sábado, 26 de agosto de 2023

DORINHA E UM CONTO DE NATAL - parte 1

 

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Frio. Andar por aquelas ruas era um verdadeiro martírio, e Dorinha já se arrependera de não ter trazido luvas e cachecol. Jujubão, seu cachorro, também sentia os reflexos da neve. Mal conseguia manter as patas no chão.

Dorinha andava e olhava assustada para tudo. Jamais vira neve, pois onde nascera, o inverno mal baixava dos 10° C. Mas estava ali, e isso era o que importava para ela. Então, mãos a obra. Precisava procurar pela menina que vendia fósforos.

Um menino passou correndo por Dorinha, e para desviar-se dela, se chocou contra um amontoado de tábuas e deixou cair algo que carregava nas mãos. Apressou-se para levantar e tirar satisfações com a menina, mas desistiu assim que viu os dentes do cachorro que se mantinha vigilante ao lado dela. Jujubão rosnou bravamente, fazendo o menino intimidar-se e desaparecer pela rua lamacenta. E assim que viu o menino desaparecer pela penumbra da noite, o cachorro saiu farejando algo, até que parou e ficou olhando para Dorinha.

―O que você encontrou, Jú? ―a menina se aproximou, abaixando-se para juntar algo. ―É um pé de chinelo adulto. Lembro que o papai falou que a mocinha que vende fósforos usava os chinelos da mãe dela, e que um menino malvado roubou um deles. Será que é este? Vamos tentar a sorte. Vai lá, Jú. Cheira, fareja e vai no rastro.

O cachorro fez o que Dorinha ordenou, mas como o chão estava coberto pela neve e lama, pouco conseguiu. E assim eles andaram, andaram, até que cansaram. O frio aumentava, deixando a mostra alguns flocos de neve bailando pelo ar. Andaram mais um pouco e pensaram em parar, e foi o que fizeram assim que viram um estabelecimento comercial, parecido com um restaurante.

―Fique aqui, Jú! Não vão deixar você entrar! Vou lá dentro tentar comprar alguma coisa pra gente comer e já volto.

Dorinha entrou no estabelecimento e deixou o cachorro para fora, porém logo retornou. Esquecera ela que aquele não era o mundo real, mas sim o mundo mágico, e ali o dinheiro dela de nada valia. Mas quando chegou novamente onde deixara o cachorro, constatou que ele havia desaparecido.

Tudo parecia mais escuro. Nas fachadas das casas, algumas luzes de lampião clareavam a decoração de Natal, e através das janelas embaçadas, podia-se ver as famílias comemorando e fartando-se com alimentos da época. Parecia tão quente dentro das casas.

Dorinha olhou pela rua, e reparou vários indigentes largados pelos cantos. Alguns dormiam, enquanto outros esmolavam ou reviravam lixeiras. Triste aquela realidade, mesmo vinda do mundo mágico dos contos de fadas.

―Que dó! ―ela murmurou, enquanto procurava pelo cachorro. ―Nunca imaginei que pudesse existir tanta coisa ruim nos contos de fadas!

Repentinamente, o badalar do relógio da igreja marcou meia-noite. Dorinha, que lembrava claramente da história contada pelo pai, desesperou. A vendedora de fósforos deveria estar prestes a morrer, e de nada teria adiantado essa visita ao mundo mágico.

―Jú, cadê você? ­―Dorinha gritava, mas o ar frio castigava a tal ponto, que ela quase não conseguia falar direito.

Andou até onde conseguiu, e encostou-se na parede de um beco. Deixou o corpo escorregar, e quando estava quase sentando na lama, escutou um latido. Era Jujubão, e o latido vinha do fundo do beco. Dorinha levantou rapidamente e correu o quanto pode, mas ao chegar onde estavam seu cachorro e a menina, desanimou.

A vendedora de fósforos estava deitada, abraçada ao cachorro. Jujubão mal se mexia, mas não pelo frio, e sim para manter a menina colada ao seu pelo, tentando mantê-la aquecida. E quando viu Dorinha se aproximando, latiu novamente e lambeu freneticamente o rosto da vendedora de fósforos.

―O que foi, Jú? Por que você está lambendo ela? Ela está...

Dorinha parou de falar e observou. Algumas estrelas, muito pequenas, brotaram do rosto da menina. Era como se fosse um pó dourado, e começaram a flutuar. Um tom amarelado brilhante verteu por todo o corpo da vendedora de fósforos, e do nada, tudo pareceu aquecer.

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―O que está acontecendo, afinal? ―Dorinha perguntou, olhando para o cachorro, que latia de maneira persistente, quase em agonia.

Dorinha, instintivamente, deitou-se sobre a menina e tentou aquecê-la. Era a única coisa que poderia fazer naquele instante. E rezou, rezou muito. Quando abriu os olhos, viu ao chão alguns palitos de fósforo queimados, e ao lado, a caixa vazia. Talvez fosse tarde demais.

Jujubão parou de latir, mas continuou ao lado das meninas, aquecendo-as. Dorinha, sentindo a ação do frio, adormeceu, e também começou a brilhar, deixando brotar de sua face o mesmo pó dourado que nascia da vendedora de fósforos. E assim, a noite passou.

No dia seguinte, um alvoroço se fez naquele beco. Um amontoado de pessoas falava sem parar, e sequer a presença da polícia fez com que eles parassem.

―Duas indigentes e um cachorro! ―um policial comentava com outro, que pelo fardamento, parecia ser seu superior. ―Não suportaram o frio, senhor! Uma pena! Bem na noite de Natal! Vou mandar o rabecão recolhe-las.



continua...


Marcio Rutes

não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.

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Este conto é uma alusão ao original "A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS" de Hans Christian Andersen. O conto original de Andersen foi publicado pela primeira vez em 1845, em dinamarquês, com o título Den Lille Pige med Svovlstikkerne, que significa "A menina com os palitos de fósforo".

Saiba mais: 


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

ANGÉLICA E ANGELINA - QUANDO OS ANJOS DIZEM AMÉM

 

Angélica - image by Google
Angélica teve uma infância pobre e restrita. Poucos brinquedos, roupas rasgadas, trabalho árduo e pesado para seus braços frágeis, mas com muito amor dado por seus pais. E assim ela cresceu, sempre esperançosa. Transformou-se em moça formosa, e mesmo com aquela infância sofrida, o mais belo sorriso sempre transbordou em seus lábios.

Nos cabelos de Angélica, uma flor fazia constante presença, branca e perfumada, e o amor não demorou para desabrochar em seu coração. Um jovem, também muito humilde, desposou-a, e juntos, construíram um lar e uma família.

O marido, rapaz honesto e muito trabalhador, preparou um roçado enorme na propriedade em que residiam, enquanto Angélica se ocupou da casa e do jardim, que de tão bem cuidado, era admirado por todos os moradores da pequena cidade.  O sonho do jovem rapaz era ver a esposa grávida, mas Angélica, por uma fatalidade do destino, não poderia gerar o filho tão desejado pelo marido.

Angélica entristeceu, e mesmo com todo o amor que ela tinha no coração, o jardim sentiu sua agonia. As plantas começaram a secar, uma a uma, e as poucas flores que ainda despontavam no alvorecer já não lhe davam mais alegria. Até que em uma manhã cinzenta, recoberta de garoa, ela foi até o meio do jardim e sentou entre algumas flores brancas e de perfume marcante. Seu coração estava apertado, e ali ela jurou que teria aquele filho que o marido tanto queria, nem que tal ato fosse a última coisa que ela fizesse. Neste momento, uma dor muito forte tomou sua cabeça, fazendo-a desmaiar instantaneamente. Quando acordou, já estava em sua cama, com o marido ao lado, olhando-a.

Os dias passaram e ela logo reparou algo estranho em seu corpo. Enjôos e uma vontade absurda de correr pelos campos a tomava a todo instante. Inexplicavelmente, ela estava feliz novamente, e não demorou para saber o motivo: estava esperando um filho, mais exatamente uma menina. Assim, Angélica retomou seu sorriso e a lida no jardim, e quando a filha nasceu, deram a ela o nome de Angelina.

No entanto, a felicidade do marido se transformou em tristeza rapidamente. Angélica, pouco tempo depois de trazer ao mundo a filha, adoeceu e morreu, deixando uma nuvem negra naquela casa. Angelina cresceu vendo o pai amargurado e piorando a cada dia. No jardim, nada mais se via além de ervas daninhas, e o roçado, provento da família, secou em pouco tempo.

Angelina, mesmo tendo todos os motivos para se amargurar, mostrava felicidade, e em todos os fins de tarde, corria para o antigo jardim que a mãe mantivera com tanto carinho. De lá, ela sempre voltava com um sorriso no rosto, e quando o pai perguntava a razão daquilo, ela dizia que estivera com a mãe. Ela era, ainda, muito criança, e o pai tentava se convencer de que aquilo era unicamente uma forma dela se defender da tristeza que a rodeava.

Em uma tarde ensolarada, o pai viu a filha correr para o antigo jardim, e não demorou muito para ouvir a risada da menina, como se brincasse e se divertisse com alguém. Ele, curioso, foi até o jardim para observar a filha, e quando chegou perto de onde ela estava, viu-a sentada ao chão, ao lado de um pequeno pé de flor branca e perfumada. Era o único arbusto florido que ainda restava naquilo que fora um jardim cheio de vida. O pai assustou-se ao ver que a menina parecia conversar com alguém, pois não havia mais ninguém além deles naquele lugar.

Preocupado com a filha, o pai foi até ela e sentou-se a seu lado, chamando-a e perguntando com quem ela falava. A menina, calmamente, apontou para a flor e disse que a mãe estava ali, sorrindo para ela.

―Minha filha, aqui não há ninguém além de nós dois! É apenas a sua vontade de ter sua mãe! Eu também morro de saudades dela!

―Papai. A mamãe pediu para você fechar os olhos.

―Filhinha! Ela não está aqui! Tente entender...

A menina olhou ternamente para o pai, deixando-o comovido. Ele, sem ter muito a fazer, fechou os olhos e sentiu uma sensação estranha. Um leve perfume invadiu seu corpo, e a imagem da esposa logo se fez diante dele. Ao abrir os olhos, ele se viu em um campo completamente florido e perfumado. Ao lado dele, a filha estava em pé, sorrindo, e atrás dela, também em pé, Angélica a amparava pelos ombros e esboçava o mais belo sorriso, exatamente como ela fazia em seus tempos de juventude. Junto a eles, vários insetos esquisitos, parecendo duendes com asas, se espalhavam por todos os lugares e cuidavam do jardim.

Tulipa - image by Google
O pai ficou sem entender e se pôs em pé, chegando bem próximo daquela que parecia ser Angélica. Quando estava para beijá-la, tudo sumiu repentinamente e somente a filha permaneceu diante dele. Ele balançou a cabeça e pensou ser tudo um sonho, mas assustou-se novamente ao ver que várias flores brancas apareciam junto aos seus pés. Em poucos instantes, todo aquele antigo jardim se transformou no mais belo e branco campo de flores. Um sorriso estalou em seus lábios, e por mais que chorasse, sabia agora que Angélica sempre esteve ali, e que jamais abandou a ele ou à filha.

Alguns meses depois, naquela propriedade que secara com a partida de Angélica, foi construído um grande campo de plantação de flores. Com o tempo, Angelina e o pai passaram a retirar seu sustento da colheita e venda das mais variadas espécies que brotam pela grande e fértil propriedade em que residem. No entanto,  é no pequeno jardim, onde Angélica cultivava suas tão adoradas flores brancas, que os dois passam a maior parte do tempo. Lá, uma flor branca e extremamente perfumada domina o ambiente. O nome desta flor? ANGÉLICA.


MarcioJR



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Um pedido de desculpas:

Além de alguns problemas de saúde, que me afastaram por algumas semanas dos blogs amigos, outra questão tem me afligido com relação a alguns blogs. Simplesmente, por problemas técnicos do blogger, não consigo comentar e, não raro, sequer consigo acessar esses blogs.
Já tentei mudar de navegador, e até de computador e tipo de conexão, e nada. Segundo o Blogger, o problema está nas configurações do painel de controle do meu próprio blog, mas as explicações deles param por aí, me deixando com um belo abacaxi nas mãos. E são, pelo menos, nove blogs a que não tenho acesso aos comentários.

Lamento, e me desculpo, por essa situação incômoda.

Marcio.

domingo, 13 de agosto de 2023

TEMPOS MODERNOS – CHOQUE CULTURAL

 

São Paulo/Capital - imagem coletada no Google
―Mas, pai! Eles precisam ficar, necessariamente, aqui em casa?

―E que mal há nisso, Helô? ―o pai retrucou, armando uma expressão de espanto. ―Nosso apartamento é enorme, com quartos sobrando, e eles ficarão apenas uma semana.

―Afinal, por que essa visita assim, tão repentina?

―O primo está procurando propriedades por aqui para investir o dinheiro dele, que não é pouco. É claro que eu quero faturar alguma coisa com isso, pois sou corretor, e um dinheiro a mais é sempre bom. Não custa nada mimá-los um pouco. Sem contar que eles são do interior e raramente viajam para grandes centros. Ficariam perdidos numa metrópole como São Paulo, e poderiam até cair nas tramoias dos pilantras que existem por aqui e que estão apenas esperando por vítimas fáceis.

―Eles cheiram a bosta de vaca, papai! E tem mais. Como fica nossa privacidade?

―Pode parar com essas atitudes e com esse pensamento preconceituoso, filha! Eles são do interior sim, mas não são Neandertais. A educação deles é outra, claro, com valores diferentes dos nossos. O que você julga importante, para eles pode não ter serventia alguma. A cultura deles é outra também, mas isso é bom. Vejo pelo lado positivo. Você poderá levar seus primos para passear num shopping. Tenho certeza de que eles nunca entraram em nenhum. Você poderá apresentá-los para seus amigos...

­―O queeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeê? Never, dad! Never! Como vou apresentar eles para meus amigos? Vai ser um mico só! Imagine eu falando “esses são meus primos Cajuíno, Perestróica e Solstício”. Tem dó, papai! Isso lá é nome de gente?

―Equinócio, filha! O nome do seu primo é Equinócio, e não solstício! ―o pai desanimou, baixando os ombros. ―Sei que são nomes, digamos, diferentes, mas isso não é problema nosso, não é? Cabe a nós tratá-los com respeito e educação, independente de como são seus nomes.

―Mas, pai... Perestróica? De onde seus primos acharam esses nomes? Equinócio? Cajuíno? Se esses são os nomes dos filhos, imagina o nome que eles dão para os animais de estimação!

―Isso vai ser mais difícil do que eu imaginei. Deus meu, dai-me paciência.

Repentinamente, pai e filha notaram a presença de mais alguém na sala, que passou por eles e se jogou no sofá para poder esticar as pernas. Os dois cruzaram o olhar e permaneceram algum tempo calados, até que aquele novo personagem tomou a palavra.

―O que foi, sogrão? Fiz algo errado? E você, meu amorzim? Por que levantou tão cedo hoje? Não quis ficar mais um tempinho nos braços da tua “momôzinha”? Aliás, Helô, quero que você vá comigo lá naquele tatuador da Praça da República. Ele recebeu uns piercings da hora, meu amor. To pensando num de seio pra você e num vaginal pra mim. Putz, vai ser dá hora! Que tú acha, sogrão? Fala aí, véi (velho)!

Pai e filha se olharam novamente e suspiraram. A filha arregalou os olhos e mirou o pai, como se questionasse algo, e sem ter o que fazer, o pai desanimou de vez.

―É! Acho que você tem razão, Helô! Não será uma semana fácil.

Léo, o pai de Helô, reconsiderou o convite que havia feito ao primo, e tratou de tentar remediar aquela situação desconfortável em que se metera. Telefonou para o primo no mesmo dia, mas foi em vão. Inventou uma história qualquer, porém, notou que o primo não estava compreendendo o motivo, e optou por deixar que o destino seguisse seu curso. Além do que, as perspectivas de uma boa comissão com a indicação de imóveis para o parente serviriam para consertar tudo após o vendaval que se moldava para a semana. Então, que viessem o primo e sua família.

E o dia chegou. Chegou até antes do que o previsto.

Léo abriu a porta do apartamento e viu sua filha ao celular, com aspecto de preocupação. Esperou que ela desligasse o aparelho e foi até ela, questionando-a.

―O que foi, minha filha?

―O que foi? Eu digo o que foi! Aconteceu que seus primos, por um erro de data ou sabe-se lá por que, resolveram chegar um dia antes. Ligaram pra cá, e você não estava. Os empregados tentaram te localizar, mas teu celular da Vivo tava tão morto que não deu pra dar sequer um Oi, é Claro! Eu tava na faculdade, sem poder dar atenção. Então, a momô resolveu ir buscá-los! Foi isso que aconteceu!

―O quê? ―o pai esmoreceu, deixando o corpo cair no sofá. ―A Necona foi buscar os primos? Danou-se!

―Paieeeeeeeeeeê! Quer parar de chamar minha namorada de Necona! Neca. Chama ela de Neca. Mas o pior é que o senhor tá certo! Danou-se!

Tanto Léo quanto sua filha ficaram apreensivos. Neca sequer conhecia os parentes da família que estavam chegando, e diante da criação interiorana a que eles foram submetidos por uma vida inteira, era quase óbvio que um choque cultural catastrófico estava para acontecer, principalmente pelo modo muito extrovertido com o qual Neca tratava as pessoas.

As tentativas de contato por telefone entre Helô e Neca foram muitas, mas não surtiram efeito. As horas passavam e, assim, aumentava ainda mais a tensão sentida por pai e filha. Até que, sem aguentar mais a espera, Léo tomou uma decisão.

―Não aguento mais essa demora. Vou atrás deles.

―Mas, pai! E aonde você vai procurá-los?

Helô interrompeu bruscamente o que falava e olhou para a porta. Um barulho de chaves, seguido de algumas gargalhadas do lado de fora do apartamento, fez com que pai e filha se entreolhassem. E não demorou para que Neca e os primos de Léo entrassem, com todos na maior alegria.

Sem entender o que estava acontecendo, Helô questionou ao pai apenas com um olhar, o qual foi retribuído com um questionamento de olhos ainda mais arregalados.

―Primo Oscar... que bom vê-lo! ―Léo levantou a mão para um cumprimento, meio sem saber o que dizer. ―Que bom que vocês chegaram bem... e inteiros!

―Ara, sô! ―Oscar olhou com certo espanto para Léo. ―E prú quê havéra di nóis num chegá intêro? A tar da Canecona aí é boa de boléia. Sem contá que cos desvio que ela feiz, já conhecêmo metade da cidade.

―Canecona? ―agora era a vez de Helô arregalar os olhos, assustada. ―Que Canecona?

―Ué! Essa... esse... essa... ―Oscar começou a responder, mas ficou em dúvida sobre como definir ou se dirigir a Neca. ―Cumé que te chamo, Canecona? De sinhô ou de sinhá?

―Véi, na boa? ―Neca respondeu, se jogando no sofá. ―Lá no interior vocês chamam como? Se eu não me sentir desrespeitada, pode me chamar como você quiser.

―Intão tá bão! ―Oscar retomou a palavra. ―Foi essa moça que oceis mandáro pra modo de buscar nóis no aeroporto que falô ansim. Ela se apresentô como Manuela, mas disse pra chamar de Caneca ou Canecona. Modéstia parte, gosto de coisa grande, intão, chamo de Canecona.

―Ai, Deus! Me dá uma canecona de paciência. ―Helô olhou para o alto, suplicando.

Ao olhar novamente para a namorada, Helô viu que ela se divertia com a situação, e a reprovou imediatamente, mordendo os lábios inferiores. Neca sabia que a namorada, ao fazer tal coisa, tentava demonstrar irritação, mas pouco ligou e continuou rindo com tudo aquilo que ouvia.

Alguns minutos foram necessários para que os cumprimentos e apresentações fossem feitos e, em seguida, cada um foi levado para um quarto. O apartamento era enorme, e depois de todos acomodados, Léo chamou o primo para um canto, ainda mostrando preocupação.

―Está tudo bem, Oscar? A Neca não assustou vocês?

fogão a lenha - imagem coletada no Google
―Óia, primo! Nóis é do interior, mais ao contrário do que oceis aqui da capitar pensa, nóis não é burro não. Diz pra mim! Ocê acha que lá donde nóis veio num tem gay? E tem mais. Nóis tem tevelisão. Nóis tem computador. Nóis tem tabléte. Nóis tem Iphone e aipim. Nóis já viajô pra muita cidade maior du que São Paulo. E essa tar de homossechualidade não é segredo pra nóis não. Intão, sê ocê pensa que nóis ia tratar mal só porque ela é ansim, julgou tudo errado. É mior ocê rever esses conceito teu sobre nóis lá da roça.

―É... bom... quer dizer... nem sei o que pensar!

Léo empalideceu. Jamais pensou escutar tudo aquilo do primo. Naquele instante, percebeu que, mesmo sendo alguém com excelente formação e com mente aberta para muita coisa, ainda empregava certo preconceito com relação a alguns assuntos até triviais. Desculpou-se e tentou retomar a conversa.

―Que bom que vocês se deram bem. Mas, me diga! E o que você achou do que viu nesse passeio que a Neca proporcionou?

―Ah! Mais é muito carro e ônibus pra tudo lado. Num vi um pé de gaviróva nos quintar. Num vi um passarinho que não fosse urubú avoando. É muita gente apressada. Inté tá parecendo quando eu e a Aleluia tivêmo em Nova Iorque, lá nos estêites.

―Vocês foram para Nova Iorque? Tá brincando comigo!

―Ara! Mais e não? Nóis, na verdade, só dêmo uma passadinha por lá, pois a gente tava indo pra Canecaticute. Nóis queria ver um leilão numa feira de maquinário que ia ter lá. E como tinha tempo de sobra, dêmo uma paradinha na tar Nova Iorque.

―Caneca... o quê? ―Léo esboçou um sorriso. ―Não seria Connecticut?

―E não foi o que falei? Canecaticute. Mais lá é frio por dimais da conta. Meus pé gelaram na butina. E falano nisso, primo. Num tem um móia-guela pra me oferecer?

―Móia-guela? Que diabos seria um “móia-guela”, primo?

―Uma purinha. Oceis num tóma nada pra arrefestelá antes das refeição?

―Ahhh! Uma cachacinha? É claro. Venha. Vamos lá para a sala de refeições. O jantar já deve estar quase pronto. Assim, podemos conversar melhor à mesa.

E assim, aquela primeira noite passou, sem maiores alardes. Após o jantar, todos se recolheram, e no dia seguinte, já cedo, Léo tratou de mostrar alguns imóveis para o primo.

Tudo parecia correr bem, com Oscar se mostrando muito interessado pelo potencial empresarial da cidade. Não gostava muito do movimento intenso que via pelas ruas do centro, mas seu tino comercial indicava boas possibilidades de lucro nos imóveis que Léo havia selecionado.

O dia passou rápido, até que no fim da tarde, os dois retornaram para o apartamento de Léo. Lá, uma surpresa. Aleluia, esposa de Oscar, assumira o comando da cozinha, e estava preparando o jantar.

―Ora, pai. E eu ia fazer o que? Ela insistiu, dizendo que queria ser útil. O pior é que a Neca ficou colocando pilha. Até levou a dona Aleluia ao mercado. Agora, deu nisso.

―Tenta ficar tranquila, filha. O primo ficou muito interessado em quatro imóveis. Vou tentar apressar o máximo que eu puder toda essa transação. Por isso eu te rogo. Não vai querer surtar!

―Não? E se eu te contar que a Neca tá arrastando a asa pra cima da Perestróica?

―Não entendi. Me explica isso, Helô!

―É bem isso que você escutou, papai! Eu conheço bem o olhar safado da Neca. Foi com esse mesmo olhar que ela me conquistou. Tenho certeza de que a Neca tá interessada na perestróica da Perestróica.

―O queeeeeeee? Do que você tá falando, filha? Perestróica da Perestróica? Dá pra falar a minha língua?

―Ah! Deixa pra lá. O senhor só tá interessado é no dinheiro do seu primo. No mais, quer é ver o circo pegar fogo, que eu sei!

Helô cerrou os olhos e deu as costas para o pai, saindo em seguida para o corredor. Léo, ainda sem entender, foi atrás dela, mas parou assim que passou pela sala. Lá, em uma conversa muito animada, estavam Oscar, Neca, Cajuíno, Equinócio e, claro, Perestróica.

―Se acomode cum a gente, primo. A Canecona tá fazeno nóis quase se mijar de rir.

―Claro, primo. Claro. Mas, do que vocês estão falando, afinal?

―Óia, primo! Fiquei surpreso! Num é que a Canecona também é chegada num butiá!

―Me dá água na boca só de pensar num butiá bem rechonchudo, sogrão!

―O queeeeeeeeeeee? ―Léo estava sentando quando foi surpreendido pelos comentários de Oscar e Neca. ―Como assim? Butiá de quem? E como você pode gostar do butiá de alguém, Neca, se você não tem... é... não tem pint... ―ele calou por instantes, tentando medir as palavras que estavam a beira de pular de sua boca. ―Ah! Você sabe o que eu estou tentando dizer! E essas intimidades não são assunto pra se discutir assim, diante dos filhos do primo, não é?

―Uai? Vai me dizer que ocê num é chegado em comer um butiá, primo? Eu sempre digo e arrepito. Foi o butiá da minha mulher que deu a riqueza que nóis tem. Se não fosse pelo butiá de Aleluia, nóis tava capinando roça seca inté os primórdio do dia de hoje! Aleluia!

―Aleluia! Aleluia! ―Neca e os filhos de Oscar gritaram em coro, seguindo o agradecimento de Oscar.

―Chamaram ieu? ―Aleluia veio até a porta da sala, mas logo viu que o grito de “aleluia” fora em outro sentindo. ―Oxe. Ocêis inda vão gastá meu nome. Vô vortá lá pras panela, isso sim!

―Primo, mas que falta de educação é essa? Falar desse modo grosseiro de Aleluia?

Léo parecia aturdido. Não sabia como se comportar diante daquilo que Oscar falava, ou melhor, daquilo que ele achava que tinha escutado, pois pensava, nitidamente, que o assunto havia tomado ares chulos ou obscenamente pornográficos.

―Ara, primo. Que é isso? Num to sendo grossero coisa nenhuma. Aleluia tá lá na cozinha. Falo dela sempre com respeito e admiração. Ocê é que parece num gostar muito de butiá. Se é que já comeu arguma veiz um bão dum butiá bem do maduro e vertendo caldinho. Intão, se é ansim, dâmo um jeito rapidinho. Quer comer o butiá da Aleluia?

A face de Léo enrubesceu, e ele, mesmo com a boca aberta, pouco conseguia falar. Balbuciava algo, mas seus pensamentos estavam completamente perdidos.

―Não acredito no que estou ouvindo! ―Léo finalmente comentou, tentando ordenar seu raciocínio. ― Que pouca vergonha é essa? Você sai por aí, oferecendo o butiá de sua mulher assim, sem um pingo de compostura? Que descaramento é esse?

―Não, primo! Não é “compostura” que fala. Nóis faiz em compota. Compotaaaa. E eu ofereço mesmo. Mais ela não dá pra quarquer um não. Prá maioria nóis vende. Sinão, como nóis ia ganhar dinheiro? Minha mulher vende o butiá dela, e junto, vai o leite da Perestróica.

Numa poltrona ao lado, Neca ria desmedidamente. Ela sabia que Oscar estava falando do fruto do butiazeiro, que é uma palmeira muito conhecida, e não daquele “butiá” que Léo estava imaginando.

―Cajuíno, moleque da moléstia! Vá lá com sua mãe e traga o butiá dela pro primo dar uma provada.

―Pode parar! Isso já está passando dos limites! ―Léo tentou argumentar, quase desesperado.

Cacho de Butiá - imagem coletada no Google
Cajuíno saiu da sala, mas voltou rapidamente. Trazia nas mãos alguns frutos pequenos e arredondados, completamente alaranjados. Léo, quando viu aquilo, corou de vergonha.

―Então... esse é o butiá de Aleluia?

―Ara! E quar butiá o primo tava pensando que era? ―Oscar arregalou os olhos e deu uma gargalhada. ―Nóis vive da prantação das parmera de butiá. É lógico que agora nóis tem fazenda de gado, fazenda de prantação de soja, e umas par de otras fazenda, que nem me alembro dereito quantas são. Mais nóis comecêmo ganhá dinheiro com o butiá das terra seca da herança da Aleluia, e mais adespois cás vaquinha de leite que comprêmo pra Perestróica. Pensei que o primo já era sabedor dessas coisas!

Neca continuava rindo sem parar. Léo olhava incrédulo para o primo, e com muita vergonha, colocou um daqueles frutos na boca, mordendo e chupando em seguida. Sua tensão era tanta, que sequer reparou no caroço que o fruto possuía, como se fosse um coco em miniatura, e engoliu tudo, quase se engasgando.

­―Eita, sogrão! ―Neca foi até ele, em socorro, e deu alguns tapas em suas costas, até que ele pareceu engolir aquilo. ―Entrar, o caroço entrou! Agora, quero ver sair!

Pouco depois, com os ânimos e risadas mais calmos, Aleluia chamou para o jantar. E foi nessa hora, com todos à mesa, que o assunto anterior ganhou proporções maiores. Mais precisamente no que dizia respeito ao caroço do butiá que Léo engolira.

―Parece piada, papai! ―Helô comentou, soltando um sorriso. ―Até eu sei que o tal butiá tem caroço. E agora?

―Já falei isso pra ele, momô! ―Neca esticou um olhar irônico para o lado de Léo e, sem dó, soltou um comentário sarcástico. ―Entrar, entrou. Sair é outra história. Pior é que pato não peida. Senão, até saia fácil.

―Como é? ―Léo quase se engasgou novamente com um pedaço de carne que levara à boca.

―Eu adiscordo! ―Oscar arrematou taxativo, olhando para Neca. ―Pato peida sim! Purque num havéra de peidar? Num é, Aleluia?

―Acho que não, meu véio. Num alembro de ter escuitado ninhum pato peidá inté hoje.

―Mais como é que não, Aleluia? E o Qüenca? Vivia peidando pra tudo lado! Era o Equinócio chegar perto, o Qüenca saia correno e se encostava na parede, peidando feito um louco.

―Ara, paiê! Num fica falano minhas intimidade. Mi deu inté vregonha agora! ―Equinócio, que sentara ao lado de Neca, baixou a cabeça, completamente corado.

―Gente, que é isso? ―Léo tentou retomar a palavra. ―Vocês estão malucos? Isso aqui é uma refeição! Merece respeito.

―Oxe, primo! Mais quem é que tá desrespeitano? Só constestei a Canecona. Ela é quem falô que pato não peida. Eu afirmo que o pato lá do Equinócio, o Qüenca, peida sim! Peida e depois se borra todo!

―Mas isso não é conversa que se tenha numa refeição! E além do que, não se fala que alguém “peida”! Se for necessário fazer menção a isso, então diga que alguém “flatula”.

―Óie, ocê tá doidinho, primo! Pato não flutua. No máximo, ele pode avoar, mas não flutuar. Só se for na água, daí sim. Acho que essa tar de tevelisão tá te fazendo mar pros noronho.

―É isso mesmo, sogrão! ―Neca, rindo novamente, continuou provocando. ―Tudo começou com você engolindo alguma coisa maior do que o buraco de saída que você tem. Agora, aguenta, véi!

imagem coletada no Google
―Isso tudo já tá passando dos limites do razoável! Vamos mudar de assunto? Vocês se importam?

―Arre! Intão tá! Vamos comer em silêncio. ―Oscar determinou, meio sem entender as atitudes de Léo. ―Mas intão me diga, primo! Tá boa a bóia da Aleluia?

―Ah! Sim. Quanto a isso, não há duvida! Uma delícia. Gostinho de comida do interior, com um sabor sem igual. Diferente de tudo o que temos por aqui. E por falar nisso, Aleluia, o que é essa carne ensopada que você preparou? Está sensacional!

―Óie, primo. Num achei os grediente que to acostumada, mais a Canecona me deu uma ajuda lá no açougue.

Léo abriu um sorriso mas, ao olhar para Neca, cerrou os lábios. No prato da moça não havia nada além de algumas folhas de alface e um pouco de arroz. E isso fez com que uma ponta de desconfiança brotasse instantaneamente, tanto em Léo quanto em Helô.

―É...! Do que, necessariamente, é feito esse seu ensopado, dona Aleluia? ―Helô perguntou, temendo pela resposta.

―Nada de muito especiar. Nóis dêmo foi é muita sorte de encontrar uns bago de boi da miór qualidade.  Nunca vi lá no sítio argum touro com bola tão grande ansim. E pra completar e dar sabor, um bucho de porco e bastante banha que eu merma derreti dos toicinho que troxêmo lá do sítio.

―Ai!

Esse “ai”, dito em conjunto por pai e filha, foi a única coisa ouvida por todos antes que ambos saíssem correndo para o banheiro. Oscar e Aleluia, sem entender, olharam para Neca e viram a moça balançar a cabeça e sorrir fartamente.

―Hehe! Bom, agora eu imagino que ele vai descobrir se pato peida ou não. ―Neca comentou e, em seguida, elevou o tom de voz, para ser ouvida por todos que estavam naquele apartamento. ― Força no butiááááááá, sogrão!


Marcio Rutes



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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

DORINHA E O GATO DE BOTAS

 série RECONTANDO UM CONTO

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image by Google
Dorinha e seu cachorro, Jujubão, cresceram felizes dentro de uma família amorosa e muito gentil. Quando ela completou três anos de idade, a família mudou para uma cidade menor, com muito verde e espaço para as mais variadas brincadeiras, e por lá, os anos passaram, com os dias repletos de sorrisos e traquinagens.

No entanto, a hora do dia que Dorinha mais gostava era justamente a de dormir. Seu pai já subia para o quarto com um grosso livro de fábulas, e se colocava a ler até que a menina adormecesse. Todavia, se o pai ficasse observando alguns instantes, veria que ela estava apenas fingindo, somente esperando o pai sair do quarto para, em um passe de mágica e com aquele pó de estrelas que ela carregava em si, transportar a ela e seu cão para o mundo dos sonhos, o Mundo Mágico que somente ela tinha acesso.

Essas fábulas que o pai lia a cada noite, todas clássicas, encantavam nossa pequena protagonista, e ela conhecia a quase todas. Algumas, porém, deixavam-na com a pulga atrás da orelha, e ela, dentro de uma perspicácia fora do comum, indagava e argumentava com o pai. Eram coisas que ela não conseguia concordar, e dava um trabalho enorme ao pai, pois mesmo que ele tentasse explicar que os tempos são outros, ela teimava em não aceitar.

E assim, em uma determinada noite, começou uma discussão entre os dois, mais ou menos assim:


DORINHA E O GATO DE BOTAS


―Mas, papai! Por que ele comeu o rato? Eu gosto do Ogro, e o gato transformou ele num ratinho e comeu ele sem dó!

―Filhinha, o Gato de Botas precisava enganar o Ogro, e fez ele se transformar em rato para ajeitar tudo. Senão, o Gato de Botas não poderia ficar com o castelo do Ogro e fazer o rei pensar que o rapaz era o Marquês de Carabás.

―Mas... mas... mas... ele enganou o Ogro, papi. Por que ele fez isso? E por que ele mentiu para o rei também?

―É somente um conto de fadas, minha querida. Agora dorme, tá bom? Amanhã o papai conta outra história pra você.

Dorinha não parecia nada satisfeita com aquela história que seu pai acabara de contar. Tanto que, após ganhar seu tão esperado beijo de boa noite e ver o pai ir para outro canto da casa, ela saiu na ponta dos pés e abriu silenciosamente a porta do quarto. E como de costume, Jujubão estava lá, abanando o rabo e esperando para mergulhar no mundo dos sonhos de sua pequena dona.

―Vem, Jú! Temos que acertar contas com um gato danado!

O cachorro entrou e logo se ajeitou no tapete. Com o focinho colado ao chão, ele viu a menina pular para a cama e se cobrir toda, apressadamente. Ela ficou somente com o rosto para fora das cobertas, olhando o cachorro, mas logo adormeceu. Aquele era, literalmente, um instante mágico, pois logo em seguida algo também tomava seu mascote, e do nada, ele adormecia profundamente. E se ambos pudessem ver o que acontecia naquele instante, ficariam maravilhados. Era como se uma luz intensa se desprendesse de seus corpos, flutuando para a janela e se perdendo para o horizonte. Assim, Dorinha e Jujubão partiam a cada noite para o mundo mágico dos sonhos da menina.

Estranhamente, Dorinha não estava calma ao chegar ao mundo mágico. Ela, que sempre ia até lá para brincar e aprontar suas artes, desta vez parecia aflita. Tanto que sequer procurou pela girafa, que ao vê-la, já veio oferecendo seu pescoço para servir-lhe de escorregador.

―Depois brincamos, menina. Agora, preciso encontrar um certo gato sapeca. Vai, Jú. Fareja ele!

Com menos de cinco minutos, Jujubão havia farejado algo. Um belo e suculento pé de ração para cães, com frutos no formato de pequenos ossos.

―Não, Jú. Eu quero um gato. Eu sei que ele tá aqui. Procura, vai!

―Olá! Eu posso ajudar?

Dorinha estranhou aquela voz. Mesmo sendo um mundo mágico de sonhos, ela era a única por ali com a capacidade de falar. Então, quem havia dito aquilo? Ela procurou por todos os cantos. Olhou para cá, para lá, até que sentiu algo puxando a ponta de seu vestido. E quando voltou seu olhar para baixo, reparou um pequeno gato malhado, e calçando um par de botas nos pés.

―Ah! Então é você, gato danado. Quero saber por que você enganou o Ogro e o rei!

―Puxa vida! ­―o gato suspirou, baixando a cabeça. ­―Acho que nunca mais vou me livrar desse peso.

A menina estranhou, mas esperta que era, pensou logo que o gato estava aprontando das suas, tentando enganá-la.

―Nem vem com essa, gato. Eu me lembro da história que meu pai contou. E você só aprontou por lá. Caçou, mentiu, traiu o Ogro...!

―Essa é uma história tão antiga, de um tempo em que nós, gatos mágicos, éramos muitos. Meu tátara-tátara-tátara-tetra-avô é quem aceitou participar. ―o gato continuou suspirando, agora olhando nos olhos da menina. ―Venha comigo. Vou te mostrar uma coisa.

Dorinha, mesmo desconfiada, chamou seu cachorro e, juntos, seguiram o gato. Os três andavam e, repentinamente, desapareceram, reaparecendo em outro canto qualquer do mundo mágico. Lá, um número enorme de gatos, de todas as espécies e idades, brincavam e corriam por todos os cantos.

―Veja! ―o gato apontou para aquela imensidão de outros gatos. ­―Aqui é a Gatolândia. É aqui que nasce cada gato que aparece nos contos de fadas ou outras histórias que são contadas para as crianças. Também é aqui que são criados os gatos que apareceram nas histórias de bruxas ou de outros seres malvados.

―Que lindo! ―Dorinha não acreditava no que estava vendo, e arregalava os olhinhos a cada gato que passava por ela. ―São todos tão fofinhos e bonitos!

―Sim. Eles precisam ser assim, afinal, vão embalar tantos sonhos de criancinhas exatamente iguais a você.

―Mas, seu gato! E aqueles outros que estão mais pra lá! Eles não parecem tão fofinhos. Estão todos estropiados, machucados! O que aconteceu com eles?

­―Alguns são gatos de histórias de terror, outros são gatos que participam das músicas iguais a “atirei o pau no gato”, e alguns são filhotes que os humanos nem deram chance de nascer!

―Existe isso, seu gato? Tem toda essa maldade?

―Tem sim. Muitas pessoas acreditam que os gatos são animais de bruxas, ou que trazem azar e coisas assim. Gatos não são nem bons nem maus. Eles são animais que precisam viver de seus instintos. Se caçam ratos ou outros pequenos animais, é porque isso faz parte da natureza deles. E não trazem azar, assim como as patas de coelho não trazem sorte. Se trouxesse sorte, o coelho não perdia a patinha.

―Então, seu gato, por que na história, aquele seu vovô enganou o Ogro?

―Porque naquela época era tudo diferente. As pessoas acreditavam em outras coisas, e os gatos eram ainda mais perseguidos. Acho que quem escreveu aquela história, devia gostar muito de gatos, por isso tentou fazer dele um herói. Aproveitou que todos tinham medo dos Ogros, e fez o meu vovô enganar o coitado.

­―Mas eu to com peninha do Ogro, seu gato!

―Fica não! Olha ele ali!

Ogro - image by Google
Dorinha olhou para onde o gato apontou, e viu um ser enorme, rodeado por pequenos gatos. Era o Ogro, sorridente e fazendo festa com os gatos.

―O que ele está fazendo aqui, seu gato?

―Ele se aposentou, e como adora gatos, veio ajudar a gente a cuidar dos filhotinhos. Ele fabrica pequenas botas para eles.

A noite terminou e, como sempre acontecia, Jujubão foi o primeiro a acordar. Ao lado dele, alguns biscoitos feitos de ração para cães e em formato de pequenos ossos estavam espalhados. Ele comeu um por um e, rapidamente, saiu do quarto, pressentindo que logo alguém chegaria para acordar a menina.

Perto da hora do almoço, o pai estranhou o sumiço de Dorinha. Procurou por toda a casa e, sem encontrá-la, começou a procurá-la por todos os cantos, completamente aflito. Mas logo sossegou. Alguém disse que vira a menina na loja de artigos para crianças, lá no vilarejo.

―Sim, ela passou por aqui. Eu estranhei, pois ela levou todos os sapatinhos para bebê que eu tinha na loja. Ela falou que depois o senhor pagaria, e que ela estava com muita pressa.

­―Meu Deus! O que essa menina anda aprontando?

O pai de Dorinha mal terminara de pronunciar aquelas palavras quando um gato, todo desajeitado, passou pela porta da loja. Algo comum, claro, se o gato não estivesse usando sapatinhos infantis nas quatro patas. Os dois correram para a porta da loja, e o pai da menina logo descobriu o que estava acontecendo.

Em um canto da calçada, Dorinha estava com um gato no colo, toda afoita, tentando calçá-lo com alguns sapatinhos infantis.

―Dorinha, o que você está fazendo, minha filha?

―Ora, papai. Ajudando o tadinho do Ogro. Até parece que você não sonha!


Marcio Rutes



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Este conto é baseado na fábula O GATO DE BOTAS, de Charles Perrault. A fábula original foi lançada na coleção CONTOS DA MAMÃE GANSO, em 1697. Esta coleção reunia diversas fábulas de Perrault, e fez com que ele fosse considerado o pai da literatura infantil.

Saiba mais sobre:

O Gato de Botas                Charles Perrault