iria ao ar naquele dia.

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―...ainda não sabemos se tudo isso foi algum ritual de um desses grupos de malucos que aparecem a todos os instantes, ou se foi um ato isolado de um pai desesperado, que ao se ver sem atendimento neste hospital de luxo, entrou em pânico. O que se sabe é que uma juíza e um delegado, que possivelmente fazem parte desse grupo de malucos que tentou dominar o hospital, foram flagrados a poucos instantes, trajando apenas roupas íntimas, numa das salas do hospital. Segundo testemunhas, os dois estavam lambuzados de sabão líquido da cintura para baixo, e exalavam um cheiro estranho, possivelmente "provindo" de alguma substância estranha, ou de algum ritual maluco que eles faziam. Muito estranho. Será parte do ritual de acasalamento desse grupo esquisito? Por sua vez, o pai da criança que nasceu foi autuado por invasão de área restrita do hospital, por desacato e por agressão. Ele ameaçou ao médico e a outros atendentes com um salame enorme e de origem desconhecida. Ainda será investigada a procedência do salame, mas ao que tudo indica, ele fazia parte da artimanha desse grupo para incrementar o ritual que eles iriam realizar aqui nesse hospital. E eu lhes pergunto. Será falta de fé? Será falta de segurança? De onde viemos? Para onde vamos? Isso é o cúmulo... corta e edita.



Marcio Rutes



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sábado, 18 de março de 2023

MATILDE


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Ana caminhava lentamente pelo estreito corredor e, ao passar ao lado da sala, ouviu vozes masculinas. Como ela jamais conseguira conter seu ímpeto alcoviteiro (se é que alguma vez tentou!), colou a pequena e sagaz orelha à porta, e aproveitou. Do cômodo, reparou as vozes de Edú, seu irmão mais velho, e Nilo, o marido de sua melhor amiga.

—Ela é um espetáculo, meu amigo. —Nilo comentava, empolgado.

—E como ela é? —o outro questionava, mostrando interesse.

—Quando ela anda, não tem quem não repare. Quadris largos, com um rebolado bem marcado. A traseira é empinada. Puro mignon. Ela é minha e ninguém tira. Fiquei babando pela Matilde

Ana estarreceu. Sua melhor amiga estava sendo traída? Um turbilhão de pensamentos passou por sua cabeça, mas a vontade de colocar aquela bomba no Facebook e levar a fofoca adiante foi maior do que tudo. No entanto, era sua melhor amiga, e por certo deveria ser ela a primeira a saber. Depois, é claro, repartiria a informação com algumas poucas pessoas nas redes sociais. Então, em menos de cinco minutos, Ana estava em sua caminhonete e rumando apressadamente para a fazenda onde a amiga residia.

—Dedéia, minha amiga. É isso mesmo. Eu “vi” tudo, com essas orelhas que terra nenhuma há de comer. Afinal, não paguei uma fortuna em cirurgia plástica pra terra estragar tudo depois.

—Ana, que inferno! Eu não posso acreditar nisso! —Dedéia bufava, atônita. —O que mais ele falou, amiga? Diz, sem dó nem dor no “célebro”.

—Ah! Sei lá! Disse que ela é loira, alta e rica. Que conheceu ela em uma boate, e que ela é praticante de dança do ventre. Disse que tá apaixonado. E também que a bunda dela é grande.

—O que? —um berro esganiçado e carregado de raiva brotou da boca de Dedéia. Ela rodou nos calcanhares e começou a jogar tudo o que alcançava ao chão. —Loira? Rica? Faz aqueles “trem” esquisitos com a barriga? E ainda de bunda grande? Ah! Ele me paga. Me paga bem caro. O que eu faço, amiga? Me diz logo! O que eu faço com esse canalha?

—Se eu fosse você, destruía o que ele mais gosta. —Ana comentou em tom sarcástico, e, logo em seguida, sorriu como se estivesse plenamente satisfeita por incitar a amiga a fazer alguma maldade.

Dedéia ouviu aquilo e desapareceu pelas escadas que levavam ao segundo andar da casa. Ana, sem entender, foi atrás. Em instantes, localizou a amiga em um dos quartos, mas estaqueou, ficando boquiaberta com o que viu. Dedéia, armada com um taco de golfe, espancava violentamente um pato de borracha.

—Mas, o que você está fazendo?

—Ué! Fazendo o que você mandou. Estou destruindo o que ele mais gosta! Ele adora esse patinho de borracha. Quando vai pra banheira, só toma banho com esse patinho dentro da água.

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—Pelos deuses do “Olímpo Egípcio”! Sua tonta! E desde quando espancar um pato de borracha vai atingir o safado do teu marido? Tem que fazer algo mais impactante. Se bem que esse patinho é bonitinho! —Ana pegou o pato de borracha e perdeu alguns segundos, admirando-o e virando-o, até que reparou algo na parte de baixo do brinquedo. —E por que tem esse buraco desse tamanho na parte de trás do pato? Cabem meus dois polegares juntos aqui nesse buraco!

—Não seja indiscreta, amiga! Mas, você tá certa! Vou dar cabo disso agora mesmo. Ele brincou com fogo, então, vou contra-atacar com fogo também.

Dedéia agarrou o pato de borracha e desapareceu novamente. Ana, desanimada, sentou e esperou, pois sabia que a amiga pouco faria. Então, sem pressa, abriu o guarda-roupas e passou a admirar os vestidos de festa de Dedéia. E assim, o tempo passou. Meia hora depois, Ana sentiu um cheiro forte de fumaça, e correu até a janela. De lá, pode observar uma nuvem preta subindo aos céus. Aos tropeços, correu pelas escadas, e só parou quando chegou ao lado da amiga, que mantinha um olhar extremamente sórdido.

—Sua louca! —Ana gritou, pasmada. —O que você fez?

—Ué! Dei cabo das duas coisas que o pilantra mais gosta. O pato de borracha e a caminhonete dele.

—Essa é a minha caminhonete, sua estúpida!

—É? Vocês têm caminhonetes iguais? Nem me dei conta disso!

Sem que elas percebessem, as labaredas atingiram a casa, e em pouco tempo, tudo veio ao chão. Algumas horas depois, já com os bombeiros controlando tudo, Nilo chegou ao local, completamente desesperado.

—Homem é tudo igual. Vocês insistem na mentira até quando as provas são incontestáveis! Eu escutei você falar até o nome dela, seu safado! —Ana esbravejava, ainda querendo incitar a amiga a ficar com raiva do marido. —E você falou em alto e bom tom! Matilde!

—Espera! Espera um pouco! —Dedéia parou o que fazia e sentou a um canto, nitidamente desconcertada. —Matilde era minha vaquinha que morreu, e você tinha prometido comprar outra. Você não estava falando da... minha vaquinha, estava?

Nilo apenas balançou positivamente a cabeça, o que foi suficiente para que Dedéia quase entrasse em um colapso nervoso. Ana tentou acolhe-lha, mas acabou enxotada pela amiga. Um pouco mais distante, Nilo olhava para os restos de sua casa, e levou um susto enorme ao ouvir seu próprio telefone celular tocando. Saiu para o lado e atendeu, mostrando nervosismo.

—A situação tá feia. Tudo queimado. Minhas duas caminhonetes, caminhão, trator, minha casa, meus pertences. Meu patinho amado. Tudo. E o pior é que ainda vou ter que comprar uma droga de uma vaca pra sustentar a história que, por pura sorte, me livrou de um divórcio. Ainda bem que a porcaria da vaca tinha o mesmo nome que você. E por favor, Matilde. Não me liga mais no meu celular, meu amor. Senão, ainda arranjo encrenca por tua causa.


Marcio Rutes




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