segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A REVOLTA DE ANTUNES

 

(1) Serra da Mantiqueira (veja crédito da imagem ao final do conto)
Para alguns ele era Antonho Antunes. Para outros, apenas Antunes. O fato é que quando ele chegou naquela casa, foi a maior briga pelo nome. Cogitaram tudo, indo do clássico ao absurdo. Chegaram a matutar o nome de Sapé Queimado para o coitado.  Até de Missanga ele foi chamado. Seu Givanildo queria que ele fosse Antunes, enquanto a esposa batia o pé e contrariava. Será Antonho. Acabou ficando Antonho Antunes.

Confesso que tenho mais apreço por Antunes, então assim chamarei esse pobre coitado nessa curta história.

Antunes não teve descanso desde que nasceu. Ele não era daquele lugar. Fora achado em um campo por seu Givanildo, que sem o menor respeito (coisa que nunca teve) tratou de leva-lo embora, sem sequer se importar de onde ele era ou se teria alguém a sofrer por ele. Cresceu rápido, mas completamente raquítico, pois a alimentação era mínima e totalmente inadequada. Assim que pode, já trabalhava duro, e apanhava muito quando as coisas não iam bem para os escambos que seu Givanildo praticava.

Antunes conheceu soiteira. O couro vivia vergado pelas lambadas ardidas que tomava. Mas não reclamava. Apenas trabalhava de cabeça baixa e com o estômago roncando. Dormia, na maioria das vezes, ao relento. Preferia assim, pois detestava ficar entre quatro paredes. Gostava do ar mais fresco da noitinha, de ver a luz da lua ou de sentir a chuva.

Das tantas e tantas noites que varou em claro, tantas também foram as vezes em que o olhar se perdeu pelas montanhas vizinhas. Lá sim deveria ter algum cantinho para viver em liberdade, longe do trabalho escravo imposto a ele naquele sítio. O mundo parecia ser diferente naquele lugar tão ao alcance dos olhos, mas tão distante de um corpo aprisionado. Corpo sim, alma jamais.

Certa feita, depois de uma chuva torrencial, Antunes voltava do roçado e tropeçou, rolando por uma ribanceira. Seu Givanildo desceu até ele e, de posse de um cajado de madeira, bateu tanto no pobre que sua cabeça abriu, quase arrancando uma orelha. Antunes não esboçou a mínima reação. Apenas ficou deitado até que aquele homem cansasse de bater. Fingiu-se de morto.

O tempo passou. Antunes cresceu bastante, mas continuava um saco de ossos. Jamais teve esperanças de conseguir se libertar da opressão daquele homem mesquinho e desumano que o levará ainda pequeno, mas também jamais deixou de sonhar com as montanhas. Noite após noite, olhava para lá e se deixava levar pelo ar frio que tanto fazia bem a ele. Até que o sol quente da manhã lembrava que ele tinha um roçado inteiro para cuidar e, claro, algumas chibatadas para levar.

Se alguém por aquelas bandas soubesse contar, certamente teria perdido as contas de quantas vezes Antunes foi surrado até ficar entrevado no chão seco. Antunes aprendeu apanhando. Fingia um desmaio, e seu Givanildo já comentava: “Tem que trabalhar nu circo, seu imprestáver. Parece inté que tá morto. Faiz inguarzinho.”. Depois, ele levantava meio capengando e tomava o rumo de casa.

Teve uma vez em que Antunes cansou de apanhar. Revoltou-se. Atacou seu Givanildo como pode. Cabeçadas, dentadas e chutes não faltaram. Seu Givanildo, assustado, levantou a soiteira, mas não adiantou. Antunes estava carregado de raiva. Forçou-o a caminhar para trás até que, inesperadamente, uma urutú cruzeiro deu um bote certeiro. Seu Givanildo estremeceu. Matou a cobra a pauladas e partiu ensandecido para cima de Antunes, mas o máximo que conseguiu foi agarrar-se a ele.

Com algum custo, os dois chegaram até a casa de seu Givanildo. Chamaram o médico da região, mas não teve jeito. O homem morreu dois dias depois. Mas não sem antes deixar uma ordem para o filho mais velho: “Mate esse desgramado do Antunes.”.

Gaité, o filho de seu Givanildo, não teve coragem de cumprir aquela ordem. Mas nem por isso agiu com algum caráter. Negociou Antunes para um dos produtores de carvão da área, daqueles que vivem explorando trabalho escravo. E Antunes logo percebeu que tudo continuaria igual ao que sempre fora, ou até pior. Então, de que adiantara ele ter se rebelado?

Mas algo inesperado aconteceu. Já no primeiro dia de lida, perto de um arroio, o carvoeiro ficou descontente com o serviço de Antunes. Desta vez a surra foi com uma correia.

Antunes estava enfraquecido, pois não se alimentava já fazia vários dias. Escorregou e caiu, ficando com a cabeça completamente dentro da água, o que fez com que o carvoeiro parasse e observasse.

―Matei o traste. Mas num prestava pra muita coisa mesmo. ―comentou o carvoeiro. ­―E se não morreu, num guenta muito. Que fique aí, pra alimentar argum animar ou os urubú, que devem estar famintos.

O carvoeiro virou as costas e foi-se embora. Quando chegou ao local onde ficavam os fornos, ordenou que um de seus empregados fosse até o local e recolhesse a lenha que Antunes puxava antes do ocorrido. O empregado foi, mas voltou com uma notícia não muito boa para o patrão.

―Sinhô! Num achei o tar lá no arroio. Será que o peste inviveu di novo e deu no pinote?

Cavalo idoso - by Google
E assim, Antunes conseguiu sua tão sonhada liberdade, fingindo algo que as surras ensinaram. Para o carvoeiro, ele tinha morrido, e se o tal ficasse por lá mais alguns minutos, isso realmente teria acontecido. Mas bastou que ele virasse as costas para que Antunes levantasse rapidamente e ganhasse o rumo das montanhas.

Hoje, Antunes vive solto pelos costados verdes do Morro da Imbuia(²). Não é raro passar por lá e vê-lo galopando, já bem mais gordo. Galopando? Pois é. Antonho Antunes não é um ser humano, mas sim um cavalo. No entanto, isso não diminui o sofrimento das surras e do trabalho forçado, ou de todos os outros maus tratos, diminui?



Marcio Rutes




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Notas
(¹): A imagem da Serra da Mantiqueira mostrada logo no começo deste conto foi retirada da web, mais precisamente do site do Instituto Pinho Bravo.

Visite o site do Instituto

Link da imagem: 

(²): Morro da Imbuia é um nome fictício, e não faz parte do complexo da Serra da Mantiqueira.
O conto não é ambientado na Serra da Mantiqueira. A utilização da imagem deu-se, unicamente, pela extrema beleza que a Serra da Mantiqueira revela, casando perfeitamente com a liberdade tão sonhada pelo personagem principal.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

SOLTANDO OS BICHOS

 

cobra cipó - image by Google

―Não, Aretha! A resposta é não, e pronto!
 

O pai, que interrompera a reunião com alguns fornecedores para atender a filha ao telefone, começava a dar mostras de impaciência. 

―Existe uma coisa chamada responsabilidade, minha filha! Não estou interessado se seu namorado pertence ao Green Peace, ao WWF, ao Green Card ou ao CPF, FMI, CNI, CNPJ, TPM, ou seja lá qual sigla de ONG ambiental que ele tenha resolvido entrar agora! O que sei é do compromisso que assumimos quando tomamos nossas atitudes. Então, se ele resolveu surrupiar animais para, com isso, protegê-los, terá que dar jeito de se virar com as consequências desses atos, sejam eles legais ou não. Ele foi suficientemente capaz de cometer tal coisa, pois que seja capaz de se virar com as implicações. E nem por brincadeira ele vai guardar animais roubados lá no nosso apartamento!

―Mas, mas, mas... Ítalo, por favor! ―a filha implorava, chamando o pai pelo nome, o que fazia com que ele se irritasse ainda mais. 

―Olha. Tudo bem você querer ser independente aos 16 anos de idade. Claro, pode ser. Não sou nenhum troglodita que vive no passado. Você é inteligente e capaz. Mas antes de querer arbitrar sua vida, arranje um emprego. Eu te emancipo se assim você achar que precisa. Porém, enquanto estiver dependendo do meu dinheiro, ou do dinheiro da sua mãe, vai respeitar nossas regras. E não vai ser me chamando pelo meu nome, ao invés de pai, que você vai me amansar!

­―Tááááá... mas pai, é só um animalzinho indefeso, que... 

―Não! Você sabe que sou alérgico a pelo de animais!

―Não é animal de pelo, pai! 

―Piorou. Emplumados fazem sua mãe ter taquicardia. Não, e pronto! 

―Também não tem penas, pai Ítaloooooooooooooooo! 

―Escamas? Tá de brincadeira! Nem você suporta cheiro de peixe. Desista. Em casa nós conversamos. É uma boa hora para eu, você, sua mãe e seu irmão começarmos a evoluir certos assuntos. Beijos. 

Ítalo desligou o telefone e voltou para a reunião. Era uma fase difícil, por certo. O filho mais novo, com 13 anos, mal saia de casa. Era um alucinado por vídeo game. E a filha, essa achava que deveria salvar todos os animais mundo, desde que não precisasse abrir mão da roupa de grife, dos sapatos caros, do celular ultra-moderno e, obviamente, que pudesse fazer isso lá de dentro da academia de ginástica. Ah, sim. Baratas, ratos, morcegos, urubus, hienas, minhocas e alguns outros animais um tanto mais “nojentos” estavam fora de sua lista. Eram feios, medonhos, ou davam um certo asco. O bom, mesmo, era salvar um urso bem fofinho, ou quem sabe um cachorrinho perdido, mas ali na esquina, para não precisar ir muito longe, não é? 

Já em casa, Ítalo estranhou a ausência da filha. Mas, é claro, ela deveria ter armado um mau humor sem fim. Sempre que ela era contrariada, o mundo desabava. E essa situação tendia a perdurar por semanas, ou até que ela precisasse de um adiantamento da mesada. 

―Meu amor. A Aretha não chegou ainda? 

―Nem sei, Ítalo. ―a esposa respondeu, sentando-se ao lado dele, exausta. ―Aquele pessoal da clínica me deixou quase maluca. Te juro que se eu pudesse voltar no tempo, faria faculdade de biologia e iria estudar bichos preguiça. Enfermagem dá um estresse sem tamanho, e ser dona de clínica ainda por cima... aííí, to morta!

―E o Júnior? 

―Bom... esse nem precisa olhar pra saber onde está, não é? ―a esposa armou uma expressão de desdém que fez o marido sorrir. Lá no quarto, com o vídeo game. E eu to preocupada! Será que essa geração vai saber evoluir normalmente, como nós fizemos? 

―Em que sentido, meu dengo? 

―Ah! Sei lá! Tem coisa que é natural na criançada. Masturbação, por exemplo. Tenho certeza de que você aprendeu sozinho! 

―Nem se preocupe. Já, já, alguém lança um jogo ou aplicativo pra isso. ―Ítalo parou o que falava e pareceu pensativo, completando em seguida. Porrinha a distância! Sabe, eu poderia ficar rico com isso. Até que você me deu uma boa ideia! 

Os dois caíram na gargalhada, mas pararam quando repararam que Aretha entrara em casa. A menina, apressada, passou por eles e sequer deu atenção. Foi para o corredor e trancou-se no quarto. Um pouco depois, enquanto os outros estavam à mesa, ela saiu do quarto e foi para a área de serviço, ou melhor, para a outra porta de saída do apartamento, e recolheu uma caixa de papelão. Então, cuidando para não ser vista, esgueirou-se novamente pelo corredor e, alguns minutos depois, retornou e juntou-se aos demais. 

―Pai, eu... 

―Agora não, filha. Estive conversando com sua mãe, e chegamos a conclusão de que devemos procurar te entender mais. Deixa pra gente conversar melhor sobre isso depois da refeição, tá bom? 

―Então você vai deixar eu trazer o bichinho aqui pra casa? 

­―Não. Não vou. Mas te prometo que a gente vai achar a melhor solução pra isso. Sei que é importante pra você. Mas não vai ter lugar pra nenhum bicho aqui no apartamento. 

A menina suspirou e deu de ombros. Talvez a situação não estivesse assim, tão ruim, afinal o pai entendera que ela precisava ser ouvida vez ou outra. E por fim, o “bichinho” já estava muito bem escondido lá no banheiro do fim do corredor, acomodado naquela caixa de papelão, em um cantinho atrás do armário. 

“Ninguém usa aquele banheiro mesmo.” ―a menina pensou, enquanto arrumava seu prato. 

Depois da refeição, a família se reuniu na sala para uma longa discussão. E por incrível que possa parecer, os filhos participaram ativamente da conversa, fosse reclamando ou dando palpites, ou, ainda, tentando mostrar soluções. Algumas extremamente estapafúrdias e completamente fora da realidade, mas já era alguma coisa. E assim foi, até que todos resolveram abandonar a sala. Cada filho foi para seu quarto, e o casal alojou-se na sacada. Ficaram por ali durante pouco mais de uma hora, mas o cansaço da esposa fez com que a paquera sucumbisse. 

―Amor! Tenho mesmo que tomar esse dito remédio? ―o marido questionou, completamente desanimado. Vou levantar umas dez vezes durante a noite para ir ao banheiro. 

―Tem sim, Ítalo. E não discuta. Mas faça o favor de usar o banheiro do corredor. Não quero que a defesa civil interdite nosso banheiro pela bomba química que você deixa a cada vez que usa esse remédio. 

―Hehe... Pode deixar! 

Tudo corria tranquilamente, até que lá pelo meio da madrugada o filho abriu a porta do quarto dos pais e correu para a cama, deitando-se e pedindo um abraço para a mãe. Ele parecia assustado, o que a fez perguntar o que estava acontecendo. 

―Sei lá, manhê! To jogando um game de Aliens. Daí, quando fui ao banheiro, lembrei que a lâmpada lá do meu quarto não ilumina nada e fiquei com medo. Usei o banheiro do corredor, e tenho certeza de que meu passarinho tava me olhando! E tava parecendo com um Alien! To com medo daquele jogo ter transformado meu passarinho em ET, manhê! 

―Tá vendo só! São esses jogos! Você joga demais, meu amorzim! Cansei de falar para o Ítalo parar de comprar todo esse veneno virtual. Mas vamos dormir. Teu passarinho não vai virar ET não. Mamãe te protege. 

A mãe sequer terminou de falar e o menino já havia adormecido. Ela, ainda um pouco estressada, começou a fechar os olhos para tentar dormir, mas desistiu assim que notou que o marido se mexia demasiadamente. Possivelmente ele levantaria, ainda sonolento, para ir ao banheiro. E foi exatamente o que aconteceu. 

―No banheiro do corredoooooor! ―ela falou firmemente, sabendo que ele ainda dormia. 

Ítalo saiu do quarto e levou, aproximadamente, uns 20 minutos para retornar. Quando deitou ao lado da mulher, chamou-a e, sussurrando, fez uma pergunta que a deixou espantada. 

―Meu dengo! Você acha que, nessa idade em que estou, ainda preciso fazer cirurgia de fimose? 

―O que? Tá maluco? Por que tá me perguntando isso? 

―Ué! Você é a enfermeira. Eu sou apenas um analista de mercado, e não entendo nada dessas coisas. 

―Tá, entendi. Mas por que tá tocando nesse assunto a essa hora? E é claro que você não precisa de cirurgia alguma. 

―É que tive a nítida impressão, logo depois de me sentar no vaso sanitário, de que meu pinto mostrou língua pra mim. 

―Kkkkkkkkk. Meu querido, me diz! Você não andou tomando nenhum chazinho de cogumelo, não é? E nem tem jogado vídeo game com o Junior, claro! Vai dormir, vai. 

 Lá pelas cinco horas da manhã, foi a vez da esposa acordar para ir ao banheiro. Calçou os chinelos e, ao tentar abrir a porta, viu que a mesma estava trancada. Quando voltou o olhar para a cama, viu que o filho não estava lá. 

―Eu não acredito. O Junior resolveu se trancar no meu banheiro. E vai ficar por aí um tempão. Bom, vou lá no corredor. Espero que o fudum tenha passado. 

Minutos depois, o marido acordou abruptamente. Alguém parecia berrar, pedindo por socorro. 

―Que droga é essa? Meu amor, você escutou alguém gritar? Meu amor... ué, cadê ela? 

Novo grito, e Ítalo percebeu que era sua esposa quem gritava. Ele nem pensou no que fazer. Levantou rapidamente e partiu em busca da origem daquele escândalo. E quando chegou ao corredor, reparou que os berros partiam do banheiro. Em instantes, tanto a filha quando o filho se juntaram ao pai. 

―Que tá pegando, paiê? A mãe tá sendo abstraída por algum Alien? 

―Abduzida, Junior! Abduzida. E não tem Alien nenhum aí dentro do nosso banheiro. 

Os gritos silenciaram por instantes, mas logo voltaram com toda a intensidade. Ítalo tomou distância e chutou a porta, fazendo-a abrir e bater na parede, mas quando ele foi entrar, a porta voltou e acertou seu nariz, arrancando um filete de sangue. 

―Aaaaaiiiii! Essa doeu. ―ele reclamou, mas entrou no banheiro e procurou pela esposa. 

Ela estava sentada no vaso sanitário, pálida e olhando para o meio das pernas. Ítalo correu os olhos pelo ambiente e, sem ver nada de anormal, sossegou um pouco. 

―O que tá acontecendo, meu amor? ―ele perguntou, assustado.

―É... é... é que minha perereca mostrou língua pra mim! ―a esposa quase não conseguia falar, e agora, mantinha as pernas bem fechadas.

―O queeeee? Tá maluca? 

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―E tem mais... ela tinha dois olhos... e um nariz... socorrooooooooooooo!

Aretha empalideceu. Lentamente, ela se desviou do pai e foi para a parte de trás do banheiro, justamente onde havia deixado a caixa de papelão. E desanimou ao ver que a caixa estava aberta. 

―Genteeeee. Pai, mãe... não se assustem. ―a filha falou calmamente, deixando o pai curioso. 

―Não se assustar? ―o pai, reticente, olhou para a filha.  Não se assustar com o que, Aretha? 

―Bom, é que... sabe aquele bichinho que você não queria que eu trouxesse pra cá? Pois é, eu precisei trazer! 

―Você me desobedeceu? 

―Que bicho? ―a mãe perguntou, parando com os gritos. 

―Cadê esse bicho, Aretha? ―o pai tomou a palavra, mostrando irritação. 

―Tava alí, naquela caixa de papelão! Mas, agora, acho que ele tá dentro do... vaso sanitário!

―E que bicho é esse, afinal? ―a mãe relutou, mas acabou perguntando. 

―Nada de mais, mamãe! ―Aretha mostrou um sorriso amarelo e baixou a cabeça. Só uma cobrinha... coisa mínima!

―Uma cobra, minha filha? ―o pai estufou o peito e colocou as mãos na cintura. ―Eu não te falei que não queria bichos aqui em casa? E você, ainda assim, traz um pra cá? Pior ainda, uma cobra? 

―Não dá nada, pai! ―Aretha respondeu, agora olhando para o pai. Bichinho mansinho! 

―Mansinho? E se essa cobra pica alguém? Vem cá pra sala, que a gente precisa conversar. 

―Paaaaaaaaareeeeeem! ―a mãe berrou, chamando a atenção dos demais. ―Enquanto vocês ficam com essa porcaria de discussão, eu to aqui, com uma cobra se esfregando na minha bunda! O que eu faço? Dá pra alguém me falar? E se ela resolve se assustar e entrar na toca? 

―Manhê, ela não vai fazer isso! ―a filha suplicou. Fica calma! 

―Ficar calma? Não é na tua toca que ela vai se esconder, né? 

―E o que nós fazemos, amore? ―o marido perguntou, parecendo aturdido.

―Como, “o que nós fazemos”, Ítalo? ―a esposa, nitidamente descontrolada, começou a levantar o tom da voz. Você não vive dizendo que é o homem da casa? Tira esse bicho daqui. E depressa! 

―Eu tenho uma ideia melhor. Já volto. 

―Ítalooooooooooooo! Volta aqui, seu traste!

A esposa berrou, mas de pouco adiantou. Então, como o marido fugira, a responsável por aquilo tudo, Aretha, é quem deveria resolver a situação. 

―Espera, manhê! Vou ligar pro meu namorado pra ver o que eu faço. 

Aretha sequer esperou pela reação da mãe. Tratou de sair rapidamente do banheiro, mas não foi sozinha. O filho também agiu de forma rápida e correu, e assim, a mãe ficou lá, sozinha. 

Algum tempo depois, aproximadamente meia-hora, o marido voltou, acompanhado pelo porteiro e pelo síndico do prédio. Quando entraram no banheiro, encontraram a mulher cantando uma cantiga de ninar. Ela, ao vê-los, tomou o maior susto. 

―O que esses dois estão fazendo aqui, Ítalo? 

―Fui buscar ajuda, amore! Eu não vou colocar a mão numa cobra. Nem pensar nessa hipótese! 

cobra cipó - image by Google
―Ah! Tá! Como se já não fosse o suficiente eu aqui, com uma cobra gelada se esfregando na minha perseguida, agora você quer me constranger com o prédio inteiro? Some, agora, com esse povo daqui. Pode deixar que to me entendendo com a cobra. To cantando pra ela dormir. E trata de pensar em alguma coisa, pois não sei até quando eu aguento! To quase me borrando, e acho que ela não vai gostar muito do cheiro!

Ítalo não sabia o que fazer. Pensou, pensou, até que resolveu ligar para os bombeiros. No entanto, como o sinal de celular no Brasil é muito ruim, a atendente não entendeu patavinas do que estava acontecendo. 

―Repita, senhor! Por favor! 

―Repetir de novo, moça? Minha mulher está desmoronando. Tá ardendo de raiva, e se eu não resolver isso rapidamente, to morto! Dá pra mandar logo uma equipe? 

―Desmoronando? Ardendo? Mortos? Ok, senhor, agora eu acho que entendi. Prédio em chamas com risco de desmoronamento, e com risco de morte! A situação é extremamente grave! Estou acionando as equipes. Aguarde no local e, por favor, mantenha a calma! 

Em menos de quinze minutos, quatro caminhões dos bombeiros e vários jornalistas estavam no local. Ítalo, desesperado, tentava explicar tudo, e mal reparou que um fotógrafo passou por ele e foi para o banheiro, filmando tudo o que acontecia. No dia seguinte, a foto do bombeiro resgatando a cobra, por entre as pernas da mulher, estava na primeira página da maioria dos jornais da cidade. E o bafafá correu solto. 

―Que mico, Ítalo! Que mico! Vou esfolar você e, claro, a Aretha! Nem vou pra clínica. Imagina minhas clientes, minhas funcionárias e mais aquele mundo de gente lá de perto? Como se não bastasse, aquela praga de fotógrafo me pegou de pernas abertas, e bem numa época que to sem tempo pra me depilar! Ai, que raiva! Eu vou te capar, seu traste. Pra que chamar os bombeiros? 

―Tá reclamando do que? A cobra não era venenosa e eu passei por covarde! Já me ligaram várias vezes tirando o maior sarro, e a polícia ambiental ainda tá me chamando pra esclarecer tudo isso. Pra completar, o dono verdadeiro do animal quer me processar, alegando que a cobra saiu traumatizada por tudo que ouviu, viu e cheirou! Onde eu arranjo um psicólogo para cobras? 

 

Marcio Rutes




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sábado, 21 de janeiro de 2023

...MORREU LÁ, SENTADO E CHORANDO!


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Era sempre uma cena triste, passar naquela ladeira e olhar a velha oficina de marcenaria e carpintaria. Na janela pequena, aquela que dava para a rua, aparecia seu Almar, carpinteiro, marceneiro, artesão e pescador dos bons. Ele ficava por lá, sentado na velha cadeira de palha, que o amparou por anos a fio. Essa cadeira fez parte de sua vida. Ela viu nascerem gamelas, cuias, pilões, violas de cocho, rabecas, violões... pois é, hoje chamaríamos o seu Almar de luthier, mas ele, mesmo um mestre sem entender as letras, se considerava apenas um marceneiro, nada mais do que isso. E como ele era bom. Tratava a madeira com uma paixão ardente. Falava com ela. Entendia cada nota que ela emitia mesmo antes de virar um instrumento. 

Seu Almar nasceu pobre, filho de agricultores, lá no começo do século passado. Família grande, muitos irmãos e um pai que amava música. Cresceu e, onde era a propriedade do pai, um vilarejo grande se formou, tirando um pouco a magia do lugar. Desde cedo se enveredou pela carpintaria, mas a marcenaria era algo natural dentro dele. Ainda criança, aos doze anos de idade, fabricou as ferramentas que lhe faltavam para fazer pequenos artefatos de madeira. Eram utensílios domésticos para a mãe e objetos para auxiliar ao pai na lida da roça. Não viveu disso, não ganhou dinheiro, pois era da carpintaria que se sustentava, mas levou a marcenaria até o fim da vida como um linimento para a alma. 

Cada ferramenta que ele fabricava era uma extensão de seus dedos e mãos. Tratava melhor delas do que um pai trata a um filho. Era delas que ele tirava alegria, e ele retribuía a elas com imenso respeito e amor. As ferramentas, fosse da carpintaria ou da marcenaria, eram responsáveis por algo que muito orgulhava àquele homem: jamais deixara de cumprir algo que tratara, fosse um serviço ou qualquer outra coisa. Jurava sempre que levaria isso até o fim da vida. 

Das terras do pai, restou um pedaço de chão dobrado para ele, que logo foi tomado pelo vilarejo. Nunca teve posses, mas nem precisava de muito. Tinha sua carpintaria e, também, Mariquinha. 

Ah! Mariquinha. A Maria dos cachos negros, como era chamada quando ainda menina. Longos cabelos cacheados e um sorriso sempre tímido nos lábios. A lavoura judiou dela desde criança, e aos quinze anos, se viu sozinha no mundo. Os pais, lavradores, morreram de uma peste, sabe-se lá qual, pois sequer ela lembrava. Seu Alberto, pai de Almar e homem de alma boa, recolheu a moça. "Onde come um, comem dez, e ela não vai ficar no relento", disse ele, com um vozeirão de espantar até cavalo no pasto. Mas era esperto, e logo viu que não teria somente mais uma filha, mas, sim, uma nora. 

No entanto, seu Alberto sempre cuidou. A moça casou pura, sem que Almar sequer tivesse beijado a moça antes do casamento. Ao menos assim se crê até hoje. E dona Mariquinha, prendada, fez de seu Almar o homem mais feliz daquele mundo. Tiveram filhos, oito no total, todos muito bem criados e educados. Nunca faltou nada. Nenhum deles há de dizer que o suor de seu Almar deixou algo faltar, seja na mesa das refeições, seja no companheirismo de pai, seja na educação que tiveram. 

Mas o tempo não perdoa, voa. Cada um dos filhos, no seu devido momento, casou e foi para a cidade grande. Seu Almar sempre falava que enquanto tivesse dona Mariquinha e a carpintaria, viveria feliz, pois os filhos, mesmo com uma saudade danada de doída, esses ele criou para o mundo. Assim, envelheceu, e também Mariquinha, que mesmo com a pele amarrotada, era vista por seu Almar como “a seda que recobria um coração”. Não importava, para ele, a seda da pele, pois para essa, ele nunca ligou. Mas a seda dos sentimentos de um coração puro, que ele sempre enxergou na companheira, seria eterna. 

Então, após os filhos partirem para a vida própria, dona Mariquinha passou a acompanhar seu Almar até a oficina todos os dias. Ele sentava naquela cadeira, a que dava para a janela, e ela ficava diante dele, em outra cadeira. Lá, ela cantarolava e asseava as ferramentas, enquanto ele trabalhava lentamente, conforme as mãos comandavam. Foi assim por vinte anos. 

Os filhos vinham vez ou outra, e traziam os netos, mas nenhum se interessou em seguir os passos do avô. Até que um dia, em uma manhã ensolarada, dona Mariquinha não acordou. E seu Almar chorou pela primeira vez na vida. 

Os anos seguiram, poucos, até a morte de seu Almar. E dia após dia, ele foi para a carpintaria. Sentava na cadeira e trabalhava. Cantarolava as mesmas canções que dona Mariquinha cantava. E quer saber? Seu Almar conversava. Conversava muito. Conversava com dona Mariquinha. Loucura? Talvez. Para ele, no entanto, era a seda de um coração puro que vinha para descansar os olhos avermelhados pela saudade. 

Quem olhava de fora, se entristecia. Via seu Almar lá, sentado e naquela agonia. Na hora de ir para casa, ele terminava o asseio das ferramentas. Não descuidou delas. Arrumava cada uma no lugar e fechava tudo. Ao sair, esperava um pouco e dizia, em pensamento: “Logo estaremos juntos. Assim que Deus quiser, eu irei”. 

Em uma tarde de setembro, um cliente muito antigo passou pela oficina de seu Almar. Ele encomendara uma viola de cocho há mais de um ano, mas não tinha pressa. Era uma forma de manter aquele pobre homem ocupado, tendo o que fazer do tempo. E naquele dia, o instrumento estava pronto. 

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Ao entrar na oficina, o homem cumprimentou seu Almar, mas não obteve resposta. Ele estava ali, sentado naquele mesmo lugar e sorrindo, olhando para a cadeira em que dona Mariquinha sempre sentava. Ao lado, a viola prontinha. O homem ainda chamou novamente, mas logo viu que seu Almar não responderia. Havia uma paz imensa naquele lugar, e seu Almar, como dizem por aí, só esperou terminar seu compromisso, honesto que era, para depois ir encontrar a mulher amada. 

Seu Almar morreu lá, sentado e chorando! Chorando o amor à vida, aos filhos. Chorou e cantou seu amor pelo trabalho, pela profissão, pelas tão estimadas ferramentas. Mas morreu sorrindo, sabendo que dona Mariquinha só esperava ele terminar aquele serviço contratado para vir buscá-lo. Ela sabia, como todos, do orgulho que ele possuía em jamais ter enganado ninguém. E não seria ali, nem diante de tanta saudade, que ele deixaria de cumprir um trato. 

O marceneiro, o carpinteiro, o homem da alma musical não está mais lá, naquela janela. No entanto, muitos que passam por lá juram que escutam, ainda, a velha lixadeira fazendo barulho, uma mulher cantando e um homem amando intensamente a vida e a esposa.


Marcio Rutes




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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

COM QUE ROUPA EU VOU?

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―Sua bênça, padim. 

O coro feminino soou ensaiado e automático. No arco da grande porta de madeira maciça e entalhada, três moças, de vestido branco e rodado, sorriam e esticavam as mãos, em sinal de respeito. 

O quarto era muito grande, perfeito para compôr um daqueles cenários retratados por Graciliano Ramos, ou algum outro autor, quando escreviam sobre a “casa grande” das fazendas do nosso agreste. Os móveis, proporcionais ao quarto e de madeira grossa e antiga, eram caros e dignos de um antiquário, e a situação tranquila em que aquele casal vivia não se refletia naquele momento, um tanto inusitado para àquela hora da manhã. O casal, dono do lugar, iria a um compromisso, e o atraso já era grande. 

―Deus qui abençôe ocêis, mininas. Agora, chispa daqui, qui eu i a madinha tamo si compondo. 

­―Arre, Natalino! —uma voz feminina ressoou, vinda do interior do cômodo. —Num seja ansim, um véio ranheta! As minina só qué pidí abênça, hómi! 

―Antuérpia, minha fia! —Natalino respondeu, demonstrando calma. —Sí tudo os nossos afiado vinhé pidí abênça, nóis só vai pru compromisso quando ele tivé acabado. I vê sí arruma logo arguma coisa pra vistí, qui já tá tarde. Afinar, cadê Cajuíno, esse fio da muléstia, qui mandei ele perpará a caminhonete, e inté agora ele não retornô? 

―Larga mão de tanta casmurrice cum nosso bisneto. O minino logo vórta! Agora, mi ajuda a iscoiê logo arguma coisa pra eu me arrumá! Num quero ir disarrumada. As minina do clube vão arrepará! 

―Mininas? —Natalino soltou uma sonora gargalhada. —Aquelas lá amassaram o pão prá Santa Ceia, muié! I adispois, vinheram pra cá co tar do Cabrar! I si apressa, sinão te largo aqui. 

―Pra ocêis, hómi, é fácir! Só trocá as peça di baxo, que as di cima é tudo iguar! 

―As peça di baxo? Percisava trocá? Bão... acho que o compromisso num é ansim, tão importante! Mas, Antuépia, num inrola! Faiz qui nem as muié da cidade grande, i vai cum pretim básico. Aquele ali tá bão!

A mulher olhou para o enorme guarda-roupa e, depois, novamente para o marido, fazendo cara de desentendimento. O marido, impaciente, foi até o móvel e pegou por conta a peça de vestuário, jogando-a nas mãos da esposa. 

―Mas, Natalino! Num posso ir cum esse! 

―Arre, muié? Amódiquê num pode? Tão fresquinho e charmoso! 

―Pruquê essa é minha mortalha! É especiar pru dia que eu se for! Num vai ficá de bom tom si eu aparecê lá no compromisso cum ela, seu abestado! Pódi inté ser pecado!

­―Num querdito! Intão, vai cum aquela carça branca, qui tá mais pra isquerda! 

­―A quar? Essa? 

―Não, muié...! Na otra isquerda. Eita, sua lésa! 

―Eu? Lésa? Ocê é que é um tanço! Isso num é carça, é a tua cirola (ceroula)! 

―Ah! Sei lá, muié! Ocê cumprica dimais! I otra coisa! Que qui é essas coisa isquisita aí nessa gaveta? 

―Seu lerdo das ideia! São minhas carcinha! 

Natalino pegou uma das peças e levantou, virou, olhou, e arrematou. 

­―Carcinha? Dá pra vistí a vaca mimosa e sobra espaço ainda. Isso é carçola, muié! Lona di circo! 

―Dá isso aqui! ―ela arrancou a peça de vestuário da mão do marido e jogou na gaveta, irritada e bufando. ―Num recramo das tua cuéca, pra saco rendido e estendido, que ocê usa, ou recramo? I ocê? Vai di terno i sandáia? Num vai por as butina? 

­―Qui nada! O zóio de pexe tá mi incomodando. Vô cás sandáia sim. I si arguém arrepará, eu... 

―Ocê num vai fazê é nada! I trata di carçá as butina, qui to ficando arretada! 

­―Eita, muié braba! Mais é mió num atentá! Da úrtima veiz, ela quase me corta no facão as minha parte baxa! Num sei pru quê num mi casei cá fia do Zé das Cabra! Era mais mansa! 

―Pruquê eu tinha dente i ela não! Foi pur isso, seu abestado! 

Repentinamente, a porta abriu e chamou a atenção de Natalino. 

―Abênça, padim. 

―Mais num querdito! —Natalino se assustou e se virou, armando uma expressão nada agradável. —Que ocê qué, seu peste? E chispe daqui, que a madinha tá desprivinida! Ninguém dá inducação presses muleque? 

―Dexa o Ariovardo, Natalino! É bão minino! 

―Dexo nada! Esse, cada veiz qui mi vê, se ispicha todo, mais é só pra tentá ganhá arguma coisa! Conheço bem quem me cerca! E si ele num tem o qui fazê, qui vá percura Cajuíno, aquele fio da muléstia! 

A mulher fingiu que não escutou o que o marido falara, e continuou revirando o guarda-roupa. Ela, nitidamente, perdia a paciência, até que notou um vestido lustroso e todo cheio de decorações brilhantes. Pegou-o e mostrou ao marido, que entre um deboche e outro, alfinetou a esposa. 

―Antuérpia, nem as quenga da Maria Gorda usa um despudoramento desses. Daonde ocê arranjô isso, muié? 

―Foi a Matirda, tua irmã, qui mi vendeu. Era o vistido dela í na domingueira do Padre Bastião. Num tá alembrado? 

Natalino mordeu os lábios e calou. Remoeu, remoeu, e até abriu a boca para retrucar, mas preferiu não provocar mais. E assim ficou, vendo a esposa derrubar para a cama todos os intermináveis cabides que estavam dentro daquele guarda-roupa. Uma hora depois, a mulher estava pronta. Ou quase. 

­―Muié de Deus! Que qui é isso? —Natalino comentou, assustado e arregalando os olhos. 

―Arre! Num tenho quase ropa ninhuma! Intão, improvisei! 

­―Vistido vremeio, cum chapéu redondo e essa raposa no pescoço? Ocê endoidô? 

―Raposa? Raposa nada... isso é chique. E chama istóla (estóla). 

―Tá um calor de dar invéja nu capeta, muié! Pra quê isso? 

―Pare de me avechá, Natalino! Ocê num intende o qui vai ni nóis, muié! Num tem um pingo di querência! 

Ela baixou a cabeça e, propositalmente, soltou alguns soluços. Natalino deu de ombros, como se soubesse que havia sido vencido, e concordou. Por mais que tentasse argumentar, de pouco adiantaria. Além disso, o atraso fazia com que ele, um homem orgulhoso de ser cumpridor de seus compromissos, ardesse em pressa. 

―Tá, tá! —Natalino concordou, baixando a cabeça e mordendo, novamente, os lábios. — Intão, vamo imbora, qui devem di tá só isperando nossa chegada pra dar início nas festividade do compromisso. 

―Nem pensar! Farta a borsa, os sapato e, craro, o principar! A maquilage! 

Natalino desceu para a sala principal e soltou o corpo para sentar em algum lugar. Por muito pouco, não erra a poltrona. Antuérpia, que o seguira até o andar de baixo, reclamando e maldizendo o marido, se voltou para as escadas e subiu, sem pressa nenhuma, como se fizesse mais birra a cada contestação que escutava. Nesse instante, o bisneto entrou pela porta principal e olhou para Natalino, esperando uma bronca pela demora, mas não escutou um pio que fosse. 

Ao olhar para a bisavó subindo as escadas, o rapaz entendeu o motivo de Natalino estar ali, largado naquela poltrona. Era sempre a mesma coisa. A cada vez que iam para um encontro social, era assim. Então, sentou-se ao lado do bisavô e, sem ter o que fazer, calou e esperou. 

Uma hora depois, Antuérpia apontava novamente pelas escadas, e ao chegar ao andar de baixo, deixou tanto Natalino quanto o bisneto de queixos caídos. O rapaz foi o primeiro a ter alguma reação. 

―Vó du céu! A sinhora tá mais parecida cum pinherinho di natar! 

―Cala a boca, Cajuíno! —Natalino retrucou, rispidamente. —Sinão, essa peste vai querê acrescê mais arguma coisa, i o compromisso num vai isperá nóis! Vamo logo! 

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Antuérpia deu dois passos e, do nada, o salto do sapato estalou e quebrou. Foi o suficiente para os outros dois se olharem desesperados. Sem que a mulher esperasse, os dois agarraram seus braços e a levantaram, carregando-a a contragosto para a caminhonete. No meio do caminho, a única coisa que ela fazia era reclamar. 

―Oceis são dois animar! I ainda mi fizeram borrar a maquilage qui tanto mi deu trabaio! 

―Ara, vó! Isso é maquilage? Pensei qui era minhas tinta da iscóla. I do jeito qui tá, inté parece aquelas muié lá do carnavar carióca qui passa na tv. A módiquê isso, vó? 

―As minina vão tudo num chiquê só! Só eu qui vô ansim, tudo disarrumada e distroçada no compromisso! 

Natalino, que dirigia apressado, rangia os dentes e reclamava acintosamente. 

―Nunca mais, Antuérpia! Nunca mais te aviso quando convidarem nóis prum velório!

 

 

Marcio Rutes




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