domingo, 31 de março de 2013

UM BELO E PERFUMADO JARDIM

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Dez dias passaram desde que ele saíra de casa. A estrada, longa, parecia não ter fim, e ele, cansado, já não suportava as dores dos pés ao trocar os passos.

Saíra da rodovia principal fazia algum tempo, nem lembrava quanto, e agora transitava por estradas secundárias. A comida, pouca, pesava no alforje, mas não poderia abandoná-la. Era seu pouco sustento, e precisaria durar sabe Deus até quando. Ou até que ele achasse novamente algum lugar onde pudesse repô-la.

Sentou sob uma árvore e se colocou a lembrar dos últimos acontecimentos. Pouco lhe veio a mente, talvez por algum bloqueio ou algo assim, e dentro daquilo que lembrava, o que mais o atemorizava era a imagem do teto de sua pequena casa despencando para cima dele. Depois disso, ao conseguir sair dos escombros, lembrava do povo correndo desordenadamente e em pânico. Um lapso insistia em deixar tudo branco, e a imagem posterior a isso já era a da estrada. Sequer a contagem de dez dias era precisa, e nem ao menos recordava de ter reunido alimento ou de ter se despedido de alguém. A única certeza que lhe cabia era a da vontade de jamais olhar para trás.

Cansara de tanto trabalhar e de pouco ter. Não que quisesse muito, mas gostaria de poder viver com dignidade, com menos apertos financeiros. Sim, tinha vícios. Gostava de aproveitar a tarde de sábado com os amigos em algum bar, e também de fumar seu cigarro, mas jamais gastou em demasia. Fumava pouco e a bebida nos sábados era mais para aproveitar aquela conversa e deixar extravasar a canseira do canteiro de obras que tanto maltratava pela semana inteira, do que para se embebedar. Outros vícios? Não apostava dinheiro, não era nenhum pervertido, nem existia mais nada que pudesse denegrir seu caráter. Era honesto e carinhoso. Então, por que tanto castigo? Em tão pouco tempo, no espaço de três meses, perdeu a mãe para uma doença repentina, a namorada foi embora, o cachorro (fiel companheiro por mais de uma década) também morreu, e por fim, sua casa desmoronou. Era demais para ele.

Começava a questionar se Deus realmente estava perto dele.

Levantou e começou a caminhar novamente, até que mais adiante, reparou um casal capinando uma pequena propriedade. Achou estranho, pois não viu nada plantado. Pedras e mais pedras, de todos os tamanhos. Era o que ele enxergava para todos os lados. Olhou ao redor e constatou que todo aquele lugar era inóspito, e não servia para o cultivo de nada.

Aproximou-se da cerca e observou por mais alguns instantes. Era um casal já idoso, e com algumas dificuldades para se locomover e trabalhar. A mulher, beirando os setenta anos, usava um lenço amarrado ao cabelo, e carregava uma expressão sofrida, como se o sol tivesse castigado sua face por toda uma vida. O homem, parecendo ter a mesma idade, arrastava uma das pernas e mais se apoiava na enxada do que a utilizava para a labuta. No entanto, mesmo naquele ritmo lento, o casal não parou um instante sequer.

Duas horas depois, o casal de idosos caminhou para a cerca. A mulher amparava o homem pelo braço, puxando-o com algum cuidado. Quando finalmente se aproximaram, o andarilho reparou que aquela senhora pouco enxergava, e se esforçava muito para ver onde pisava.

―Boa tarde. ―o andarilho cumprimentou, apoiando-se a cerca.

―Boa tarde, meu filho. Que Deus o abençoe. ―a senhora respondeu, educadamente.

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―Minha senhora, estive olhando para vocês, e estou curioso. Por que estão capinando essa terra árida e pedregosa? Aqui dificilmente vocês poderão plantar algo!

­­―Meu filho, isso é o que nos restou de uma vida inteira. É o nosso recomeço.

O andarilho ficou espantado com o que ouviu. Recomeço? Naquela idade? Naquele lugar?

­­―Perdão, mas eu fiquei sem entender! ­­―uma expressão aturdida acompanhou as palavras do andarilho.

A senhora ajudou o esposo a se sentar e deu-lhe uma pequena garrafa, que parecia ser o único sustento que eles possuíam naquele instante. Era água. O senhor idoso tomou aquilo lentamente, em pequenos goles, e devolveu a garrafa para a esposa, que a ofereceu ao andarilho.

―É difícil achar água por estas paragens. ­­―ela esticou o braço com alguma dificuldade. ­­―Tome, sirva-se. É o pouco que temos, mas o senhor deve ter sede.

Uma sensação de culpa tomou a consciência do andarilho. Olhou para aquele casal e a única coisa em que pensou foi no restante de alimento que ainda sobrava no alforje. Era seu único sustento, e precisaria conservá-lo, mas a situação que se apresentava cortou-lhe o coração. Recusou a água, devolvendo a garrafa para a mulher e retirou tudo o que tinha no alforje. Pulou a cerca e sentou-se, ajudando a mulher a fazer o mesmo. Ali ficaram por mais de uma hora, conversando e se alimentando com aquele pouco. A noite começava a se aproximar, e sem que o andarilho esperasse, a mulher convidou-o para pernoitar na pequena tapera em que habitavam. Lá, a miséria era ainda maior.

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―Fomos muito bem de vida, moço. ­­―as palavras mal tinham força para sair do velho senhor, que sentado ao lado daquilo que parecia uma cama, escorava-se na parede cheia de frestas. ―Tivemos fazendas, carros, caminhões. Esbanjamos o que tínhamos. Nosso único filho estudou na Europa, e quando voltou, trouxe junto uma mulher que só queria saber de festas caras. Quando nos demos conta, nosso dinheiro havia sumido. Eles tiraram tudo o que tínhamos. Um tanto eles gastaram, e o outro eles roubaram mesmo. Perdemos tudo, fomos escorraçados de nossas terras, e ficamos sem rumo. Nosso filho nos abandonou, e sequer sabemos onde ele mora...

...para não terminarmos a vida num asilo, eu e minha velha fomos trabalhar. Isso mesmo, nunca fomos de nos entregar facilmente. Todos os amigos viraram as costas quando notaram que não tínhamos mais nada. Aprendemos a economizar, e com o pouco que ganhávamos, refizemos a vida...

...depois de alguns anos de trabalho duro, melhoramos de vida novamente, mas estávamos diferentes. Não esbanjávamos mais. Cuidávamos daquilo que conquistamos novamente, mas sem ganância. Tentávamos ajudar a quem precisasse, até que num certo dia, um homem bateu em nossa porta pedindo abrigo e comida. Ele estava com a mulher e um filho, e não vimos perigo em acolhê-los...

...na manhã seguinte, eles nos assaltaram. Eu levei um tiro na perna e minha velha, coitada, foi jogada contra a parede por aquele homem que alimentamos. Quase ficou cega. Hoje, eu mal posso andar, mas a guio, enquanto ela, sem ver, me carrega. Escoramo-nos um ao outro. Mas perdemos tudo novamente.

­­―E esta terra? O que fazem aqui? Vocês não vão conseguir transformar isto aqui em algo que forneça sustento. ―o andarilho interrompeu a conversa, mostrando um tanto de indignação pelo que escutava. ­­―O que pretendem aqui? Já são velhos e sem forças!

―Meu filho! ―a mulher adiantou-se ao marido, tomando-lhe a palavra. ­―Não podemos esperar que alguém faça por nós, e muito menos que caia tudo do céu. Esta terra não tem dono e ninguém a quer. Ela é como nós. Então, nos unimos a ela. Enquanto pudermos andar e enxergar, vamos trabalhar, vamos viver e vamos agradecer. E quando não pudermos mais, morreremos, mas sempre sabendo que jamais desistimos. Já apanhamos da vida, e aprendemos com tudo. Cometeremos outros erros, é claro, mas não os mesmos.

­­―Mas, senhora! Aqui só existem pedras!

­­―Só existem pedras para aquele que só quer enxergar pedras, meu filho. ­­―ela continuou, calmamente. ­­―Para nós, existe um belo jardim debaixo das pedras, onde plantaremos lindas flores. E para o lado de cá da propriedade, as pedras construirão uma casa confortável para nós. Do outro lado, plantaremos nosso sustento, e do outro, teremos um lindo tanque com peixes e marrecos.

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O andarilho olhou ternamente para aquele casal. Era provável que eles jamais conseguissem tal feito, mas agora ele entendia. Faziam aquilo para manterem-se em pé, vivos. O sonho os mantinha eretos, dignos de si próprios. E por ali, o andarilho acabou ficando. Foi acolhido como a um filho. Até que 3 anos depois, o casal partiu desta vida. O andarilho, que havia ajudado a cultivar um jardim, construiu uma pequena capela, toda feita daquelas pedras que o casal tanto sofrera para carregar de um lado para outro, e os enterrou dentro dela, em respeito a tudo aquilo que ele adquiriu com aqueles que o acolheram. Aprendeu muito com eles. Ganhou sabedoria.

Tempos depois, o andarilho retornou para a cidade, justamente para o local de onde partira alguns anos antes. Lá estava sua casa, ou os escombros dela. Tudo estava exatamente igual, como no dia em que virara as costas para aquele lugar. Nenhum de seus antigos vizinhos se atrevera a retornar para aquela encosta de morro. Ele, ao chegar, largou o que tinha nas mãos, arregaçou as mangas e começou a carregar os pedaços de parede de um lado para o outro.

Não demorou e logo alguém veio até o local, curioso para saber o que ele fazia.

―O que eu pretendo, carregando essas pedras? Construirei, antes de qualquer coisa, um belo jardim. Um lindo e perfumado jardim.


Marcio JR
(Marcio Rutes)

segunda-feira, 18 de março de 2013

FADA DAS MANHÃS (uma fábula dos dias atuais)



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Mariana acordou naquela manhã de abril. Como todos os dias, pensou ser sua última manhã. E novamente não foi.

A fumaça das chaminés ardeu em seus olhos assim que abriu as janelas. Lá fora, mesmo ainda muito cedo, já via as pessoas um tanto desesperadas por suas caronas e conduções. Olhou por alguns instantes para o céu e irritou-se com a poluição.

―Isso não acaba nunca? ­―pensou ela, ao mirar o céu cor de chumbo, exatamente igual ao da boca da noite anterior.

Mariana era uma mulher sofrida. Desistira de viver fazia algum tempo, aos poucos, deixando que seu peito se entregasse aquele marasmo em que sua existência entrara. Culpa dela ou de uma sociedade que cobrava demais e dava de menos? Isso já não fazia diferença, e então, como em cada manhã, arrumou-se e saiu para a rua, já imaginando o empurra-empurra na estação de trem.

Como num ritual, seu caminho até a estação foi regado por suas introjeções e introspecções. O balanço, como sempre, foi negativo.

­―Deus, como eu gostaria de fazer o dia das pessoas mais feliz. Quem dera eu pudesse fazer a manhã de alguém ser diferente, sorridente.

Assim ela caminhou como fazia em cada manhã.

Já na primeira esquina, encontrou Pedro, um mulatinho tristonho e que morava na rua. Dia após dia ele estava lá, solitário e com um aspecto esfomeado. E ela, sempre que passava, jogava uma moeda para ele, mas sempre dizendo:

―Ei, Pedro. Esquece do meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?

De lá, ela partia para a rua principal. No meio daquele amontoado de gente, ela se esquivava, desviava, e chegava até a floricultura. Lá ela encontrava “seu” Chang, chinês já idoso e que mal falava o português. Ele era dono de uma cara amarrada, mas no fundo era uma ótima pessoa. Não passava de alguém que cansara de trabalhar, porém, não poderia parar pois sustentava uma parte de sua família que ainda morava na China. Ninguém ligava para isso, ou sequer sabia, mas Mariana... ah! Mariana descobrira isso através de uma amiga, e todas as manhãs passava por lá para comprar uma rosa e perguntar dos parentes do velho Chang. Aprendera até algumas palavras em chinês, para melhorar a comunicação. Seu Chang, mesmo carrancudo, acabava sempre despontando um sorriso para ela.

E a rosa que Mariana comprava do velho Chang? Essa rosa tinha endereço certo. Um desvio aqui, outro ali, um ou dois becos apertados, e lá estava o asilo. Vários senhores e senhoras ficavam naquele portão em cada manhã, olhando o movimento louco de todos aqueles apressados, apertados pelas calçadas. Quando enxergavam Mariana se aproximando, todos se ouriçavam, quase tropeçando uns nos outros. Logo, um deles corria e puxava algum outro paciente, carregando-o essa até o portão. Mas, para que isso?

A resposta era simples. A mãe de Mariana terminara seus dias ali, exatamente naquele asilo, e Mariana, mesmo diante do escasso tempo, jamais se furtara de suas visitas matinais. Seu dinheiro também não era muito, então ela comprava a rasa do velho Chang e presenteava alguém do asilo, uma pessoa por dia, e para deixar ainda mais feliz àqueles pacientes do tempo, recitava alguns versos, ora de sua autoria, ora de algum poeta que ela lia na noite anterior. Em seguida, partia para seu emprego.

Depois do trem vinha o ônibus, sempre lotado. Ieda era a trocadora (ou cobradora, como alguns chamam), mulher frágil e castigada pela vida. Mariana, mesmo sabendo que precisaria se espremer para descer, ficava lá pela catraca, unicamente para escutar as histórias de Ieda. Não raramente, o ponto de descida ficava para trás, e lá ia Mariana correndo para a portaria da empresa.

Seu Galvão, homem sério e trabalhador, era o porteiro. Mariana soube que ele estava com problemas financeiros e de saúde na família, e que mal tinha o que comer. Ovos, pão e café. Era o que ela trazia na sacola a tiracolo. Não era muito, mas se ela pudesse, assim continuaria trazendo todos os dias. Quem sabe nem fosse por isso que seu Galvão se alegrasse tanto ao vê-la pela manhã, mas sim pelo sorriso que ela sempre deixava ao passar por aquela portaria. E assim que ela virava as costas, o porteiro dividia aquela refeição que ela deixava. Um tanto para ele e outro para levar para a esposa adoentada.

No caminho até seu departamento, ainda passava pelas copeiras, arrumadeiras, outros funcionários que ela sequer conhecia, mas sempre mantendo aquele sorriso no rosto. Até que chegava a sua mesa. Lá, ela desmontava, exausta. A rotina era sempre a mesma. Não demorava e Helena, uma das sócias da empresa, logo vinha até ela.

­―Atrasada novamente, não é? O que você pensa da vida? Acha que trabalhar aqui é algum divertimento? Ainda vou te despedir por todos esses atrasos. E tire esse sorriso do rosto. Sorrir não vai fazer a empresa ser melhor, e muito menos irá melhorar a vida de ninguém. Essas pessoas precisam de dinheiro e de trabalho.

Assim, Mariana passava seu dia. Queria ela, ao menos uma vez, fazer a manhã de alguém mais feliz. Isso era tudo o que ela queria.

Numa certa manhã, o dia amanheceu, mas Mariana não. Ela estava lá, estendida na cama e com os olhos fechados. O céu cor de chumbo trovejou e choveu, e Pedro foi o primeiro a sentir sua falta. Ficou no meio da chuva, olhando para o caminho por onde ela sempre vinha. Fome? Não. Sentiu falta dela lhe cobrando um sorriso.

O velho Chang, que já havia até embrulhado a rosa, também foi para o meio da rua, e lá ficou, esquecendo até dos clientes. No asilo, uma tristeza enorme tomava cada um daqueles que ainda conseguiam ir até o portão. Ieda, o trocadora do ônibus, sentiu-se mal, subitamente, e sequer apareceu para trabalhar.

Seu Galvão. Ah! Aquele homem era pura agonia. Corria para a portaria, ia até o portão, telefonava para a residência de Mariana, e nada. Estava quase enfartando. Algo estava errado. Ele sabia disso. Até as copeiras e arrumadeiras da empresa sentiam algo estranho no ar.

Mas Helena, a sócia da empresa, essa logo reagiu.

­―Alguém mande uma ordem para o departamento de pessoal. Quero “essazinha” demitida hoje mesmo. Quem ela pensa que é? Detesto pessoas que não têm nada a oferecer.

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E aqui termina a história de Mariana, uma mulher que desejava apenas modificar a manhã de alguém. Sonhava em transformar os dias das pessoas em momentos felizes.

O dia passou triste para todos, e na manhã seguinte, Pedro, o garoto que vivia na rua, sentiu uma lufada de vento roçar seu pescoço. Ele parou e, estranhamente, pensou ter escutado alguém sussurrar:

―Ei, Pedro. Esquece do meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?

Pedro virou rapidamente o pescoço e parou, perplexo. Diante dele, um anjo em forma de mulher, ou melhor, com o semblante de Mariana, olhava ternamente para ele. Desapareceu rapidamente, como se virasse fumaça e se misturasse com o chumbo das nuvens do céu. Mas era Mariana, ele sabia que sim.


Marcio JR
(Marcio Rutes)


sexta-feira, 8 de março de 2013

ENTRE ODORES

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Foi um mero instante,
devaneio de um querer, 
de um saber morno e irrequieto, 
no colo de mulher. 

Dos olhos aos pés, 
na pele alva e macia, reluzente, 
quente, tanto que fustiga a razão. 

E na emoção, pra que razão? 
O desejo está vencido, 
vendido aos joelhos dobrados, 
que diante de suas pernas instigantes, 
só o que faz é extravasar. 

Mãos correm em sentidos opostos, 
contrapostos a todo o normal. 
Mãos que se aliam, 
mesmo diante de todas as incertezas. 
Mãos que se completam, 
que brigam e reconciliam. 
Mãos que andam juntas. 

Corpos que se fundem, 
que gozam profundamente 
as razões para viver. 

Um sem o outro? 
--seria pimenta sem ardido, 
--ou amor sem gemido, 
--ou ainda um corpo sem vida. 

Mas que se diga, 
e que se aceite de uma vez, 
é bela, é única, paralela que anda sempre adiante, 
radiante, estonteante, insinuante, carente, latente... 
...sempre presente. 

Ela, sempre mulher.


Marcio JR
(Marcio Rutes)