quinta-feira, 20 de agosto de 2015

MACIEIRA ANCIÃ

 da série Empírica Mente


imagem do Google
Há um caos no tempo, como se fosse um rasgo no futuro, ou o passatempo amalucado de um deus brincalhão e tão ou mais demente do que crente em suas criaturas. Mal sabe ele que suas brincadeiras, que a ele parecem tão inocentes, são meramente incipientes. Não. Talvez incipiente não seja a palavra adequada para esse ato vil de largar a esmo uma criatura tão frágil quanto o tal humano por aí, nesse inferno pré-lúdico que estampa cada face que brota da escuridão. Esse deus apenas pensa que brinca, mas ele próprio já é fruto da anarquia bizarra de outro deus maior. Penso que nisso tudo, um deus faça parte apenas da constelação de vários céus, divididos uns dos outros por meros véus alaranjados e transparentes.

Tem um deus para cada gosto, ou até mesmo um para mero tira-gosto. Crenças absurdas nascem do nada e morrem assim, a desdém daqueles que saem por aí, reconfigurando a crendice com palavras puramente espúrias, pífias e rangidas em dentes que mal servem para mastigar algo putrefato. Existem deuses belos, que regam seus séquitos com chuva de água de flores, enquanto exigem sacrifícios de virgens para que a beleza vingue em determinado lugar. Que chuva é essa? Flores que vertem seiva sanguinea? Enquanto isso, numa outra esquina celestial qualquer, outro deus apela pela dissociação da ignorância, distribuindo sabedoria embarcada em sub-deuses em forma de vento. O problema é que o vento nem sempre é manso, e ao invés de construir, torna tudo pura ruína. E a sabedoria se perde pela mão pesada daquele que impera tal qual um rinoceronte ignorante num trono de folhas secas.

Tem deus da colheita, da floresta, da chuva, do manifesto inconformista, da marmita azeda, das virgens orelhudas, e o que eu mais gosto, do cogumelo da esquina. Ah! Esses últimos não existem? Por que não? Se existem tantos deuses por aí, alguns inventados enquanto se apruma o cotovelo no balcão de um bordel qualquer, por que não posso inventar os meus?

E no fim das contas, é bem assim. Vai se moldando um deus a seu bel prazer, que atenda suas reverências enquanto mal se consegue fazer uma única referência verdadeira à existência de um céu que não seja esse infinito escuro que temos diante da crista do olhar humano.

E assim, caro companheiro, fomos criados e largados a mercê de um cosmos devorador de consciências. Dizem que tem um deus por aí, que cria, que conspira entre estrelas e planetas, mas que depois larga seus bibelôs a própria sorte. Esse é o deus do momento, poderoso o suficiente para ser um ente gigantesco mas, em sua infinita magnitude, se esconder dentro do olhar de um ser minúsculo e sem cílios. Então, repito aqui uma frase que me deixou muito animado, extraída de uma série de tv um tanto antiga, do fim do século passado: “A verdade está lá fora, juntamente com um punhado de mentiras.”¹.

A verdade é essa (ao menos assim eu penso): existe um deus, e ele é gigantesco. A mentira, no entanto, vem ancorada, dizendo que ele se esconde. Não, ele não se esconde. Ele está aí, e é realmente gigantesco. Não podemos vê-lo porque, pasme, estamos dentro dele. Nosso mundo, nosso universo sem fim, é puramente a consciência desse deus, e não se iluda, achando que não existem outros deuses. Existem sim. Uma constelação deles. Todos morando lá fora, numa coletividade divina inexplicável e insuportavelmente inimaginável. E cada um desses seres fantásticos tem seus “mundos” internos, seus universos imaginativos, suas consciências vivas ou, ao menos, em formação.

Não diria que fazemos parte de “matrix”. Vou além, e afirmo que nós somos matrix, pois penso que podemos ser o fruto da imaginação de um ser apaixonado pelo ato da criação. Ele não nos abandonou a esmo. Jamais faria isso com algo que ele idealiza faz tanto tempo. Ele apenas está em seu sono reparador, mas logo acordará.

Enquanto isso, alguém escreveu que “...homens e suas sombras me contam que lágrimas são migalhas de pão de quem não voltou pra casa, e qualquer asa é uma afronta aos que se mantém presos nesse concreto em ebulição. Não são mendigos de sonhos, mas de realidade.”².

Saiba, meu amigo, que a maior carência humana é justamente essa, a da realidade. É muito triste querer ter crença e não poder tocar naquilo que seria o combustível de sua fé. Palavras não passam de um amontoado de letras, e tanto escrevem verdades quanto mentiras, podem fantasiar, maquiar aquilo que é real, esconder o que é gigantesco ou tornar soturno o raiar de um dia ensolarado. Palavras cortam mais do que chicote. Talvez, justamente por tudo isso, é que esse deus que me move não fale. Ele prefere imaginar, racionalizando suas ações diretamente para o fruto bendito de suas querências. Não há livre arbítrio. O que existe é a liberdade de sonhar. Mas ninguém consegue controlar o que se sonha, não é?

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A realidade mais palpável vem daí, de um sonhador alucinado que adormeceu sob uma macieira anciã, aquela mesma que não frutificava mais. Eva não comeu a maçã, e o coitado do Adão é meramente a ilustração machista das mãos daqueles que mal e porcamente sabiam o que era o mundo, mas que conheciam muito bem o poder escravizador que a palavra possui. Não foi um deus quem criou paraísos perdidos para bajular o ser humano. Pelo contrário. Foi um deus quem deu a chave para que essa clausura fosse aberta. E quando as portas desse paraíso foram derrubadas, a magia se fez clara e definitiva. Ele, esse deus, tentou dar ao ser humano um pouco de, veja só, REALIDADE. E o que nós fizemos?

Eu digo o que fizemos. Pegamos essa realidade e a transformamos em algo mentiroso, pois não sabemos viver de nada concreto. Inventamos, pois, o sofisma.

Séculos se passaram, e o que mais fazemos é justamente isso. Inventamos verdades para esconder as mentiras. E tudo está lá fora, nesse grande omelete sem ovos que é o universo dos pensamentos de um deus que jamais abandonou seus sonhos.


Marcio Rutes



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referências:

¹ - da série Arquivo X

² - da crônica DE AZUL ENTARDECIDO, de Samara Bassi