sábado, 22 de novembro de 2014

RE-ENCONTRANDO AS ORIGENS (re-edição)

re-edição

image by Google
O quarto sufocava. Por mais que tentasse fechar os olhos, eles insistiam em permanecer abertos. O sono não vinha, e durante anos ela ficou assim, numa insônia torturante. Lá fora, a lua era convidativa, principalmente quando se juntava com a lufada de ar fresco da madrugada. O luar permitia ver o imenso gramado e as árvores, que mesmo com a penumbra batendo sob suas copas, não pareciam assustadoras como nos filmes de terror. Um pouco mais distante, a ponte e a saudade. O riacho fazia barulho, um barulho corrente e borbulhante. Ela encostou a cabeça na soleira da janela e, aos poucos, adormeceu.

Seu corpo transportou a saudade do peito para o gramado, e mesmo dormindo, se viu lá, solta na luz do luar. Descalça, sentiu nos pés a maciez rude da grama recém aparada. Seus pés, de pele fina, sentiram a necessidade de tocar mais vezes o chão, não pela tentativa de engrossar mais a pele, mas sim pela enorme energia contida em seu corpo e que precisava ser descarregada. Suas mãos eram alvas e, estranhamente, pequenas. Ela estava pequena. Ela estava criança, adolescente. Uma linda e tímida adolescente de uns 16 anos de idade.

Silvos curtos chegaram aos seus ouvidos. Cigarras. No entanto, não eram cigarras da madrugada, e sim daquelas que se escuta durante o dia. Estranhou aquilo, mas pouco importava, pois não passava de um sonho, e ali, naquele devaneio, tudo poderia acontecer. As árvores balançaram, exatamente como ela via acontecer em sua infância, e ela foi até lá, até o lugar onde costumava passar várias horas de seu dia quando mais nova.

Caminhou lentamente, deixando a grama e o orvalho umedecerem seus sentimentos. A saudade doía muito, a embargava, e ao se aproximar da figueira, sentiu um aperto enorme no coração. Estava ao lado da ponte, e um medo imenso estampou seus olhos. Não queria olhar para o outro lado da ponte, mas precisava, sabia disso. Sabia que suas origens estavam lá, esperando por ela, cobrando pelo esquecimento e pelo abandono.

Sua natureza pobre nunca a assustou. Cresceu ali e pouco conhecia de outros lugares ou de outras culturas. Era órfã de sentimentos em sua caminhada pela vida, pois tudo o que conheceu e quis estava bem ali, do outro lado daquele riacho, que em outros tempos foi um belo e vívido ribeirão de ilusões. Levantou a cabeça e forçou os olhos. Alguém estava lá, chamando-a para o outro lado.

Sua mente deu mil voltas. Sentimentos brotaram e a angustiaram. Seria ele? Estaria lá aquele que a fez sonhar e se apaixonar, para depois abandoná-la naquele lugar distante? Aquele mesmo que a entregou à sorte da saudade? Ela o amava, sempre amou, e o que restava agora era o sentimento de falta. Tantos anos esperando sua volta, sua mão, seu sorriso.

A surpresa foi maior do que aquela que ela imaginava. Não era ele, e sim, ela mesma, chamando-a. Sem pestanejar, ela pisou a ponte e caminhou. Estranha sensação. Depois que ele partiu, ela nunca mais cruzou a ponte. Talvez por medo, ou quem sabe uma negação do passado. Mas agora não. Ela caminhava sozinha, sem saber direito o que buscava.

Do outro lado, ela mesma a esperava. Mais adiante, ele repousava sob alguns arbustos, dormindo. Ela ficou parada, admirando-o. Ele estava jovem também. Mas, que loucura era aquela? Por que ele estava ali, dormindo ao relento? O sonho virara pesadelo?

Remexeu as entranhas da memória e relembrou do dia em que ele se fora. Na noite anterior, teriam um encontro, mas ela se amedrontou diante da timidez e da falta de coragem em assumir seus sentimentos mais íntimos. Ela o amava e desejava, e ele a amava silenciosamente, respeitando-a em seus temores. Naquela noite, justamente naquela em que ela poderia fazê-lo ficar e mudar toda uma história, ela se acovardou e fugiu. Ele dormira ali, exatamente como fazia agora.

image by Google
No dia seguinte, ele partiu, juntamente com a família. Partiram para outra vida, para outra existência. Um acidente na rodovia os fez de vítimas, e ninguém sobreviveu.

Quem sabe se ela suprimisse o medo e o tocasse, ele acordaria e desistiria de partir, mas era somente um sonho, um sonho do qual ela não queria acordar. Um sonho onde ela poderia tê-lo e protegê-lo, nem que somente diante dos olhos e sem tocá-lo. Mas ela o tinha perto.

Estranhamente, depois de vários anos, ela conseguia sonhar novamente. Buscou tanto isso, vê-lo mais um dia, mais um instante, um mero instante.

Estava decidida, ficaria ali, naquele mundo novo que se apresentou a ela. Um mundo onde, por mais que a saudade doesse, ela tinha algo que tanto buscava, seu primeiro, único e verdadeiro amor.

Jamais acordou. Sua vida, agora, está na essência de um amor do qual ela fugiu. Seu semblante, para quem a olha deitada naquela cama, é sereno e terno. Mas, o que ninguém imagina, é que ela se recusa a despertar. Está lá, zelando pelo sono eterno de alguém que ama.


Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

sábado, 1 de novembro de 2014

OS “S” DA VIDA

image by Google

Cósmica é a força que me rege. Deus está em tudo, na força descomunal do sol, na fragilidade de uma flor de pessegueiro, nas folhas que apodrecem para adubar a terra, num cometa que corta o universo, num mero átomo que constitui tudo... é sim! Mas Deus não está sentado num trono, emburrado e carrancudo.

É essa força cósmica que me impulsiona, e jamais vou me deixar desistir daquilo que sonho e almejo.

Eu sonho em ser feliz. Eu vou ser feliz, muito mais do que já sou. Eu almejo um momento único, onde atracarei o passado ao presente, somando-os para, depois, bater tudo num liquidificador, fazendo assim um belo suco para temperar o futuro. Eu vou buscar aquilo que tanto me faz sonhar.

Samara me faz sonhar. Me faz viver. Me ensina a amar a cada dia.

Vida deveria começar com “S”. “S” de Samara Bassi.




Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

SOLTANDO OS BICHOS



Cobra cipó (Chironius sp) - imagem do Google
―Não, Aretha! A resposta é não, e pronto!

O pai, que interrompera a reunião com alguns fornecedores para atender a filha ao telefone, começava a dar mostras de impaciência.

―Existe uma coisa chamada responsabilidade, minha filha. Não estou interessado se seu namorado pertence ao Green Peace, ao WWF, ao Green Card ou ao CPF, FMI, CNI, ou seja lá qual sigla de ONG ambiental que ele tenha resolvido entrar agora. O que sei é do compromisso que assumimos quando tomamos nossas atitudes. Então, se ele resolveu surrupiar animais para, com isso, protegê-los, terá que dar jeito de se virar com as consequências desses atos, sejam eles legais ou não. Ele foi suficientemente capaz de cometer tal coisa, pois que seja capaz de se virar com as implicações. E nem por brincadeira ele vai guardar animais roubados lá no nosso apartamento.

―Mas, mas, mas... Ítalo, por favor! ―a filha implorava, chamando o pai pelo nome, o que fazia com que ele se irritasse ainda mais.

―Olha. Tudo bem você querer ser independente aos 16 anos de idade. Claro, pode ser. Não sou nenhum troglodita que vive no passado. Você é inteligente e capaz. Mas antes de querer arbitrar sua vida, arranje um emprego. Eu te emancipo se assim você achar que precisa. Porém, enquanto estiver dependendo do meu dinheiro, ou do dinheiro da sua mãe, vai respeitar nossas regras. E não vai ser me chamando pelo meu nome, ao invés de pai, que você vai me amansar.

­―Tááááá... mas pai, é só um animalzinho indefeso, que...

―Não! Você sabe que sou alérgico a pelo de animais.

―Não é animal de pelo, pai!

―Piorou. Emplumados fazem sua mãe ter taquicardia. Não, e pronto!

―Também não tem penas, pai Ítaloooooooooooooooo!

―Escamas? Tá de brincadeira! Nem você suporta cheiro de peixe. Desista. Em casa nós conversamos. É uma boa hora para eu, você, sua mãe e seu irmão começarmos a evoluir certos assuntos. Beijos.

Ítalo desligou o telefone e voltou para a reunião. Era uma fase difícil, por certo. O filho mais novo, com 13 anos, mal saia de casa. Era um alucinado por vídeo game. E a filha, essa achava que deveria salvar todos os animais mundo, desde que não precisasse abrir mão da roupa de grife, dos sapatos caros, do celular ultra-moderno e, obviamente, pudesse fazer isso lá de dentro da academia de ginástica. Ah! Sim. Baratas, ratos, morcegos, urubus, hienas, minhocas e alguns outros animais um tanto mais “nojentos” estavam fora de sua lista. Eram feios, medonhos, ou davam um certo asco. O bom, mesmo, era salvar um urso bem fofinho, ou quem sabe um cachorrinho perdido, mas ali na esquina, para não precisar ir muito longe, não é?

Já em casa, Ítalo estranhou a ausência da filha. Mas, é claro, ela deveria ter armado um mau humor sem fim. Sempre que ela era contrariada, o mundo desabava. E essa situação tendia a perdurar por semanas, ou até que ela precisasse de um adiantamento da mesada.

―Meu amor. A Aretha não chegou ainda?

―Nem sei, Ítalo. ―a esposa respondeu, sentando-se ao lado dele, exausta. ―Aquele pessoal da clínica me deixou quase maluca. Te juro que se eu pudesse voltar no tempo, faria faculdade de biologia e iria estudar bichos preguiça. Enfermagem dá um estresse sem tamanho, e ser dona de clínica ainda por cima... aííí, to morta.

―E o Júnior?

―Bom... esse nem precisa olhar pra saber onde está, não é? Lá no quarto, com o vídeo game. E eu to preocupada. Será que essa geração vai saber evoluir normalmente, como nós fizemos?

―Em que sentido, meu dengo?

―Ah! Sei lá! Tem coisa que é natural na criançada. Masturbação, por exemplo. Tenho certeza de que você aprendeu sozinho.

―Nem se preocupe. Já, já alguém lança um jogo pra isso. Porrinha a distância. Sabe, eu poderia ficar rico com isso. Até que você me deu uma boa ideia.

Os dois caíram na gargalhada, mas pararam quando repararam que Aretha entrara em casa. A menina, apressada, passou por eles e sequer deu atenção. Foi para o corredor e trancou-se no quarto. Um pouco depois, enquanto os outros estavam à mesa, ela saiu do quarto e foi para a área de serviço, ou melhor, para a outra porta de saída do apartamento, e recolheu uma caixa de papelão. Então, cuidando para não ser vista, esgueirou-se novamente pelo corredor e, alguns minutos depois, retornou e juntou-se aos demais.

―Pai, eu...

―Agora não, filha. Estive conversando com sua mãe, e chegamos a conclusão de que devemos procurar te entender mais. Deixa pra gente conversar melhor sobre isso depois da refeição, tá bom?

―Então você vai deixar eu trazer o bichinho aqui pra casa?

­―Não. Não vou. Mas te prometo que a gente vai achar a melhor solução pra isso. Sei que é importante pra você. Mas não vai ter lugar pra nenhum bicho aqui no apartamento.

A menina suspirou e deu de ombros. Talvez a situação não estivesse assim, tão ruim, afinal o pai entendera que ela precisava ser ouvida vez ou outra. E por fim, o “bichinho” já estava muito bem escondido lá no banheiro do fim do corredor, acomodado naquela caixa de papelão, num cantinho atrás do armário.

“Ninguém usa aquele banheiro mesmo.” ―a menina pensou, enquanto arrumava seu prato.

Depois da refeição, a família se reuniu na sala para uma longa discussão. E por incrível que possa parecer, os filhos participaram ativamente da conversa, fosse reclamando ou dando palpites ou tentando mostrar soluções. Algumas extremamente estapafúrdias e completamente fora da realidade, mas já era alguma coisa. E assim foi, até que todos resolveram abandonar a sala. Cada filho foi para seu quarto, e o casal alojou-se na sacada. Ficaram por ali durante pouco mais de uma hora, mas o cansaço da esposa fez com que a paquera sucumbisse.

―Amor! Tenho mesmo que tomar esse dito remédio? Vou levantar umas dez vezes durante a noite para ir ao banheiro.

―Tem sim, Ítalo. E não discuta. Mas faça o favor de usar o banheiro do corredor. Não quero que a defesa civil interdite nosso banheiro pela bomba química que você deixa a cada vez que usa esse remédio.

―Hehe... Pode deixar!

Tudo corria tranquilamente, até que lá pelo meio da madrugada o filho abriu a porta do quarto dos pais e deitou-se, pedindo um abraço para a mãe. Ele não parecia assustado, mas mesmo assim, a mãe perguntou o que estava acontecendo.

―Sei lá, manhê! To jogando um game de Aliens. Daí, quando fui ao banheiro, lembrei que a lâmpada lá do meu quarto não ilumina nada e fiquei com medo. Usei o banheiro do corredor, e tenho certeza de que meu passarinho tava me olhando. E tava parecendo com um Alien. To com medo daquele jogo ter transformado meu passarinho em ET, manhê!

―Tá vendo só! São esses jogos. Você joga demais, meu amorzim! Cansei de falar para o Ítalo parar de comprar todo esse veneno virtual. Mas vamos dormir. Teu passarinho não vai virar ET não. Mamãe te protege.

A mãe sequer terminou de falar e o menino já havia dormido. Ela, um pouco estressada ainda, começou a fechar os olhos para tentar dormir, mas desistiu assim que notou que o marido se mexia demasiadamente. Possivelmente ele levantaria, ainda sonolento, para ir ao banheiro. E foi exatamente o que aconteceu.

―No banheiro do corredoooooor! ―ela falou firmemente, sabendo que ele ainda dormia.

imagem do Google
Ítalo saiu do quarto e levou, aproximadamente, uns 20 minutos para retornar. Quando deitou ao lado da mulher, chamou-a e, sussurrando, fez uma pergunta que a deixou espantada.

―Meu dengo! Você acha que, nessa idade em que estou, ainda preciso fazer cirurgia de fimose?

―O que? Tá maluco? Por que tá me perguntando isso?

―Ué! Você é a enfermeira. Eu sou apenas um analista de mercado, e não entendo nada dessas coisas.

―Tá, entendi. Mas por que tá tocando nesse assunto nessa hora? E é claro que você não precisa de cirurgia alguma.

―É que tive a nítida impressão, logo depois de me sentar no vaso sanitário, de que meu pinto mostrou língua pra mim.

―Kkkkkkkkk. Meu querido, me diz! Você não andou tomando nenhum chazinho de cogumelo, não é? E nem tem jogado vídeo game com o Junior, claro! Vai dormir, vai.

 Lá pelas cinco horas da manhã, foi a vez da esposa acordar para ir ao banheiro. Calçou os chinelos e, ao tentar abrir a porta, viu que a mesma estava trancada. Quando voltou o olhar para a cama, viu que o filho não estava lá.

―Eu não acredito. O Junior resolveu se trancar no meu banheiro. E vai ficar por aí um tempão. Bom, vou lá no corredor. Espero que o fudum tenha passado.

Minutos depois, o marido acordou abruptamente. Alguém parecia berrar, pedindo por socorro.

―Que droga é essa? Meu amor, você escutou alguém gritar? Meu amor... ué, cadê ela?

Novo grito, e Ítalo percebeu que era sua esposa quem gritava. Ele nem pensou no que fazer. Levantou rapidamente e partiu em busca da origem daquele escândalo. E quando chegou ao corredor, reparou que os berros partiam do banheiro. Em instantes, tanto a filha quando o filho se juntaram ao pai.

―Que tá pegando, paiê? A mãe tá sendo abstraída por algum Alien?

―Abduzida, Junior! Abduzida. E não tem Alien nenhum aí dentro do nosso banheiro.

Os gritos silenciaram por instantes, mas logo voltaram com toda a intensidade. Ítalo tomou distância e chutou a porta, fazendo-a abrir e bater na parede, mas quando ele foi entrar, a porta voltou e acertou seu nariz, arrancando um filete de sangue.

―Aaaaaiiiii! Essa doeu. ―ele reclamou, mas entrou no banheiro e procurou pela esposa.

Ela estava sentada no vaso sanitário, pálida e olhando para o meio das pernas. Ítalo correu os olhos pelo ambiente e, sem ver nada de anormal, sossegou um pouco.

―O que tá acontecendo, meu amor?

―É... é... é que minha perereca mostrou língua pra mim!

―O queeeee? Tá maluca?

―E tem mais... ela tinha dois olhos... e um nariz... socorrooooooooooooo.

Aretha empalideceu. Lentamente, ela se desviou do pai e foi para a parte de trás do banheiro, justamente onde havia deixado a caixa de papelão. E desanimou ao ver que a caixa estava aberta.

―Genteeeee. Pai, mãe... não se assustem. ―a filha falou calmamente, deixando o pai curioso

―Não se assustar? Não se assustar com o que, minha filha?

―Bom, é que... sabe aquele bichinho que você não queria que eu trouxesse pra cá? Pois é, eu precisei trazer!

―Você me desobedeceu?

―Que bicho? ―a mãe perguntou, parando com os gritos.

―Cadê esse bicho, Aretha? ―o pai tomou a palavra, mostrando irritação.

―Tava alí, naquela caixa de papelão. Mas, agora, acho que ele tá dentro do vaso sanitário.

―E que bicho é esse, afinal? ―a mãe relutou, mas acabou perguntando.

―Nada de mais, mamãe. Só uma cobrinha... coisa mínima.

―Uma cobra, minha filha? ―o pai estufou o peito e colocou as mãos na cintura. ―Eu não te falei que não queria bichos aqui em casa? E você, ainda assim, traz um pra cá? Pior ainda... uma cobra?

―Não dá nada, pai. Bichinho mansinho.

―Mansinho? E se essa cobra pica alguém? Vem cá pra sala, que a gente precisa conversar.

―Paaaaaaaaareeeeeem! ―a mãe berrou, chamando a atenção dos demais. ―Enquanto vocês ficam com essa porcaria de discussão, eu to aqui, com uma cobra se esfregando na minha bunda! O que eu faço? Dá pra alguém me falar? E se ela resolve se assustar e entrar na toca?

―Manhê, ela não vai fazer isso! Fica calma!

―Ficar calma? Não é na tua toca que ela vai se esconder, né!

―E o que nós fazemos, amore?

―Como, “o que nós fazemos”, Ítalo? Você não é o homem da casa? Tira esse bicho daqui. E depressa!

―Eu tenho uma ideia melhor. Já volto.

―Ítalooooooooooooo! Volta aqui, seu traste.

A esposa berrou, mas de pouco adiantou. Então, como o marido fugira, a responsável por aquilo tudo, Aretha, é quem deveria resolver a situação.

―Espera, manhê. Vou ligar pro meu namorado pra ver o que eu faço.

Aretha sequer esperou pela reação da mãe. Tratou de sair rapidamente do banheiro, mas não foi sozinha. O filho também agiu de forma rápida e correu, e assim, a mãe ficou lá, sozinha.

Algum tempo depois, aproximadamente meia-hora, o marido voltou, acompanhado pelo porteiro e pelo síndico do prédio. Quando entraram no banheiro, encontraram a mulher cantando uma cantiga de ninar. Ela, ao vê-los, tomou o maior susto.

―O que esses dois estão fazendo aqui, Ítalo?

―Fui buscar ajuda, amore! Eu não vou colocar a mão numa cobra. Nem pensar nessa hipótese.

―Ah! Tá! Como se já não fosse o suficiente eu aqui, com uma cobra gelada se esfregando na minha perseguida, agora você quer me constranger com o prédio inteiro. Some com esse povo daqui. Pode deixar que to me entendendo com a cobra. To cantando pra ela dormir. E trata de pensar em alguma coisa, pois não sei até quando eu aguento. To quase me borrando, e acho que ela não vai gostar muito do cheiro.

Cobra cipó (Chironius sp) - imagem do Google
Ítalo não sabia o que fazer. Pensou, pensou, até que resolveu ligar para os bombeiros. No entanto, como o sinal de celular no Brasil é muito ruim, a atendente não entendeu patavinas do que estava acontecendo.

―Repita, senhor! Por favor!

―Repetir de novo, moça? Minha mulher está desmoronando. Tá ardendo de raiva. Dá pra mandar logo uma equipe?

―Desmoronando? Ardendo? Ok, senhor, agora eu acho que entendi. Prédio em chamas com risco de desmoronamento. Estou acionando as equipes. Aguarde no local e, por favor, mantenha a calma.

Em menos de quinze minutos, quatro caminhões dos bombeiros e vários jornalistas estavam no local. Ítalo, desesperado, tentava explicar tudo, e mal reparou que um fotógrafo passou por ele e foi para o banheiro, filmando tudo o que acontecia. No dia seguinte, a foto do bombeiro resgatando a cobra, por entre as pernas da mulher, estava na primeira página da maioria dos jornais da cidade. E o bafafá correu solto.

―Que mico, Ítalo! Que mico! Vou esfolar você e, claro, a Aretha! Nem vou pra clínica. Imagina minhas clientes, minhas funcionárias e mais aquele mundo de gente lá de perto? Como se não bastasse, aquela praga de fotógrafo me pegou de pernas abertas bem numa época que to sem tempo pra me depilar. Ai, que raiva! Eu vou te capar, seu traste. Pra que chamar os bombeiros?

―Tá reclamando do que? Eu passei por covarde, já me ligaram várias vezes tirando o maior sarro, e a polícia ambiental ainda tá me chamando pra esclarecer tudo isso. Pra completar, o dono verdadeiro da cobra quer me processar, alegando que a cobra saiu traumatizada por tudo que ouviu, viu e cheirou. Onde eu arranjo um psicólogo para cobras?



Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

ONTEM, HOJE, DEPOIS DESSA VIDA


image by Google





“Não é sóbria o tempo todo e de sanidade acometida, se faz louca por si mesma. Carrega dessas peculiaridades que desconfio bem e não me fazem parar, ainda que cegas sejam as minhas procuras.”.
Samara R. Bassi







Foi num desses fins de madrugada, em que eu esperava pacientemente a primeira ponta de sol aparecer pela janela, que me vi preso em argumentos meus sobre tempo e vida, mas que eu mesmo contestava.

Aliás, uma dessas contestações era, justamente, por que eu insistia tanto em refletir sobre essas coisas. Afinal, era tão simples viver. Bastava nascer, ver os dias passarem um após o outro, e depois tentar dormir calmamente, num sono sem fim.

Mas era inevitável. A cada fim de noite eu estava lá no meu canto, remoendo meus neurôniors. E se o sol demorasse mais do que o costumeiro para brotar do horizonte, o meu próprio norte perdia um tanto do magnetismo. Quer entender o por quê disso? Bom, vamos pegar algo bem simples e trivial para começar. O amor. Por que amamos? 

image by Google
Depois de algum tempo perambulando por esse mundo, é natural que tentemos encontrar uma companheira ou companheiro. Afinal, isso é intrínseco da natureza humana, seja pela perpetuação da espécie, ou mesmo pela necessidade de companhia. E lá vamos nós numa busca que em seu começo chega a ser até desesperadora, isso dado ao nível de timidez que a pessoa carregue. O engraçado é que os valores mudam conforme o tempo biológico da pessoa evolui. Quanto mais novo, mais fútil é a qualidade de “amor” buscado. Sim. No começo, procuramos mais pelos atributos físicos. Para os garotos, uma garota para um relacionamento tem que ter uma bela bunda, seios que agradem, rosto bonito, coxas grossas, um celular com crédito suficiente para que ele possa ligar a cobrar quando estiver sem dinheiro e, claro, ter a libido em alta. Já para as meninas, e mesmo elas sendo um tanto adiantadas nessa parte de relacionamento, os valores mesclam um pouco. Além de um belo corpo, com a famosa “barriga tanquinho” e o peitoral mais definido, um rapaz bem empregado pontua melhor. Cartões de crédito e inteligência contam muito nessa fase.

Passado algum tempo, tanto os rapazes quanto as moças repensam um pouco sobre tudo isso. Obviamente, o tesão aumenta com o passar dos anos, e corpo continua sendo importante, mas o sentimento começa a falar mais alto, e o que era “dispensável” anteriormente, já passa a ter um valor mais elevado, principalmente quando o assunto é responsabilidade. Inteligência também fala muito alto por aqui. Ah! Sim. Aqui, o feio já deixa de ser tão feio. Interessante isso, não?

E chegamos, enfim, ao momento da união estável. Estamos amando. Casamos ou juntamos os trapos e vamos viver uma vida compartilhada, dividindo contas e lucros, responsabilidades e irresponsabilidades, sorrisos e tristezas, com a pessoa amada. Então, lá vem a ciência afirmando que tudo é hormonal e que, pasmem, o amor dura apenas 7 (sete) anos. E no fim desse prazo, as brigas intensificam, as discussões tornam-se mais acaloradas e, naturalmente, o que era amor passa a ser apenas uma situação de acomodo (diante das necessidades), onde o casal permanecerá na mesma casa apenas se suportando (na maioria das vezes com a desculpa de que estão juntos unicamente "pelo bem-estar dos filhos"), ou cada um partirá para seu canto.

Daí eu pergunto. Se diante das facilidades de manter-se informado ou de buscar conhecimento desde a infância, e sabendo desse detalhe dos sete anos, por que sempre insistimos em buscar o tal do amor? E o pior. Não contentes em sofrer com um único relacionamento, quando terminamos o primeiro, partimos para o segundo, terceiro, quarto... Será que somos masoquistas por natureza?

Outra coisa que me leva o restante dos cabelos. Por que tentamos tanto adivinhar “de onde viemos e para onde vamos”? É claro que a ciência vem se esforçando muito para responder essas questões, mas muito do que se tem na crendice popular é pura especulação, mas mesmo assim alguns traçam uma vida inteira baseando-se em sinais divinos que simplesmente não existem. Tá, eu sei. Dizer que esses tais sinais são falsos ou inexistentes, descabidos e próprios para exploração da fé, é pura especulação minha.

Mas não seria mais fácil viver intensamente enquanto estamos por aqui, com os pés no chão para, depois de morrer, descobrir para onde vamos? Isso, obviamente, fazendo menção a vida após a morte. Ainda existe a questão de “para onde caminha o universo”, mas isso eu posso garantir que ninguém que está aqui, neste instante, viverá o tempo suficiente para ser testemunha de mudanças significativas no destino do espaço.

image by Google
E a busca desenfreada pelo corpo perfeito? Falar em saúde eu até entendo, afinal, envelhecer de forma saudável é necessário, mas a vaidade vai além daquilo que os padrões de qualidade de vida suplicam. Cremes, intervenções cirúrgicas, dietas e regimes extremistas, adição de corpos estranhos e muitas vezes desnecessários no corpo (próteses de silicone nos seios, na bunda e em outros cantos), mutilação do corpo, consumo de substâncias nada recomendadas para melhoramento da genética... e mais um sem número de atitudes que poderiam figurar por aqui e que, lá na frente, não terão valido de nada, pois a pele vai enrugar, os peitos, a bunda e o saco (do homem, claro) vai sofrer os efeitos da gravidade, e todos os que sobreviverem até a época da velhice... envelhecerão. E todo esse esforço para manter o corpo durinho e pra cima terá valido a pena?

E a mania que temos de julgar tudo e a todos? Rotulamos, definimos quem é belo e quem é feio, tentamos determinar o que se deve consumir por isso fazer bem e aquilo não, ditamos regras sobre gostos e preferências, negligenciamos a etiqueta natural do bom senso e da educação que devemos ter para com o próximo... e quando exigimos um tratamento respeitoso para nós (dentro daquilo que se diz correto com relação a ética humana mediante o preconceito e a discriminação), “inocentemente” chamamos alguém de negão, polaco, gordo, loira, careca, idiota, burro, aleijado, retardado, vagabunda, piranha, puta, gay, bicha, viado, magrão, ralé, pobre, etc... etc... etc... Em resumo, esquecemos de olhar para nosso próprio rabo, mas questionamos, rotulamos e julgamos o rabo dos outros. Nessa hora, a ética e a educação que se dane, não é?

Puxa vida, ainda tem a questão das reclamações. Somos reclamões em demasia. Reclamamos daqueles que poluem em alta escala, do trânsito engarrafado, do político corrupto e safado, do vizinho que fala demais, da companhia telefônica que não presta corretamente seus serviços, do padre e do pastor que vivem tentando amealhar mais seguidores para suas igrejas, das crianças bagunceiras do apartamento ao lado, do cachorro de uma casa próxima que latiu demais na noite passada e te acordou de madrugada, das ervas daninhas que cresceram no quintal, e de uma infinidade de outras coisas.

Uma das reclamações que mais ouço (vinda de motoristas habilitados) é contra os radares para flagrar os apressadinhos no trânsito. Faça um teste. Pergunte para esse reclamão se ele, habilitado e conhecedor da legislação vigente do trânsito, respeita as leis. Se ele disser que sim, faça outra pergunta a ele. “SE VOCÊ RESPEITA AS LEIS DE TRÂNSITO, ENTÃO POR QUE TEME OS RADARES?”. Bingo.

Ainda no trânsito, tem aqueles que vivem falando mal de outros motoristas. Mas algo perto de 90% (noventa por cento) desses motoristas que tanto reparam nos outros, vivem falando ao celular enquanto dirigem, ou teimam em andar lentamente pela faixa da esquerda (enquanto falam ao celular), ou não estão usando o cinto de segurança (enquanto falam ao celular). Novamente esquecendo de olhar para o próprio rabo?

As reclamações quanto à poluição. Realmente, isso é algo sério. Mas, me diz! Você é daqueles que têm o hábito de reciclar? Você guarda o papel de bala no bolso, para jogar no lixo quando chegar em casa, ou joga o dito papel na rua? Ah! Tá! Mil perdões. É somente um papelzinho de bala, e isso nem faz diferença, não é? Então, quando for reclamar da fumaça produzida por alguma fábrica próxima de sua residência, lembre que a “fumacinha” que ela produz é insignificante perto da poluição gerada por um país como a China, por exemplo. Então, por que essa fábrica perto da sua casa precisaria parar de poluir, se a “fumacinha” dela nem faz diferença? Presta atenção, mané.

E assim, depois de algum tempo olhando minha janela, os raios do sol me mostraram que era hora de trabalhar. Como nas noites anteriores, não cheguei a conclusões muito apuradas, mas de algumas coisas eu posso garantir que tenho certeza. É algo mais ou menos assim:

image by Google
amo porque nasci para amar, e vou tentar até acertar, mesmo com a ciência dizendo que o amor dura apenas 7 anos;

não faço a mínima idéia de onde veio esse universo sem fim, e muito menos como ele terminará ou para onde ele vai, mas sei que quero aproveitar minha estada por aqui da forma mais intensa possível;

vida após a morte? Sei lá! O que sei é que tenho um plano B, e se existir alguma coisa para o “depois”, seja céu ou inferno, já tenho até uma sócia para abrir um open-bar, seja lá onde for;

vaidade? Já fui mais. Hoje, meu corpo tem outras necessidades, e venho aprendendo a escutar seus anseios. Tenho melhorado com o tempo;

quanto a maldita mania de julgar e rotular, isso é um caso sério. Ainda levaremos algumas vidas para melhorar essa condição. Ops... e se não tivermos outra chance para voltar e melhorar? Melhor fazer algo agora, não é?

reclamar, reclamar e reclamar. Chego a pensar que isso é inato ao ser humano. Mas um dia, com o passar do tempo, ele melhora.

Enfim, como diz a citação que utilizei lá no começo, a vida se faz louca por si mesma. É. As procuras podem ser cegas, mas mesmo quando perdemos um dos sentidos, a natureza faz lá suas adaptações, e assim continuamos caminhando.

Até penso que esta não é minha primeira passagem por esse mundo. Quem sabe não tenha dado tempo suficiente para aprender tudo, ou até eu tenha aprendido de um jeito errado. Só sei que se voltei, é por gostar de ter amado uma vez, pois não há nada melhor do que ser um apaixonado pela vida e por tudo aquilo que ela proporciona. Principalmente quando se trata de assuntos do coração.

E por aí eu vou, já vendo a lua clarear minha janela. Amanhã tem mais divagações. 



Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

domingo, 28 de setembro de 2014

TEMPOS MODERNOS – CHOQUE CULTURAL



São Paulo/Capital - imagem coletada no Google
―Mas, pai! Eles precisam ficar, necessariamente, aqui em casa?

―E que mal há nisso, Helô? ―o pai retrucou, armando uma expressão de espanto. ―Nosso apartamento é enorme, com quartos sobrando, e eles ficarão apenas uma semana.

―Afinal, por que essa visita assim, tão repentina?

―O primo está procurando propriedades por aqui para investir o dinheiro dele, que não é pouco. É claro que eu quero faturar alguma coisa com isso, pois sou corretor, e um dinheiro a mais é sempre bom. Não custa nada mimá-los um pouco. Sem contar que eles são do interior e raramente viajam para grandes centros. Ficariam perdidos numa metrópole como São Paulo, e poderiam até cair nas tramoias dos pilantras que existem por aqui e que estão apenas esperando por vítimas fáceis.

―Eles cheiram a bosta de vaca, papai! E tem mais. Como fica nossa privacidade?

―Pode parar com essas atitudes e com esse pensamento preconceituoso, filha! Eles são do interior sim, mas não são Neandertais. A educação deles é outra, claro, com valores diferentes dos nossos. O que você julga importante, para eles pode não ter serventia alguma. A cultura deles é outra também, mas isso é bom. Vejo pelo lado positivo. Você poderá levar seus primos para passear num shopping. Tenho certeza de que eles nunca entraram em nenhum. Você poderá apresentá-los para seus amigos...

­―O queeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeê? Never, dad! Never! Como vou apresentar eles para meus amigos? Vai ser um mico só! Imagine eu falando “esses são meus primos Cajuíno, Perestróica e Solstício”. Tem dó, papai! Isso lá é nome de gente?

―Equinócio, filha! O nome do seu primo é Equinócio, e não solstício! ―o pai desanimou, baixando os ombros. ―Sei que são nomes, digamos, diferentes, mas isso não é problema nosso, não é? Cabe a nós tratá-los com respeito e educação, independente de como são seus nomes.

―Mas, pai... Perestróica? De onde seus primos acharam esses nomes? Equinócio? Cajuíno? Se esses são os nomes dos filhos, imagina o nome que eles dão para os animais de estimação!

―Isso vai ser mais difícil do que eu imaginei. Deus meu, dai-me paciência.

Repentinamente, pai e filha notaram a presença de mais alguém na sala, que passou por eles e se jogou no sofá para poder esticar as pernas. Os dois cruzaram o olhar e permaneceram algum tempo calados, até que aquele novo personagem tomou a palavra.

―O que foi, sogrão? Fiz algo errado? E você, meu amor? Por que levantou tão cedo hoje? Não quis ficar mais um tempinho nos braços da tua “momôzinha”? Aliás, Helô, quero que você vá comigo lá naquele tatuador da Praça da República. Ele recebeu uns piercings da hora, meu amor. To pensando num de seio pra você e num vaginal pra mim. Vai ser dá hora! Que tú acha, sogrão? Fala aí, véi.

Pai e filha se olharam novamente e suspiraram. A filha arregalou os olhos e mirou o pai, como se questionasse algo, e sem ter o que fazer, o pai desanimou de vez.

―É! Acho que você tem razão, Helô! Não será uma semana fácil.

Léo, o pai de Helô, reconsiderou o convite que havia feito ao primo, e tratou de tentar remediar aquela situação desconfortável em que se metera. Telefonou para o primo no mesmo dia, mas foi em vão. Inventou uma história qualquer, porém, notou que o primo não estava compreendendo o motivo, e optou por deixar que o destino seguisse seu curso. Além do que, as perspectivas de uma boa comissão com a indicação de imóveis para o parente serviriam para consertar tudo após o vendaval que se moldava para a semana. Então, que viessem o primo e sua família.

E o dia chegou. Chegou até antes do que o previsto.

Léo abriu a porta do apartamento e viu sua filha ao celular, com aspecto de preocupação. Esperou que ela desligasse o aparelho e foi até ela, questionando-a.

―O que foi, minha filha?

―O que foi? Eu digo o que foi! Aconteceu que seus primos, por um erro de data ou sabe-se lá por que, resolveram chegar um dia antes. Ligaram pra cá, e você não estava. Os empregados tentaram te localizar, mas teu celular da Vivo tava tão morto que não deu pra dar sequer um Oi, é Claro! Eu tava na faculdade, sem poder dar atenção. Então, a momô resolveu ir buscá-los! Foi isso que aconteceu!

―O quê? ―o pai esmoreceu, deixando o corpo cair no sofá. ―A Necona foi buscar os primos? Danou-se!

―Paieeeeeeeeeeê! Quer parar de chamar minha namorada de Necona! Neca. Chama ela de Neca. Mas o pior é que o senhor tá certo! Danou-se!

Tanto Léo quanto sua filha ficaram apreensivos. Neca sequer conhecia os parentes da família que estavam chegando, e diante da criação interiorana a que eles foram submetidos por uma vida inteira, era quase óbvio que um choque cultural catastrófico estava para acontecer, principalmente pelo modo muito extrovertido com o qual Neca tratava as pessoas.

As tentativas de contato por telefone entre Helô e Neca foram muitas, mas não surtiram efeito. As horas passavam e, assim, aumentava ainda mais a tensão sentida por pai e filha. Até que, sem aguentar mais a espera, Léo tomou uma decisão.

―Não aguento mais essa demora. Vou atrás deles.

―Mas, pai! E aonde você vai procurá-los?

Helô interrompeu bruscamente o que falava e olhou para a porta. Um barulho de chaves, seguido de algumas gargalhadas do lado de fora do apartamento, fez com que pai e filha se entreolhassem. E não demorou para que Neca e os primos de Léo entrassem, com todos na maior alegria.

Sem entender o que estava acontecendo, Helô questionou ao pai apenas com um olhar, o qual foi retribuído com um questionamento de olhos ainda mais arregalados.

―Primo Oscar... que bom vê-lo! ―Léo levantou a mão para um cumprimento, meio sem saber o que dizer. ―Que bom que vocês chegaram bem... e inteiros!

―Ara, sô! ―Oscar olhou com certo espanto para Léo. ―E prú quê havéra di nóis num chegá intêro? A tar da Canecona aí é boa de boléia. Sem contá que cos desvio que ela feiz, já conhecêmo metade da cidade.

―Canecona? ―agora era a vez de Helô arregalar os olhos, assustada. ―Que Canecona?

―Ué! Essa... esse... essa... ―Oscar começou a responder, mas ficou em dúvida sobre como definir ou se dirigir a Neca. ―Cumé que te chamo, Canecona? De sinhô ou de sinhá?

―Véi, na boa? ―Neca respondeu, se jogando no sofá. ―Lá no interior vocês chamam como? Se eu não me sentir desrespeitada, pode me chamar como você quiser.

―Intão tá bão! ―Oscar retomou a palavra. ―Foi essa moça que oceis mandáro pra modo de buscar nóis no aeroporto que falô ansim. Ela se apresentô como Manuela, mas disse pra chamar de Caneca ou Canecona. Modéstia parte, gosto de coisa grande, intão, chamo de Canecona.

―Ai, Deus! Me dá uma canecona de paciência. ―Helô olhou para o alto, suplicando.

Ao olhar novamente para a namorada, Helô viu que ela se divertia com a situação, e a reprovou imediatamente, mordendo os lábios inferiores. Neca sabia que a namorada, ao fazer tal coisa, tentava demonstrar irritação, mas pouco ligou e continuou rindo com tudo aquilo que ouvia.

Alguns minutos foram necessários para que os cumprimentos e apresentações fossem feitos e, em seguida, cada um foi levado para um quarto. O apartamento era enorme, e depois de todos acomodados, Léo chamou o primo para um canto, ainda mostrando preocupação.

―Está tudo bem, Oscar? A Neca não assustou vocês?

fogão a lenha - imagem coletada no Google
―Óia, primo! Nóis é do interior, mais ao contrário do que oceis aqui da capitar pensa, nóis não é burro não. Diz pra mim! Ocê acha que lá donde nóis veio num tem gay? E tem mais. Nóis tem tevelisão. Nóis tem computador. Nóis tem tabléte. Nóis tem Iphone e aipim. Nóis já viajô pra muita cidade maior du que São Paulo. E essa tar de homossechualidade não é segredo pra nóis não. Intão, sê ocê pensa que nóis ia tratar mal só porque ela é ansim, julgou tudo errado. É mior ocê rever esses conceito teu sobre nóis lá da roça.

―É... bom... quer dizer... nem sei o que pensar!

Léo empalideceu. Jamais pensou escutar tudo aquilo do primo. Naquele instante, percebeu que, mesmo sendo alguém com excelente formação e com mente aberta para muita coisa, ainda empregava certo preconceito com relação a alguns assuntos até triviais. Desculpou-se e tentou retomar a conversa.

―Que bom que vocês se deram bem. Mas, me diga! E o que você achou do que viu nesse passeio que a Neca proporcionou?

―Ah! Mais é muito carro e ônibus pra tudo lado. Num vi um pé de gaviróva nos quintar. Num vi um passarinho que não fosse urubú avoando. É muita gente apressada. Inté tá parecendo quando eu e a Aleluia tivêmo em Nova Iorque, lá nos estêites.

―Vocês foram para Nova Iorque? Tá brincando comigo!

―Ara! Mais e não? Nóis, na verdade, só dêmo uma passadinha por lá, pois a gente tava indo pra Canecaticute. Nóis queria ver um leilão numa feira de maquinário que ia ter lá. E como tinha tempo de sobra, dêmo uma paradinha na tar Nova Iorque.

―Caneca... o quê? ―Léo esboçou um sorriso. ―Não seria Connecticut?

―E não foi o que falei? Canecaticute. Mais lá é frio por dimais da conta. Meus pé gelaram na butina. E falano nisso, primo. Num tem um móia-guela pra me oferecer?

―Móia-guela? Que diabos seria um “móia-guela”, primo?

―Uma purinha. Oceis num tóma nada pra arrefestelá antes das refeição?

―Ahhh! Uma cachacinha? É claro. Venha. Vamos lá para a sala de refeições. O jantar já deve estar quase pronto. Assim, podemos conversar melhor à mesa.

E assim, aquela primeira noite passou, sem maiores alardes. Após o jantar, todos se recolheram, e no dia seguinte, já cedo, Léo tratou de mostrar alguns imóveis para o primo.

Tudo parecia correr bem, com Oscar se mostrando muito interessado pelo potencial empresarial da cidade. Não gostava muito do movimento intenso que via pelas ruas do centro, mas seu tino comercial indicava boas possibilidades de lucro nos imóveis que Léo havia selecionado.

O dia passou rápido, até que no fim da tarde, os dois retornaram para o apartamento de Léo. Lá, uma surpresa. Aleluia, esposa de Oscar, assumira o comando da cozinha, e estava preparando o jantar.

―Ora, pai. E eu ia fazer o que? Ela insistiu, dizendo que queria ser útil. O pior é que a Neca ficou colocando pilha. Até levou a dona Aleluia ao mercado. Agora, deu nisso.

―Tenta ficar tranquila, filha. O primo ficou muito interessado em quatro imóveis. Vou tentar apressar o máximo que eu puder toda essa transação. Por isso eu te rogo. Não vai querer surtar!

―Não? E se eu te contar que a Neca tá arrastando a asa pra cima da Perestróica?

―Não entendi. Me explica isso, Helô!

―É bem isso que você escutou, papai! Eu conheço bem o olhar safado da Neca. Foi com esse mesmo olhar que ela me conquistou. Tenho certeza de que a Neca tá interessada na perestróica da Perestróica.

―O queeeeeeee? Do que você tá falando, filha? Perestróica da Perestróica? Dá pra falar a minha língua?

―Ah! Deixa pra lá. O senhor só tá interessado é no dinheiro do seu primo. No mais, quer é ver o circo pegar fogo, que eu sei!

Helô cerrou os olhos e deu as costas para o pai, saindo em seguida para o corredor. Léo, ainda sem entender, foi atrás dela, mas parou assim que passou pela sala. Lá, numa conversa muito animada, estavam Oscar, Neca, Cajuíno, Equinócio e, claro, Perestróica.

―Se acomode cum a gente, primo. A Canecona tá fazeno nóis quase se mijar de rir.

―Claro, primo. Claro. Mas, do que vocês estão falando, afinal?

―Óia, primo! Fiquei surpreso! Num é que a Canecona também é chegada num butiá!

―Me dá água na boca só de pensar num butiá bem rechonchudo, sogrão!

―O queeeeeeeeeeee? ―Léo estava sentando quando foi surpreendido pelos comentários de Oscar e Neca. ―Como assim? Butiá de quem? E como você pode gostar do butiá de alguém, Neca, se você não tem... é... não tem pint... ―ele calou por instantes, tentando medir as palavras que estavam a beira de pular de sua boca. ―Ah! Você sabe o que eu estou tentando dizer! E essas intimidades não são assunto pra se discutir assim, diante dos filhos do primo, não é?

―Uai? Vai me dizer que ocê num é chegado em comer um butiá, primo? Eu sempre digo e arrepito. Foi o butiá da minha mulher que deu a riqueza que nóis tem. Se não fosse pelo butiá de Aleluia, nóis tava capinando roça seca inté os primórdio do dia de hoje! Aleluia!

―Aleluia! Aleluia! ―Neca e os filhos de Oscar gritaram em coro, seguindo o agradecimento de Oscar.

―Chamaram ieu? ―Aleluia veio até a porta da sala, mas logo viu que o grito de “aleluia” fora em outro sentindo. ―Oxe. Ocêis inda vão gastá meu nome. Vô vortá lá pras panela, isso sim!

―Primo, mas que falta de educação é essa? Falar desse modo grosseiro de Aleluia?

Léo parecia aturdido. Não sabia como se comportar diante daquilo que Oscar falava.

―Ara, primo. Que é isso? Num to sendo grossero coisa nenhuma. Aleluia tá lá na cozinha. Falo dela sempre com respeito e admiração. Ocê é que parece num gostar muito de butiá. Se é que já comeu arguma veiz um bão dum butiá bem do maduro e vertendo caldinho. Intão, se é ansim, dâmo um jeito rapidinho. Quer comer o butiá da Aleluia?

A face de Léo enrubesceu, e ele, mesmo com a boca aberta, pouco conseguia falar. Balbuciava algo, mas seus pensamentos estavam completamente perdidos.

―Não acredito no que estou ouvindo! ―Léo finalmente comentou, tentando ordenar seu raciocínio. ― Que pouca vergonha é essa? Você sai por aí, oferecendo o butiá de sua mulher assim, sem um pingo de compostura? Que descaramento é esse?

―Não, primo! Não é “compostura” que fala. Nóis faiz em compota. Compotaaaa. E eu ofereço mesmo. Mais ela não dá pra quarquer um não. Prá maioria nóis vende. Sinão, como nóis ia ganhar dinheiro? Minha mulher vende o butiá dela, e junto, vai o leite da Perestróica.

Numa poltrona ao lado, Neca ria desmedidamente. Ela sabia que Oscar estava falando do fruto do butiazeiro, que é uma palmeira muito conhecida, e não daquele “butiá” que Léo estava imaginando.

―Cajuíno, moleque da moléstia! Vá lá com sua mãe e traga o butiá dela pro primo dar uma provada.

―Pode parar! Isso já está passando dos limites! ―Léo tentou argumentar, quase desesperado.

Cacho de Butiá - imagem coletada no Google
Cajuíno saiu da sala, mas voltou rapidamente. Trazia nas mãos alguns frutos pequenos e arredondados, completamente alaranjados. Léo, quando viu aquilo, corou de vergonha.

―Então... esse é o butiá de Aleluia?

―Ara! E qual butiá o primo tava pensando que era? ―Oscar arregalou os olhos e deu uma gargalhada. ―Nóis vive da prantação das parmera de butiá. É lógico que agora nóis tem fazenda de gado, fazenda de prantação de soja, e umas par de otras fazenda, que nem me alembro dereito quantas são. Mais nóis comecêmo ganhá dinheiro com o butiá das terra seca da herança da Aleluia, e mais adespois cás vaquinha de leite que comprêmo pra Perestróica. Pensei que o primo já era sabedor dessas coisas!

Neca continuava rindo sem parar. Léo olhava incrédulo para o primo, e com muita vergonha, colocou um daqueles frutos na boca, mordendo e chupando em seguida. Sua tensão era tanta, que sequer reparou no caroço que o fruto possuía, como se fosse um coco em miniatura, e engoliu tudo, quase se engasgando.

­―Eita, sogrão! ―Neca foi até ele, em socorro, e deu alguns tapas em suas costas, até que ele pareceu engolir aquilo. ―Entrar, o caroço entrou. Agora, quero ver sair.

Pouco depois, com os ânimos e risadas mais calmos, Aleluia chamou para o jantar. E foi nessa hora, com todos à mesa, que o assunto anterior ganhou proporções maiores. Mais precisamente no que dizia respeito ao caroço do butiá que Léo engolira.

―Parece piada, papai! ―Helô comentou, soltando um sorriso. ―Até eu sei que o tal butiá tem caroço. E agora?

―Já falei isso pra ele, momô! ―Neca esticou um olhar irônico para o lado de Léo e, sem dó, soltou um comentário sarcástico. ―Entrar, entrou. Sair é outra história. Pior é que pato não peida. Senão, até saia fácil.

―Como é? ―Léo quase se engasgou novamente com um pedaço de carne que levara à boca.

―Eu adiscordo. ―Oscar arrematou taxativo, olhando para Neca. ―Pato peida sim! Purque num havéra de peidar? Num é, Aleluia?

―Acho que não, meu véio. Num alembro de ter escuitado ninhum pato peidá inté hoje.

―Mais como é que não, Aleluia? E o Qüenca? Vivia peidando pra tudo lado. Era o Equinócio chegar perto, o Qüenca saia correno e se encostava na parede, peidando feito um louco.

―Ara, paiê! Num fica falano minhas intimidade. Mi deu inté vregonha agora! ―Equinócio, que sentara ao lado de Neca, baixou a cabeça, completamente corado.

―Gente, que é isso? ―Léo tentou retomar a palavra. ―Vocês estão malucos? Isso aqui é uma refeição! Merece respeito.

―Oxe, primo! Mais quem é que tá desrespeitano? Só constestei a Canecona. Ela é quem falô que pato não peida. Eu afirmo que o pato lá do Equinócio, o Qüenca, peida sim! Peida e depois se borra todo!

―Mas isso não é conversa que se tenha numa refeição! E além do que, não se fala que alguém “peida”! Se for necessário fazer menção a isso, então diga que alguém “flatula”.

―Óie, ocê tá doidinho, primo! Pato não flutua. No máximo, ele pode avoar, mas não flutuar. Só se for na água, daí sim. Acho que essa tar de tevelisão tá te fazendo mar pros noronho.

―É isso mesmo, sogrão! ―Neca, rindo novamente, continuou provocando. ―Tudo começou com você engolindo alguma coisa maior do que o buraco de saída que você tem. Agora, aguenta, véi!

imagem coletada no Google
―Isso tudo já tá passando dos limites do razoável! Vamos mudar de assunto? Vocês se importam?

―Arre! Intão tá! Vamos comer em silêncio. ―Oscar determinou, meio sem entender as atitudes de Léo. ―Mas intão me diga, primo! Tá boa a bóia da Aleluia?

―Ah! Sim. Quanto a isso, não há duvida! Uma delícia. Gostinho de comida do interior, com um sabor sem igual. Diferente de tudo o que temos por aqui. E por falar nisso, Aleluia, o que é essa carne ensopada que você preparou? Está sensacional!

―Óie, primo. Num achei os grediente que to acostumada, mais a Canecona me deu uma ajuda lá no açougue.

Léo abriu um sorriso mas, ao olhar para Neca, cerrou os lábios. No prato da moça não havia nada além de algumas folhas de alface e um pouco de arroz. E isso fez com que uma ponta de desconfiança brotasse instantaneamente, tanto em Léo quanto em Helô.

―É...! Do que, necessariamente, é feito esse seu ensopado, dona Aleluia? ―Helô perguntou, temendo pela resposta.

―Nada de muito especiar. Nóis dêmo foi é muita sorte de encontrar uns bago de boi da miór qualidade.  Nunca vi lá no sítio argum touro com bola tão grande ansim. E pra completar e dar sabor, um bucho de porco e bastante banha que eu merma derreti dos toicinho que troxêmo lá do sítio.

―Ai!

Esse “ai”, dito em conjunto por pai e filha, foi a única coisa ouvida por todos antes que ambos saíssem correndo para o banheiro. Oscar e Aleluia, sem entender, olharam para Neca e viram a moça balançar a cabeça e sorrir fartamente.

―Hehe! Bom, agora eu imagino que ele vai descobrir se pato peida ou não. ―Neca comentou e, em seguida, elevou o tom de voz, para ser ouvida por todos que estavam naquele apartamento. ― Força no butiááááááá, sogrão!



Marcio Rutes



Nota
Para conhecer melhor a família de Oscar e Aleluia, leia o causo "O BUTIÁ DE ALELUIA".

Se encontrar dificuldades para navegar até o causo citado acima, clique aqui.



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

UMA FESTA MALUCA NO PAÍS DAS MARAVILHAS - cap. 2

ATENÇÃO
Este conto não é recomendado para crianças.
Contém expressões e/ou frases que podem ser 
inadequadas para menores de 14 anos de idade.


CAPÍTULO 2

Não leu o primeiro capítulo? 

Gato de Cheshire


parte 3. UMA ALICE DESLUMBRADA E UM CHAPELEIRO DE MAU-HUMOR


―Tem certeza, Dorinha? ―o gato de Cheshire estava assustado com a solução da menina. ―Trazer adultos para cá? Não gosto disso.

Não seria a primeira vez em que Dorinha levaria um adulto para o Mundo Mágico. Mesmo existindo alguns empecilhos que dificultavam tal ação, Dorinha parecia ter algum poder que ultrapassava os limites comuns daquele lugar. E além disso, alguns adultos também se encantavam com os contos infantis, mesmo provocando estragos quando estavam dentro de um deles. A Vovó de Chapeuzinho Vermelho e o Lobo-Mau sabiam bem disso.

―Ora, Ches! Não seja tão regulado. Cadê aquele gato irônico e cheio de 9 horas que eu conheci lá no conto da Vendedora de Fósforos? Gostava mais de você daquele jeito. Assim como está, mais parece uma hiena azarada e tristonha, como aquela do desenho do Lippy e Hardy.

―Tá, você me convenceu. Vamos começar logo com isso, porque o coelho já tá dando com a cabeça no tronco da Lagarta! Daqui a pouco ele morde o rabo dela, de tanto desespero e pressa!

Dorinha sentou e se concentrou. Seria a segunda vez que tentaria fazer aquele encantamento, mas ainda assim não era algo fácil de realizar. No meio do encantamento, lembrou de Jujubão, seu cachorro, e pensou que ele poderia ser útil. Então, concentrou-se nele também. E não demorou para que uma bela jovem se materializasse bem diante do gato, fazendo-o arrepiar-se todo.

―Caraca! ―comentou o gato, arregalando os olhos. ―Ela é uma gata, mas não é loira. Não pode ser Alice!

―Dá um tempo, Ches! ―Dorinha retrucou, empinando o pequeno nariz. ―Se a Alice verdadeira virou modelo de lingerie, porque não pode ter pintado o cabelo também? E deixa te apresentar a Samara, minha amiga de outros contos.

―Eu... eu... ―a nova visitante do mundo mágico ficou sem entender o que estava acontecendo, até que aos poucos reparou a presença de Dorinha. ―É você, Dorinha? E esse aí flutuando? Quem é? É o gato da Alice? Ahhhhhhhhhhhh!

Samara soltou um grito e pulou para perto do gato, agarrando-o e dando um forte abraço. Jogou-o para cima, apertou suas bochechas e, por último, deu um puxão forte em seu rabo. O gato tentou correr, mas não conseguiu. Miou, e quando Samara tentou apertá-lo novamente, ele desapareceu, mantendo apenas o sorriso visível.

―Adooooooro esse gato.

―Ela é louca. Mais louca do que eu. Tira ela de perto de mim.

Dorinha ria e se divertia com a cena. Mas algo estava errado. Onde estava seu cachorro, o Jujubão? A menina olhou ao redor e não viu nada além da floresta que cercava tudo. Até que, repentinamente, um latido chegou aos ouvidos de todos.

―Jujubããããããão! Vem cá, garoto. ―Dorinha gritou com toda a força que pode.

Instantes depois, um coelho apareceu em disparada e passou por todos, levantando poeira. Dorinha arregalou os olhos, assustada, pois logo depois do coelho, apareceu um cachorro, também em disparada e quase alcançando o coelho branco. Mas não era Jujubão.

―Quem é esse cachorro? ―Dorinha perguntou, olhando para o gato e para Samara.

―Sei lá! ―o gato respondeu, sem dar muita atenção. ―Esses pulguentos, para mim, são todos iguais.

Samara, no entanto, foi quem mais se surpreendeu. Quando o cachorro chegou mais perto, ela abriu a boca e pronunciou alguma coisa, que ninguém entendeu.

―Que foi, Samara? Você conhece esse cachorro?

―É o Sushi! Mas, o que ele está fazendo aqui?

―Sushi? ―o gato estranhou, arregalando os olhos. ―Isso lá é nome de cachorro, mulher? E um gato, como você chamaria? Sashimi? Cada uma que me aparece.

Não demorou para que o coelho contornasse uma árvore e voltasse bem para onde os outros estavam. Quando chegou perto deles, pulou e se atirou para cima do gato, que sem ter o que fazer, amparou o coelho em seus braços. O cachorro, ainda correndo, também saltou e abocanhou o que viu pela frente, ou seja, o rabo do gato.

O gato de Cheshire cerrou os dentes e permaneceu em silêncio. Ficou amarelo, depois roxo, azul e, por fim, vermelho. Sem poder mais segurar a respiração, abriu a boca e miou de um jeito esganiçado, assustando o coelho, que tentou fugir, mas não conseguiu, pois logo em seguida o gato cravou seus dentes no lombo do coelho.

A confusão só aumentava. Samara tentava puxar seu cachorro, mas ele resistia e não soltava o rabo do gato. Enquanto isso, Dorinha fazia o possível para livrar o coelho dos dentes do gato, puxando-o pelas orelhas. O coelho começou a esticar, esticar, esticar, até que Dorinha escorregou e o soltou, fazendo com que todos rolassem para perto do casulo que a Lagarta estava fazendo. O gato de Cheshire foi quem levou a pior, sendo arremessado diretamente para o casulo. A Lagarta, quando viu aquilo, tentou correr, mas não conseguiu, e acabou levando uma enorme trombada do gato.

―Socoooooorroooo!

O pedido de socorro veio da Lagarta, que sem conseguir se segurar, foi arremessada para dentro de um córrego cheio de peixes esquisitos e dentuços. Alguns segundos depois, ela saltou para fora do córrego, mas não sem ter virado vítima de um dos peixes, que saiu junto com ela, mordendo seu rabo.

Tanto Dorinha quanto Samara correram até ela, pensando em salvá-la. Depois de tudo calmo, Dorinha tratou de explicar a todos o que pretendia ao ter trazido Samara até o Mundo Mágico. Ela substituiria Alice na festa, mesmo não tendo os cabelos aloirados. E desta vez, ela permaneceria com seu corpo adulto, ao contrário do que acontecera da outra vez, quando ela substituiu Chapeuzinho Vermelho. Mas, mesmo assim, ainda faltava alguém para assumir o lugar do Chapeleiro.

Foi quando Samara chamou Dorinha e cochichou algo em seu ouvido.

―Será, Samara? Não temos muito tempo para tentar outra coisa depois.

―Claro, Dorinha. Ele é maluquinho igual ao Chapeleiro, meio turrão, abobalhado, um tanto mau-humorado, e eu amo ele.

Dorinha olhou seriamente para Samara, e lembrou da primeira vez em que as duas se encontraram. Samara cultivava, nitidamente, uma criança num corpo adulto, e o deslumbramento ficava visível a cada vez que se deparavam com algum personagem, ou uma maluquice qualquer, do Mundo Mágico. E quando isso acontecia, a confusão teimava em se formar.

Será que tudo o que planejaram daria certo? Samara seria convincente e interpretaria uma Alice como aquela que a Rainha de Copas conhecia? E o Chapeleiro? Seu substituto desempenharia bem o papel?

―Ai, ai! ―o gato torceu o sorriso, fazendo um “x” com a boca, e mostrou preocupação. ―Nossos pescoços estão com as horas contadas. Mas, enfim, aqui é o reino das maluquices mesmo. Vamos lá. O que vocês precisam que eu faça?

Todos se reuniram bem perto do tronco da Lagarta e confabularam. Pontos de interrogação e exclamação começaram a surgir por todos os lados, até que o gato tornou a sorrir.

―É! Gostei! ―o gato sentenciou. ―É maluco, pode dar tudo errado, mas vai colocar um pouco de adrenalina nesse povo. Simbóra!




Samaruja Dançando (Família Maruja) - todos os direitos reservados



parte 4. A FESTA E ALGUMAS SURPRESAS “INSURPRESÍVEIS”

―Ele ainda não chegou? ―o Coelho Branco perguntou, tomando de um só gole o suco de cenoura que o gato de Cheshire havia dado a ele. ―Estamos ferradinhos... hehe... estamos atrasados, fuzilados. Não. Fuzilados não. Descapi... descabe... despescoçados... hic. hic. Hic.

Dorinha e Samara olharam para o Coelho Branco e estranharam. Ele não estava agindo como sempre. Tanto que sua face, de branca, estava completamente cor de rosa. Quando andava, trançava as pernas feito bêbado, e assim que viu o Dodô, foi até ele e tascou-lhe um abraço nada contido. O Dodô, sem entender, retribuiu o abraço, e acabou sendo carregado pelo coelho para o meio do salão.

―A senhorita dança essa contra-dança comigo? ―o coelho perguntou, baixando a mão para a cintura do Dodô.

―Mas não tem música, coelho! E tem mais uma coisa! Onde você pensa que vai com essa porcaria de mão-boba?

Dorinha arregalou os olhos e mirou o gato, que sorria desmedidamente.

―O que você deu pro coelho beber, Ches?

―Ele não parava de perturbar. Então, dei cachaça de abóbora pra ele. Assim, ele larga do nosso pé.

―Oh, genteeeee! ―Samara chamou pelo gato e por Dorinha. ―Acho bom alguém segurar o coelho. Pelo que estou vendo, ele começou um “streep tease” em pleno salão. E a Rainha está para chegar.

―Ai, meu São Valentim dos Gatos Sem Rabo. Esse coelho vai me deixar mais maluco do que já sou. ―o gato suspirou e desapareceu, reaparecendo ao lado do coelho.

Instantes depois, cercada de muita pompa e de seus séquitos, a Rainha de Copas apareceu por uma porta. Com um simples golpe dos olhos, ela analisou cada centímetro daquele salão, e como não encontrou Alice e o Chapeleiro, começou a berrar de forma esganiçada.

―Cortem a cabeça de todos. Imediatamente. Alice e o Chapeleiro não estão aqui.

―A sua cabeça também, minha rainha? ―um dos servos perguntou, levando um safanão da rainha.

―É claro que não, seu tonto! Eu sou a rainha!

O gato de Cheshire, apressado, empurrou Samara e Dorinha até onde a Rainha de Copas estava. Seu sorriso amarelou imediatamente, e ele tremia tanto que seus dentes emitiam um barulho parecido com o de uma máquina de escrever antiga ao ser utilizada.

―O que você quer, gato vira-latas? ―a rainha perguntou, enquanto subia nas costas de um dos servos, que estava de joelhos, para poder alcançar seu trono.

―Vossa Famosidade! Minha querida e tão pestilenta rainha! ―o gato se aproximou o quanto pode da rainha, e apontou para Samara. ―Alice está aqui. Veja, é ela bem ali.

―Essa não é Alice! Alice é loira. E quem é aquela outra meio-quilo que está junto?

O gato de Cheshire não sabia o que dizer. Abriu e fechou a boca várias vezes, até que sem ter mais o que fazer, olhou para Dorinha e pediu ajuda.

―Bom, sua Majestina! ―Dorinha atravessou-se na conversa, tentando dar alguma ajuda ao gato. ―É claro que ela é Alice. Só que pintou os cabelos. Vossa Esperteza sabe que nós, mulheres, não suportamos a mimosisse.

―Mimosisse? Que diabos é isso, afinal? ―de olhos arregalados, a rainha desceu do trono e foi até Samara e Dorinha.

―Mesmice, sua atontalhada. ―o Coelho Branco gritou lá do meio do salão, enquanto tomava outro copo do tal suco que o gato havia dado a ele.

―Ah! Claro... sim, sim... eu acho! Sim... eu acho que acho que sim! É, penso que ela é, realmente, Alice. Mas me diga. Se queria pintar os cabelos, por que não me procurou? Sou representante da Avon e da Jequití, e no catálogo desse mês tem algumas tinturas ótimas.

Samara e Dorinha se olharam e não acreditaram. Representante da Avon e da Jequiti?

―A vida anda difícil por aqui! ―o gato de Cheshire cochichou para as duas.

―E essa tampinha, quem é? ―a rainha retomou a palavra, apontando Dorinha.

―Ué! Aqui não é o mundo mágico? ―Samara tomou a palavra, mirando a rainha. ―Ela é a Alice de ontem. Eu sou a Alice de amanhã. Até parece que não pensa!

A rainha silenciou. Olhou, olhou e olhou para as duas a sua frente, até que determinou.

―É! Gostei. Duas Alices pelo preço de uma. Que comecem as festividades pelo aniversário de Alice. Cadê o Chapeleiro?

Samara, Dorinha e o Gato de Cheshire se olharam, mostrando surpresa. Aniversário de Alice? Não era para ser o aniversário da Rainha de Copas? O que estava acontecendo?

―Cadê o Chapeleiro? Não falei que queria ele como DJ? Cortem a cabeça de todos.

―Nããããããão. Vai com calma aí, vossa Bestialidade! ―Samara gritou, tentando ganhar tempo. ―Já já o Chapeleiro chega...

Samara interrompeu o que falava e afinou os ouvidos. Repentinamente, as luzes diminuíram a intensidade e uma música bem conhecida de Samara começou a tocar.

Alice não me escreva
aquela carta de amor...
Alice não me escreva
aquela carta de amor
”.

Lentamente, todos olharam para o grande pedestal que fora armado bem ao centro do salão. Como as luzes estavam fracas, a única coisa que conseguiam enxergar foi uma vistosa cartola que se mexia, e também algumas luzes coloridas que brotavam dos equipamentos de som.

―É ele! Eu sabia que ele viria! ―Samara comemorou, enquanto o gato de Cheshire suspirou aliviado.

―Ahhh! Essa música é muito lenta. Eu sou a Rainha de Copas, e quero comemorar como se deve. Toca alguma coisa pra gente rebolar até o chão, DJ. E que comecem os festejos.

Segure o Tchan, amarre o Tchan,
segure o Tchan-tchan-tchan-tchan...
”.

A Rainha de Copas soltou um sorriso e correu para o meio do salão. Colocou as mãos na cintura e começou a rebolar, baixando a cintura até quase tocar o chão. Mas parou repentinamente, como se algo a incomodasse.

―Ninguém vai dançar? Cortem a cabeça de toooooooooodos.

Em menos de dez segundos, o salão estava a maior arruaça. Todos olhavam para a rainha e tentavam imitar seus movimentos. E assim, a festa foi até quase amanhecer, na maior tranquilidade.

Garçom
Aqui, nessa mesa de bar
Você já cansou de escutar
Centenas de casos de amor…

Abraçada a um dos Valetes, a rainha quase foi aos prantos. Ao ver aquilo, o gato de Cheshire correu até o DJ e pediu que ele trocasse a música e colocasse algo mais animado, ou a Rainha poderia ficar depressiva.

Puta que pariu, pisa no freio Zé
Veja em nossa frente o tamanho do buraco
Puta que pariu, pisa no freio Zé
Se o pé de bode cair, nós vamo tudo pro saco
…”.

Quando ouviu aquilo, a rainha saiu gritando feito louca, imitando alguém cavalgando. Não demorou e ela estava “puxando um trenzinho” em pleno salão. Dorinha e Samara, exaustas, foram até um canto do salão e sentaram, mas não tiveram sossego por muito tempo. Ao olhar para a grande porta do salão, viram duas pessoas entrarem. Duas pessoas muito conhecidas.

―Ferrou! ―Dorinha sentenciou, arregalando os olhos. ―Cheeeeeeees. Vem cá.

A rainha, mesmo entretida com a música, também notou a presença daqueles dois recém-chegados. Estaqueou e, sem se aperceber, todos os que vinham atrás dela se amontoaram, um batendo contra o outro. O DJ, vendo aquilo, parou a música imediatamente.

―Mas, quem são esses dois falsificados? ―a rainha perguntou, indicando aqueles novos visitantes. ―Imitadores de Alice e do Chapeleiro? Cortem a cabeça deles!

―Imitadores? Tá me estranhando, coroa? Sou a Alice verdadeira. E esse aqui comigo é o Chapeleiro. Ficamos sabendo que você tava dando pití, exigindo nossa presença nessa sua festa maluca. Não tá sabendo que a gente anda super-atarefados? Mas, enfim, chegamos.

―Se vocês são os verdadeiros, então quem são essas Alices que estão ali naquele canto? E o Chapeleiro DJ, que animou a festa até agora, quem é?

As luzes acenderam gradualmente, e a rainha, ao olhar para o DJ que animava a festa, arregalou os olhos e abriu a boca, assustada.

―Mas... é uma coruja! O que essa coruja está fazendo aqui? E essas Alices? Cortem a cabeça de todos.

―Páraaaaaaaaaaaaaaa! ―Samara gritou, indo até a rainha e encarando-a. ―Só sabe falar isso, é? Cortem a cabeça deles, cortem o pescoço deles! Muda o discurso. E tem mais. Não falamos que somos a Alice de ontem e a Alice de amanhã?

―É, falaram! Tinha esquecido.

O gato de Cheshire olhava para Samara e tremia. Sabia que a rainha detestava ser confrontada e contrariada, e algo pior poderia acontecer.

E aconteceu.

Sem que ninguém esperasse, o Coelho Branco se aproximou da rainha e, sorrateiramente, beliscou-lhe as nádegas. A rainha, irritada, virou-se e bateu no que viu primeiro. Mas, para azar dela, o coelho já havia saído dali, e quem levou o tapa foi outra rainha, a da Branca de Neve, que reagiu imediatamente. Um pouco mais atrás, as irmãs de criação de Cinderela se divertiam, gargalhando sem parar, mas em poucos instantes, estavam envolvidas na confusão.

Tanto a Rainha de Copas quanto a outra não gostaram daquelas gargalhadas, e partiram para cima das outras três, rolando pelo chão entre tapas, beliscões e puxões de cabelo.

―É brigaaaaaaaaa! ―alguém gritou, no meio da multidão. ―Vamos lá.

Samara e Dorinha subiram numa das mesas e, sem ter o que fazer, apenas olharam. Sushi, o cachorro de Samara, saiu debaixo de uma das mesas e começou a perseguir o coelho. Os dois entraram no meio da confusão, correndo feito doidos, e Samara foi atrás, sendo imitada por Dorinha.

Instantes depois, o gato de Cheshire trazia Dorinha, Samara e Shushi arrastados para fora da confusão. Lá no meio ninguém se entendia. A Rainha de Copas, com a roupa toda rasgada, subiu nas costas de um Valete e tentava morder a orelha do Capitão-Gancho, enquanto a Rainha da Branca de Neve dava uma chave de pescoço no Gênio de Aladim.

Uma torta de limão passou zunindo pelos ouvidos de Samara, e só parou quando acertou o rosto da Rainha de Copas. Samara olhou para trás e viu o gato de Cheshire ao lado da mesa de doces. Um sorriso apareceu na face de Samara, que sem demora, juntou-se ao gato e iniciou uma guerra de comida. Dorinha, vendo aquilo, correu para junto dos dois e não ficou parada. Pegou um pote de jujubas e despejou pelo salão, o que fez com que a maioria dos brigões escorregassem e caíssem sentados.

Gargalhadas tomaram o ambiente. Aos poucos, tudo foi silenciando, e somente a Rainha de Copas é que se agitava no meio do salão, rindo desmedidamente.

―Pronto! Ferrou tudo! ―o gato de Cheshire parou o que fazia, guardando uma das tortas num bolso mágico. ―Ela vai mandar cortar nossas cabeças.

As risadas não paravam, e a rainha, com a roupa toda rasgada e coberta de suor, foi até onde Samara e Dorinha estavam.

―Expliquem. Se conseguirem me convencer, eu vou amar essa festa.

―Explicar o quê, vossa “Iorgutesa”? ­―a pergunta veio de Dorinha, que agora estava diante do gato, escondendo-o da rainha.

―Iorgutesa? Que trem é esse?

―Sei lá! Acho que é rainha do “iorgute”! ―Samara respondeu de pronto, olhando seriamente para a Rainha.

―Iorgute? Eu adoro Iorgute! Tragam Iorgute para tooooooooodos. ―a ordem foi gritada pela rainha, que chegou bem perto de Samara, o suficiente para falar algo que somente elas ouviram. ―Eu também enrosco nessa maldita palavrinha. Não conta pra ninguém, tá! Agora, me explique.

―Mas, explicar o quê, afinal?

A rainha corou, serrando os lábios e bufando.

―Quem é, afinal, essa coruja que está lá como DJ?

―Ah! Isso? ―Samara armou uma cara de desdém, que surpreendeu a rainha. ―Pensei que vossa Maldadesa fosse mais bem informada. Ele é o DJ Marujo.

―Queeeeeeeeeeeeeeeeem?

―Escuta aqui! ―Samara retomou a palavra, mostrando um pouco de irritação. ―O Marujo é um dos melhores DJ’s dos novos contos infantis. Vossa Melequesa não lê Marcio Rutes não?

―Marcio Rutes? E esse agora, quem é? Conheço não!

―Cáspita. É meu namorado. E é ele quem desenha e escreve a Família Maruja. Não temos culpa se vossa Baixesa está tão desatualizada. Sua festa tem o DJ mais disputado dos contos infantis, portanto, agradeça a nós esse privilégio.

A rainha estaqueou. Será que ela estava assim, tão desatualizada? Samara e Dorinha, apreensivas, cruzaram os dedos, enquanto o gato de Cheshire tremia feito vara verde. E mais uma vez, todos se surpreenderam com as palavras da rainha.

―É! Eu gostei desse DJ Corujo. Vamos continuar com o aniversário de Alice.

Alguém se aproximou da rainha e entregou-lhe um papel. A rainha leu e, inesperadamente, sentenciou em alto e bom som.

―Cortem a cabeça de todos!

―De novo? Vou dar uma bifa nessa mulher! ―Samara bufou. ―E agora, vossa Chatesa, o que tá pegando?

―Não é aniversário de Alice. Então, por que essa festa?

―E por isso precisa mandar cortar o pescoço das pessoas? E outra coisa. Não é aniversário da Alice, mas é o meu. Por que não aproveitamos o salão e comemoramos?

―Mas você não é a Alice do Amanhã? Não deveria fazer aniversário no mesmo dia da Alice do ontem e do hoje?

Samara parou e pensou. E agora?

―Bom! É que no amanhã, vossa Inteligentesa vai estabelecer o dia 15 de agosto como o dia do pastel de palmito, e como eu adoro pastel de palmito, vou mudar meu aniversário pra hoje...

Um silêncio aterrador tomou conta do local. Ninguém ousava soltar um suspiro que fosse, como medo da reação da rainha.

―Isso aqui tá parecendo a casa da Mãe Joana, com todos tentando dizer o que eu devo fazer. Mas gostei disso. Dia do Pastel de Palmito. Dia 15 de agosto. Que seja. E que fique dito e estabelecido aqui no País das Maravilhas, que todo dia 15 de cada mês, será comemorado, também, o desaniversário do Pastel de Palmito e de Alice. E em cada desaniversário, eu quero uma festa como esta aqui, com as 3 Alices e os 2 Chapeleiros. Agora, solta o som, que eu quero mais é soltar a franga.

O Chapeleiro de Alice, que a esta altura já estava ao lado do Chapeleiro Marujo, de Samara, não pensou duas vezes. Tirou do bolso um pen-drive contendo umas mil e quinhentas músicas e entregou para o outro DJ.

DJ Marujo (Família Maruja) - todos os direitos reservados
―Tenha a bondade de escolher, seu Corujo! E vamos arre–ben–tar a boca do balão.

Sei que eu sou,
bonita e gostosa,
e sei que você,
me olha e me quer!
Eu sou uma fera,
de pele macia,
cuidado garoto,
eu sou perigosa...”.

A festa foi até o amanhecer. As rainhas, que antes brigavam, agora dançavam juntas, rebolando e cantando freneticamente. Os dois Chapeleiros se esbaldavam, enquanto o Coelho Branco se abraçava a um pé de mesa, enxergando tudo dobrado. Os três porquinhos subiram num palco improvisado e deram um show, imitando o moonwalker de Michael Jackson, e só foram interrompidos quando Sushi, o cachorro de Samara, resolveu armar uma correria com eles.

Tudo ia bem, até que em um dado momento, um enorme bolo foi trazido até o centro do salão. Era o presente da Rainha de Copas para as três Alices. No entanto, como o bolo era extremamente grande e nenhuma das três Alices conseguia sobras as velas que estavam lá pelo meio do bolo, o Lobo-Mau resolveu dar uma força. Aspirou, aspirou, aspirou e aspirou. Encheu os pulmões até não conseguir mais, e...

Bom, o resultado desse assopro gigantesco vocês podem imaginar, não podem?

No fim de tudo, um grande sorriso de gato engoliu toda a cena, devolvendo cada um para seu lugar. Dorinha ainda chegou a tempo de correr para a cama antes de seu pai acordar, enquanto Samara precisou ir para o banho, pois estava coberta pelo creme do bolo que o lobo soprou.

Já em outro canto do mundo, no nosso mundo real, alguém acordava e ligava seu computador. Uma certa estória em quadrinhos precisava ser terminada, uma história de corujas.

―Ué! Cadê minhas corujas que eu tinha desenhado ontem? E o que o gato de Cheshire está fazendo no lugar do meu personagem. Samaraaaaaaaaaa.

E assim, mais um dia maluco do mundo mágico terminou. Um dia em que o País das Maravilhas de Alice pode compartilhar do talento, da beleza, da simplicidade, sensibilidade... enfim, um dia em que o Mundo Mágico pode dizer FELIZ ANIVERSÁRIO, SAMARA.

E solta o som, DJ.



PERIGOSA (As Frenéticas) - by YouTube




Marcio Rutes




não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.