domingo, 25 de março de 2012

A VIDA ENSINA

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Hoje, ela busca um amor maior. Traz nos olhos a certeza de que a esperança não é algo fútil e nem passageiro, mas carrega marcas profundas na alma, vindas de um passado que a castigou demais. Teria tudo para ser amarga, revoltada e, quem sabe, até mesmo uma mulher perversa e vingativa. No entanto, existe nela uma força superior e que a guia por caminhos que poucos conseguiram se aventurar e vencer.

O Natal estava próximo quando a conheci. Ela caminhava com passos miudinhos e ariscos, nada típicos para uma criança de doze ou treze anos de idade. Seus olhos corriam para todos os cantos, rápidos, e pareciam procurar algo além daquilo que eles poderiam observar. E quando algo a assustava, ela desaparecia na multidão. Eu olhava lá da minha janela e logo a via, brotando de algum lugar, no meio daquele povo todo. Ela parecia mágica: desaparecia aqui e, rapidamente, aparecia em algum canto distante.

musica Hey, Jude (Kiko Zambianchi) - by YouTube

Ela era uma menina de rua. E aprendera a sobreviver ali, naquele mundo cruel e frio. Um mundo que não perdoava erros e descuidos. Um mundo onde a esperteza precisava imperar. Um mundo que matava pela fome e, não raro, pelo medo.

Ela não entendia o por quê de ter que viver naquele meio. Tantas crianças corriam próximas a ela, com suas roupas caras e objetos que ela sequer sabia para que serviam. Essas crianças viviam sorrindo e ostentando uma vida que ela não conhecia. E quando ela tentava se aproximar de alguma dessas crianças, algum adulto aparecia e a enxotava. Quem sabe sua carinha suja de terra assustasse aqueles adultos e seus filhos, ou então eles temessem alguma doença? E a menina entristecia, sem conseguir entender o jeito arredio daqueles seres que deveriam ser seus semelhantes. Seria ela a culpada?

Aos poucos, ela se revoltava com tudo aquilo.

Quando a noite se aproximava, ela aparecia lá perto do restaurante. Sempre sobrava algum resto, e ela, pequena que era, acabava conseguindo alguma coisa. A dona Maria, cozinheira do restaurante, dava seu jeito e levava algo para ela comer. Mas sempre fazia isso de forma escondida. E pagou caro por isso. O dono do restaurante percebeu e demitiu a pobre mulher. Por que fez isso? Simplesmente por não querer “aquele tipo de gente” rondando por ali e incomodando seus clientes. Dali para diante, a menina passou a se alimentar com o que conseguia, e por certo, nem sempre achava algo para comer.

Certa vez a vi com um cachorro e achei algo um tanto estranho. Mesmo com tudo o que ela passava naquele mundo hostil, deu o nome de FELICIDADE ao pequeno animal. Era seu amigo, seu segundo melhor amigo. Perguntei a ela quem era o melhor amigo, achando que era algum outro morador de rua, ou então alguém que lhe ajudava, e me surpreendi com a resposta.

--DEUS é meu melhor Amigo.

Vi ali que aquela menina era diferente. Juro que quando ela se virou e saiu, procurei um par de asas nas costas dela. Não sei o que pensei, nem sei se entendi direito toda aquela situação, mas vi esperança nela. Não nos olhos, mas esperança na alma.

E assim, o tempo passou. Ela arranjou um violão e aprendeu a tocar. Felicidade, seu cachorro, não largava dela, e onde um estava, o outro estava também. Me acostumei tanto a ver aqueles dois, que quando eles não apareciam, eu me preocupava. Mas logo eles surgiam de algum canto e eu me acalmava. Certo dia, a tristeza. Um automóvel perdeu o rumo e atropelou o cachorro, e não sei o que doeu mais. Se ver o pobre animal no chão, ou olhar para o rosto coberto de pranto da menina.

Mesmo assim, com toda tristeza, ela seguiu em frente.

Para ela, Felicidade (o cachorro) não havia morrido, e sim, virado um anjo para acompanhá-la. Não culpou Deus por ter levado ou tirado a única coisa que tinha. Pelo contrário, agradeceu a Deus por ter dado um mundo melhor ao companheiro. Ela, então, se fortaleceu e ensinou uma lição enorme para todos que a conheciam. Ter na fé um instrumento de superação e resiliência.

Ela esperou calmamente a recompensa de sua fé. Algum tempo depois, alguém a viu pelas ruas e, sem explicação, a adotou. Um casal a levou dali, e muito mais do que um teto, deram a ela uma família. Mas, o mais interessante neste ato, é que o real presente não foi para a menina, e sim para o casal. A menina deu a eles um coração recheado de amor, esperança e magia. Sim, magia. Ela consegue transformar pessoas. Faz com que nuvens negras virem a mais bela chuva de verão, e magnetiza corações de um jeito, que é impossível não sorrir quando ela está perto.

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Hoje, a menina virou mulher. Ainda não é mãe, mas acredito que isso não demore para acontecer. Como falei no começo, ela busca um amor maior, mas não qualquer amor. Ela sabe que dentro de sua fé e crença na vida e em Deus, existe um amor superior a tudo o que conhecemos. Raras são as pessoas que conseguem se revestir dessa força superior, desse amor. Ela vai conseguir, já está quase lá.

Ressentimento ou mágoa da vida? Raiva daqueles que a desprezaram ou negaram algo na infância sofrida? Por certo que não. Ela aprendeu com tudo isso, e trouxe para a vida adulta uma gana de viver e de amar seu próximo que a fez alguém de alma única.


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Este é um conto fictício em partes. Não conheci pessoalmente, ainda, a pessoa que me inspirou a criar a personagem principal, e o enredo também não é real. No entanto, algumas pessoas que passarem por aqui e se propuserem a ler o texto, reconhecerão nele uma pessoa muito querida entre os blogueiros.

É alguém que realmente sofreu muito nessa vida e teve um cachorro chamado Felicidade. Obtive permissão dela para escrever este texto baseado no que ela viveu, mas não colocarei o nome dela aqui sem sua devida permissão.

Aprendo com ela diariamente, e virou uma verdadeira irmã menor para mim. Minha maninha. Se ela autorizar, coloco rapidinho o nome dela logo abaixo do texto, mas acredito que quem a acompanha, já sabe direitinho quem é, não é Maninha?


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E como ela acabou de autorizar a divulgação do nome, alí no terceiro comentário, tenho o prazer de dizer que é a FERNANDA, a NANDA, do blog ALEATORIAMENTE.


Esse anjo em forma de ser humano é um exemplo de vida a ser seguido, e nada me deixaria mais satisfeito do que se cada um que passasse por aqui fosse até ela e constatasse por conta própria a grandiosidade da alma desta menina-moça-mulher. Ela conseguiu dar um novo significado para palavras como fé e esperança, e com isso, me fez enxergar com outros olhos a vida.


Se hoje eu penso a vida de um jeito mais leve e esperançoso, devo muito disso a ela e ao que leio e aprendo com suas palavras. Vá até o blog dela. Vale, e muito, a visita. Tenho certeza de que você se sentirá diferente unicamente pelo fato de ler o que essa mocinha escreve.


ALEATORIAMENTE


Clique no link acima para conhecer a Nanda




Marcio Jr

sábado, 10 de março de 2012

RE-ENCONTRANDO AS ORIGENS

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O quarto sufocava. Por mais que tentasse fechar os olhos, eles insistiam em permanecer abertos. O sono não vinha, e durante anos ela ficou assim, numa insônia torturante. Lá fora, a lua era convidativa, principalmente quando se juntava com a lufada de ar fresco da madrugada. O luar permitia ver o imenso gramado e as árvores, que mesmo com a penumbra batendo sob suas copas, não pareciam assustadoras como nos filmes de terror. Um pouco mais distante, a ponte e a saudade. O riacho fazia barulho, um barulho corrente e borbulhante. Ela encostou a cabeça na soleira da janela e, aos poucos, adormeceu.

Seu corpo transportou a saudade do peito para o gramado, e mesmo dormindo, se viu lá, solta na luz do luar. Descalça, sentiu nos pés a maciez rude da grama recém aparada. Seus pés, de pele fina, sentiram a necessidade de tocar mais vezes o chão, não pela tentativa de engrossar mais a pele, mas sim pela enorme energia contida em seu corpo e que precisava ser descarregada. Suas mãos eram alvas e, estranhamente, pequenas. Ela estava pequena. Ela estava criança, adolescente. Uma linda e tímida adolescente de uns 16 anos de idade.

música: Reflections of My Lyfe (The Marmalade) - by YouTube

Silvos curtos chegaram aos seus ouvidos. Cigarras. No entanto, não eram cigarras da madrugada, e sim daquelas que se escuta durante o dia. Estranhou aquilo, mas pouco importava, pois não passava de um sonho, e ali, naquele devaneio, tudo poderia acontecer. As árvores balançaram, exatamente como ela via acontecer em sua infância, e ela foi até lá, até o lugar onde costumava passar várias horas de seu dia quando mais nova.

Caminhou lentamente, deixando a grama e o orvalho umedecerem seus sentimentos. A saudade doía muito, a embargava, e ao se aproximar da figueira, sentiu um aperto enorme no coração. Estava ao lado da ponte, e um medo imenso estampou seus olhos. Não queria olhar para o outro lado da ponte, mas precisava, sabia disso. Sabia que suas origens estavam lá, esperando por ela, cobrando pelo esquecimento e pelo abandono.

Sua natureza pobre nunca a assustou. Cresceu ali e pouco conhecia de outros lugares ou de outras culturas. Era órfã de sentimentos em sua caminhada pela vida, pois tudo o que conheceu e quis estava bem ali, do outro lado daquele riacho, que em outros tempos foi um belo e vívido ribeirão de ilusões. Levantou a cabeça e forçou os olhos. Alguém estava lá, chamando-a para o outro lado.

Sua mente deu mil voltas. Sentimentos brotaram e a angustiaram. Seria ele? Estaria lá aquele que a fez sonhar e se apaixonar, para depois abandoná-la naquele lugar distante? Aquele mesmo que a entregou à sorte da saudade? Ela o amava, sempre amou, e o que restava agora era o sentimento de falta. Tantos anos esperando sua volta, sua mão, seu sorriso.

A surpresa foi maior do que aquela que ela imaginava. Não era ele, e sim, ela mesma, chamando-a. Sem pestanejar, ela pisou a ponte e caminhou. Estranha sensação. Depois que ele partiu, ela nunca mais cruzou a ponte. Talvez por medo, ou quem sabe uma negação do passado. Mas agora não. Ela caminhava sozinha, sem saber direito o que buscava.

Do outro lado, ela mesma a esperava. Mais adiante, ele repousava sob alguns arbustos, dormindo. Ela ficou parada, admirando-o. Ele estava jovem também. Mas, que loucura era aquela? Por que ele estava ali, dormindo ao relento? O sonho virara pesadelo?

Remexeu as entranhas da memória e relembrou do dia em que ele se fora. Na noite anterior, teriam um encontro, mas ela se amedrontou diante da timidez e da falta de coragem em assumir seus sentimentos mais íntimos. Ela o amava e desejava, e ele a amava silenciosamente, respeitando-a em seus temores. Naquela noite, justamente naquela em que ela poderia fazê-lo ficar e mudar toda uma história, ela se acovardou e fugiu. Ele dormira ali, exatamente como fazia agora.

No dia seguinte, ele partiu, juntamente com a família. Partiram para outra vida, para outra existência. Um acidente na rodovia os fez de vítimas, e ninguém sobreviveu.

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Quem sabe se ela suprimisse o medo e o tocasse, ele acordaria e desistiria de partir, mas era somente um sonho, um sonho do qual ela não queria acordar. Um sonho onde ela poderia tê-lo e protegê-lo, nem que somente diante dos olhos e sem tocá-lo. Mas ela o tinha perto.

Estranhamente, depois de vários anos, ela conseguia sonhar novamente. Buscou tanto isso, vê-lo mais um dia, mais um instante, um mero instante.

Estava decidida, ficaria ali, naquele mundo novo que se apresentou a ela. Um mundo onde, por mais que a saudade doesse, ela tinha algo que tanto buscava, seu primeiro, único e verdadeiro amor.

Jamais acordou. Sua vida, agora, está na essência de um amor do qual ela fugiu. Seu semblante, para quem a olha deitada naquela cama, é sereno e terno. Mas, o que ninguém imagina, é que ela se recusa a despertar. Está lá, zelando pelo sono eterno de alguém que ama.




Marcio JR