segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

PÓ DE ESTRELAS

 

Mundo mágico - by Google
Poucos entendiam, ou quem sabe ninguém compreendesse direito, as lágrimas daquela moça. Por vezes ela chorava sem motivos, assim do nada. Em alguns momentos, os mais alegres, os olhos dela simplesmente vertiam pequenas gotas, mas não eram lágrimas normais, e sim brilhantes, como se partículas de ouro fizessem parte da composição daquele asseio dos olhos. Sequer ela, que passou a ser conhecida como “menina dos olhos dourados”, tinha ideia de como aquilo acontecia.

Tudo começou em uma noite de inverno, muito fria e chuvosa. Ela ainda era uma menina de seus 15 anos de idade, muito bonita e traquina, mas que passava por alguns tempos de tristeza. Mesmo rodeada de pessoas, sentia-se estranhamente sozinha, e era no recolhimento da noite que ela se entregava aos seus reais sentimentos. Deixava a cortina da janela aberta e assim adormecia, olhando a madrugada e as estrelas, sonhando um dia poder navegar pelo infinito daquele céu majestoso.

Durante o sono, certa vez, ela libertou todos os seus desejos e, sem querer, conseguiu a chave para penetrar um mundo mágico, muito além daquele que está na compreensão humana. Sua pureza de espírito a levou até lá. Neste novo mundo tudo era como se imaginava ou se queria. As flores eram mais coloridas e as frutas se misturavam em árvores totalmente distintas. Limoeiro dava pitanga e a jabuticabeira era carregada de amoras do tamanho de laranjas. Tomates apinhavam em cachos nos coqueiros, enquanto a jabuticaba nascia nos pés de ervilha. Como se não bastasse tudo isso, o perfume desse mundo faria qualquer um viajar. O cheiro desse mundo? Lavanda.

Lá, no mundo dos sonhos, os animais conviviam em paz, e fazia-se escorregador no pescoço da girafa. A gangorra era nas asas dos passarinhos, e existia um tobogã que vinha lá das nuvens, molhado com chuva de groselha para escorregar melhor. A casa, única que existia por lá, não tinha portas ou janelas, e na varanda, imperava soberana uma rede enorme e confortável, que balançava sozinha. Era lá, nessa rede, que a menina aparecia quando adormecia, e também era na rede a saída para o mundo fora dos sonhos. Quando o sono, dentro do sonho, apertava, era para a rede que ela se entregava, e assim acordava, até meio triste, no seu mundo de solidão. A cada dia ela queria sonhar mais, e sequer imaginava o que a esperava lá pelas bandas de seu refúgio encantado.

Em certa ocasião, lá no mundo mágico, ela brincava de pega-pega com os girassóis e, cansada, foi para a rede, e por lá adormeceu. Estranhamente, ela não foi transportada para seu mundo verdadeiro, e por lá ficou. A lua, com a proximidade do amanhecer, foi dando lugar ao sol, e este, guardião das chaves desse mundo, quase morreu de susto ao ver a menina ainda ali, dormindo na rede. Algo estava errado. E foi quando o sol, ao olhar para trás, reparou um risco dourado cortando o céu. O que seria aquilo? Uma estrela cadente?

Pouco depois, uma estrela descia no mundo mágico, parando bem perto da menina. A estrela, antes gigantesca, estava quase anã, pois o deslocamento que a trazia do outro lado do universo a fez se desgastar de tal forma, que reduziu seu tamanho. E o que ficou pelos céus foi o mais belo rastro de pó de estrelas.

by Google

O sol aproximou-se lentamente da estrela, e reparou que ela chorava copiosamente. Mas, por que ela chorava assim? O que ela estava fazendo ali? E a menina? Não iria embora? Foi então que o sol, em sua sensibilidade, entendeu. A estrela estava apaixonada pela menina, e correu para poder vê-la. Desejou tanto isso que se desgastou em tamanho e, também, diante de sua imensa vontade, manteve a menina ali.

A estrelinha soluçava e estufava o peito, e o sol, soberano naquele lugar, resolveu conceder-lhe um desejo. A estrela, aquietando-se, olhou para os olhos do sol e brilhou intensamente, desaparecendo no mesmo instante. Em seguida, foi a vez da menina se transportar aos poucos, ficando transparente e reaparecendo em sua cama, lá no mundo real.

Daquele dia em diante, a menina não sentiu mais aquela solidão que tanto a amargurava. Sentia agora que algo, ou alguém, protegia-a constantemente, deixando-a aquecida e cheia de energia. Seus olhos adquiriram um brilho mais intenso, e suas mãos, sempre que tocavam alguém, passavam a sensação de que eram mágicas.

A menina não retornou mais ao mundo mágico. Não precisou mais ir até lá. Ela, agora, tinha uma estrela dentro dela. Uma estrela que, apaixonada, fez um pedido ao sol: morar dentro dos olhos da menina.

As lágrimas? Elas nascem da estrela que, traquina e brincalhona, não se cansa de correr e brincar pelos olhos da menina, largando pelo universo daquele olhar o seu rastro de pó dourado.



Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

CAIPIRINHA NO BUM-BUM?


Hoje, revisitando algumas publicações antigas, dei de cara com uma matéria na revista Vogue, de julho de 2014, que me chamou a atenção já na época, e que valeu uma crônica minha publicada em um jornal local daqui de Curitiba. Pode ser um pouco antiga, mas despertou meu instinto de cronista.

Então, para dar uma pequena pausa nos contos, resolvi desenferrujar um pouco o cérebro e re-escrever a crônica que fiz àquele tempo. Para quem quiser conferir a matéria da revista, é só clicar no link disposto ao final do texto. Em breve, volto com os contos.

. . . . . . . . . . . . .


image by Google
Olha só! O British Military Fitness, através de seu diretor de operações e treinamento, Garry Kerr, criou o Brazilian Bum Blast, um sistema de treinamento que promete para as mulheres europeias "equilibrar um copo de caipirinha no bum-bum". Dessa maneira, eles pensam em dar um ar abrasileirado para a retaguarda das europeias.  Caipirinha no bum-bum?


Antes de mais nada, vamos parar com a falsa moralidade. Não é bum-bum. É bunda mesmo, e muita gente fala dessa forma. Mas, na hora de publicar algo, já viu, né! Agora, deixa eu entender isso tudo. Neste caso, eles não querem deixar a bunda da mulher européia com "a cara" da bunda da mulher brasileira, mas sim transformá-la em uma bandeja. E é claro que o treinamento não é pouco, e muito menos barato. Dizem, inclusive, que é um treinamento ao estilo militar. Misericórdia!

O que os ingleses esquecem é que a beleza não está somente na dita bunda, mas sim no conjunto, que inclui também, além do corpo como um todo, um comportamento mais latino e não tão durão e sem ginga, como o saxão. A sinuosidade do corpo não é adquirida com o enrijecer dos músculos da bunda, e o gingado, ah! esse vai precisar de muito esforço, e nem um pouquinho militar, para ser atingido.

Sem contar que a beleza não está somente naquilo que é mostrado, mas também nos olhos de quem vê.

Pelo visto, o Brasil continua sendo "apreciado" aí por fora por atributos não tanto culturais ou sociais. Mas já que é assim, e se querem que as europeias consigam equilibrar um copo de caipirinha na bunda, então é hora de começarem a comprar limão, açúcar e cachaça brasileiros, pois não tem nada disso lá pelos lados do velho mundo. E caipirinha com açúcar de beterraba e gim deve ficar, digamos, com um gosto abundante e sem graça.

Assim, além de ter a bunda da mulher brasileira copiada, quem sabe o Brasil consiga exportar mais algumas coisas e melhorar a balança comercial.

Acho até que está na hora de registrar a patente da bunda brasileira, da mesma forma como já fizemos com a cachaça, ou como os italianos fizeram com a pizza.


Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.


leia mais em:

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

CÃO PANTANEIRO


image by Google
A tarde acabava de forma preguiçosa, com o sol se pondo lento a oeste. Adiante, uma imensidão de água, onde os raios solares refletiam naquele espelho fantástico e faziam com que tudo se tornasse mágico. Era um presente de Deus para aqueles que se arriscavam a desbravar aqueles confins do Pantanal Matogrossense.

Na casa, tudo estava quieto, mas eles, os seres humanos, logo chegariam para descansar. No local, somente a patroa corria de um lado para outro, afoita pela lida diária e o preparo do jantar. Mas era silenciosa e não incomodava. O cão ficava ali, apenas observando. Quando era mais novo, ia para o alagado e ajudava no manuseio da boiada, mas agora estava velho, e aproveitava as regalias que esta condição lhe dava. Assim ficava, deitado à porta e observando as águas mansas daquele imenso rio em que tanto nadou e brincou.

Alguns latidos se fizeram ouvir, e o cão sabia que a matilha estava se aproximando, trazendo com eles o patrão e os empregados. Entre eles, vinham os filhos do patrão, hoje peões trabalhadores e de muita estima, mas que ele viu crescer e cuidou com uma fidelidade que apenas os cachorros têm em relação ao ser humano. Mesmo de longe, ele já escutava, também, o trotar dos cavalos e a algazarra da “peonada”. Vinham felizes e bradando, quase cantando. Era como se mais um dia fosse vencido naquela dureza que se vivia naqueles confins.

Logo, chegavam e se dispersavam. Quem era da casa, ia se ajeitar para o jantar, e os demais, que eram empregados, partiam para os alojamentos. Lá, tinham o necessário para viver, e assim como o cão, aguardavam a vez para se alimentar. A demora era pouca, e alimento não faltava. Nesse meio tempo, o cão se afastava da casa e ia até as cocheiras. Por mais de uma década fez isso. Ia até lá e cuidava para que nenhum cavalo ou mula se afastasse, principalmente as bardosas, que insistiam em não aceitar muito bem o trato dos peões. Depois, lentamente, voltava para a porta da cozinha e esperava seu trato. Mancava um pouco de uma das patas traseiras, e isso irritava o patrão, que o achava inútil. Por vezes, o patrão pensou em sacrificá-lo, mas era contido por um sentimento de dívida. Aquele cão salvara seu filho mais velho quando um touro brabo disparou e tentou chifrá-lo. O cão, em sua fidelidade, atacou ferozmente e conteve o touro, mas sofreu as consequências e por muito pouco não perdeu a pata traseira ou até mesmo a vida. Nunca mais foi o mesmo.

Depois do jantar, a família da casa grande se reunia na sala e ligava o velho rádio. Era um rádio antigo, em forma de capela, onde o patrão buscava notícias sobre o que acontecia em regiões mais distantes. Mas havia algo que encantava o cão. Era uma coisa que chamavam de música, e tocava vez ou outra. O cão, quando escutava aquilo, colava o focinho ao chão e fechava os olhos, deixando-se hipnotizar. Sem saber, ele sentia saudades. Saudades de tempos passados, onde ele era forte, lépido e tinha serventia. Desde muito novo acostumou-se a ficar ali, ouvindo aquele rádio depois do jantar. Adorava aquilo e quase dormia quando isso acontecia.

Algum tempo depois, uma ferida grande apareceu na coxa esquerda do cão, exatamente onde o touro o acertara. Por mais que os filhos do patrão tentassem tratar, não tinha jeito. A ferida apurava e tomava o corpo do cachorro. Veterinário não existia por perto, e os remédios caseiros já não serviam mais. Então, o patrão decretou. Seria sacrificado.

A patroa chorou, e os peões, que testemunharam a bravura do animal contra o touro, se recusaram a fazer o determinado. Respeitavam o cão como se fosse um deles, e jamais matariam aquele animal. Os filhos do patrão imploraram ao pai que deixasse o animal tentar se curar sozinho, ou que o tempo se encarregasse daquele fatídico ato, mas ele estava irresoluto. Não arredava pé da decisão que tomara.

Frente a isso, como ninguém se propunha a sacrificar o animal, o patrão mesmo encarregou-se de tal coisa. Colocou o cachorro no carroção e foi para a mata, afastando-se de todos, pois ninguém queria presenciar a cena. Seria mais fácil dessa maneira.

Repousou o animal sob a sombra de uma árvore e engatilhou a espingarda, mirando o meio da cabeça, mas seus dedos tremeram na hora de puxar o gatilho. O cão olhava diretamente para seus olhos, e aquilo o fez parar. Não conseguiria fazer aquilo, e sentia culpa por não ter tratado dignamente daquele que colocou a própria vida em risco para salvar alguém, ou no caso, o próprio filho do patrão.

Porém, era preciso. O animal estava sofrendo, ele sabia disso. A dor da ferida devia ser insuportável, e não havia meio de fazê-la regredir. Apontou novamente a espingarda para a cabeça do cachorro e preparou-se para atirar. O cão, calmamente, levantou-se  de onde estava e veio se deitar mais próximo. Olhou para o patrão com serenidade e colou o focinho ao chão, como se o velho rádio estivesse ali, tocando aquelas músicas que tanto lhe traziam saudades. Fechou os olhos e, estranhamente, soltou um grunhido. Parecia aceitar o que aquele homem estava por fazer. Era como se soubesse que seu caminho acabava ali e que a morte era sua única opção. Naquele instante, o patrão pensou ter perdido a sanidade, pois jurou que uma lágrima escorrera dos olhos do animal. E o patrão chorou também.

Na fazenda, todos pararam o que faziam e esperaram. Pouco tempo depois, um tiro de espingarda ecoou pela mata, e foi acompanhado de um uivo esganiçado do cão. A passarada saiu em revoada, e aquele instante colocou lágrimas nos olhos de homens que jamais imaginaram que pudessem chorar. Estava feito.

Uma hora depois, o carroção apontou na porteira. Era o patrão voltando. Ele acenava para a patroa e para os filhos, e ao chegar mais próximo da casa, ordenou que trouxessem cobertores e água quente. Na carroça, no meio de um volume de capim verde, o cão estava estirado. Não estava morto, pelo contrário, estava bem vivo, mas com a pata traseira e a coxa completamente queimadas.

O patrão, sem conseguir sacrificar o animal, tentou um último recurso. Jogou pólvora sobre a ferida e, como não tinha como acender, atirou em uma pedra para provocar faísca. Pensava, dessa maneira, esterilizar ou limpar de vez a ferida, porém acabou deixando tudo em carne viva. O cão uivava de dor, mas não estava indócil. Os peões pegaram o cão e carregaram-no para o estábulo, fazendo o que estava ao alcance deles. Afrente, o filho mais velho do patrão comandava tudo, e mais atrás, vinha o patrão, deixando a mostra a camisa encoberta pelo sangue do cachorro.

rádio capela - by Google
Hoje, quem chega na fazenda é recebido pelos cães em uma algazarra tremenda. O velho cão não está mais lá, deitado na porta da cozinha, mas ainda está presente na memória de todos e em um retrato num canto da sala. Nesse retrato, ele aparece deitado aos pés do patrão, que depois de tudo, tratou dele por mais cinco anos. O cão perdeu a pata traseira e parte da coxa, mas valente como era, resistiu e ganhou ainda mais o respeito daquele homem rústico e que não gostava de demonstrar sentimentos.

Perto da porteira, uma árvore enorme faz sombra para um cercado pequeno de madeira. Lá, descansa o cão em seu último refúgio. Ao lado, um presente do patrão. O velho rádio capela, que tocava as músicas que o cão tanto gostava.



Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

A GANG DAS VELHINHAS

 aviso (nota) do autor: o texto é longo... 

então, se você não é daqueles

 que "mergulha" naquilo que lê,

 nem passe daqui!


image by Google
A situação não anda boa para ninguém mesmo. E quem sabe para aquelas quatro senhoras e aquele senhor, presos em um distrito policial qualquer de uma cidade grande, a coisa fosse ficar ainda pior.

Acusações? Invasão, assalto a mão armada, sequestro, extorsão, tentativa de suborno e... assédio sexual seguido de atentado violento ao pudor. Mas, afinal, o que motivou quatro senhoras e um senhor, todos acima dos 65 anos de idade e vindos todos de famílias tradicionais, a cometer tantos crimes? Teriam sido eles as vítimas de alguma mente inescrupulosa dos tempos modernos, desses que aparecem nos programas policiais, e que os usou para depois se evadir e largar a culpa sobre eles? Ou fizeram tudo isso para se afirmar diante de uma sociedade que segrega cada vez mais o idoso? Abandono familiar? Tédio?

Não. O motivo foi bem outro. Fizeram tudo isso por serem responsáveis e por honrarem os compromissos assumidos. Ou seja, praticaram um ou mais crimes por serem, justamente, honestos. Curioso? Então, sente-se e se prepare, pois a história é longa.

Tudo começou em uma reunião do pequeno clube de baralho que Dona Maria mantinha em casa para, assim, reunir as amigas, distrair-se e manter as fofocas em dia. Dona Maria era a mais velha entre elas, 68 anos de idade, e viúva 5 vezes. Morava sozinha, e mesmo usando óculos, era a mais "ligeira" de todas. Na maioria das vezes acabava “limpando” as poucas economias das amigas. Leocádia, 66 anos, era a deslumbrada do grupo. Uma romântica que suspirava sempre que escutava “SHE” de Charles Aznavour. As amigas, sabedoras de que ela se derretia toda e perdia a concentração quando escutava essa música, colocaram em seus celulares uma cópia, e sempre que ela estava ganhando no jogo, davam um jeito e disparavam o player. Era batata. E além disso, era a cozinheira metida a nutricionista do grupo, mas suas orientações partiam ao rumo contrário daquilo que era correto, pois era nesses encontros que ela aproveitava para quebrar dietas e regimes.

Tinha a Dona Loló. 65 anos de idade, doceira de mão cheia, de pele jambo e surda feito uma porta. Não era incomum alguém falar “mandioca” e ela entender “como você está gostosa”. Sim. Ela era um tantinho obscena. Tarada mesmo. Segundo ela, ainda não tinha encontrado o homem certo para fazê-la “queimar a granola”. E por fim, Dona Ziza, professora de anatomia, psicóloga, solteirona e, segundo ela, virgem. Idade? Ela diz que não revela nem sob tortura. Também adora estudar ocultismo e é portadora de incontinência urinária.

image by Google
Ah! Sim. Quase esqueço de seu Macedo. Senhor alto, beirando seus 70 anos de idade, esquecido que dói, e que adora frequentar o clube de baralho “das meninas”. Obviamente, existe um interesse escuso delas sobre a presença dele. No caso, ele é quem financia os comes e bebes, e leva algumas substâncias proibidas para os encontros. Drogas? Que nada. Doces, filmes, ou qualquer outra coisa que as respectivas famílias cuidem para não serem consumidas por elas.

Apresentações feitas, vamos aos fatos que motivaram toda essa história.

O Natal se aproximava. Já era mês de julho e... sim, para elas, o tempo era uma agonia e passava voando. Mas, como eu dizia, elas queriam ter um Natal diferente, com mais dinheiro no bolso, e decidiram inventar algo que rendesse alguns trocados. Foi então que, numa das reuniões do clube, saiu uma conversa mais ou menos assim:

―Loló, você não ia trazer aquela sua prima pra gente depenar no baralho, filha?

­―Quem dera, Ziza. Aquela lá tá no pó da viola. Acho que não passa sequer a próxima gripe do frango. Tá feia a coisa. Mas é uma pena. Bem que ela merecia se divertir um pouco, né! Mas, e as amigas da Leocádia e da Maria? A gente poderia convidar elas.

―Esquece! ­―Maria respondeu, desanimada. ―Elas foram num desses chás de bebê. É sempre assim. Quando as coisas estão começando, tem festa. Quando estão terminando, tem lágrima. Chá de panela, chá de bebê. Depois, é chá de divórcio e velório.

―E por que vocês não inventam um CHÁ DE MORTALHA?

As quatro pararam o que faziam e olharam para a mesa. Lá, seu Macedo conferia alguns canhotos de apostas do jogo de bicho, mas largou tudo na mesa e ficou silencioso, olhando para as quatro mulheres.

―Explica isso, Macedo! ­―Ziza, a mais antenada das quatro, se interessou pelo assunto.

image by Google
―Simples! Vocês fazem uma lista dos amigos e conhecidos que já estão com um pé na cova, e propõe uma última comemoração. Como se fosse um desses chás de bebê ou de panela. Só que no lugar dos convidados levarem presentes e mimos para a criança ou para a casa, levam utensílios úteis para um futuro velório, como vale-pão, mortadela, vale-flor, mortalha, e coisinhas assim. Além do que, tem a festa que o futuro defunto vai fazer, ainda em vida, para os amigos e conhecidos. Todos se divertem e o candidato a defunto ainda sai no lucro. Para ir além, vocês podem até ter um caixão, para ensaios fotográficos. Quem sabe até vender um plano funerário seria interessante.

Aquilo parecia ser a ideia mais estapafúrdia possível, mas justamente por ser inusitada é que chamou a atenção de Ziza e das outras. Resultado? No dia seguinte estavam as quatro mulheres diante do computador, pesquisando e inventando um jeito de levar aquilo adiante.

A primeira dificuldade encontrada foi convencer alguém a ser o primeiro cliente. E lá vem seu Macedo novamente, com suas ideias mirabolantes.

―É simples. Uma de vocês quatro pode inaugurar tudo isso. É só fingir que é uma cliente, e sair convidando todo mundo. Ninguém precisa saber que isso é um empreendimento. A Maria, que é mais comunicativa, pode ser a Promoter do evento. Loló e Leocádia são mais emotivas, então puxam o choro, como carpideiras, e a Ziza, que sempre foi mais ligada nessas coisas de bruxaria, pode tranquilamente bancar a defunta.

―Sei não. E a incontinência urinária dela? ―Maria já saiu provocando. ―Ainda acabamos tendo que deixar um penico debaixo do caixão. Sem contar que seria o primeiro velório com morto mijado que eu iria presenciar.

Todos caíram na gargalhada, mas foi exatamente o que fizeram. Loló, que conhecia o gerente de uma funerária, tratou de arranjar o caixão, enquanto que as outras se ocuparam em convidar os amigos e convencer a todos de que aquilo não era loucura nenhuma, mas sim um jeito de se divertir. E foi basicamente o que aconteceu.

O “evento” foi um sucesso. Seu Macedo, vendedor nato, se deu conta de que aquilo era um acontecimento que poderia interessar à mídia, e também tratou de “espalhar” a notícia entre alguns de seus conhecidos. E deu certo. No dia seguinte, até a televisão deu pequena nota sobre o ocorrido.

Poucos dias se passaram, até que dona Maria apareceu afoita na casa de Ziza. Precisavam reunir o grupo com urgência, pois alguém estava disposto a contratá-los para um evento de Chá de Mortalha. Era o primeiro cliente. O diferencial é que seria um evento à fantasia, e o motivo escolhido foi Dia das Bruxas. Lançou-se, então, o CHÁ DE MORTALHA TEMÁTICO.

A notícia se espalhou de vez, tornando-se um sucesso. Não demorou para que aparecessem concorrentes, mas seu Macedo era um gênio para promover inovações. Em um dos eventos, fez todos irem de pijama, e quando a concorrência tentou fazer igual, lá estava ele promovendo o CHÁ DE MORTALHA NATURISTA. Loló adorou a ideia, enquanto Ziza torceu o nariz, mas fez a sua parte.

A coisa ia tão bem que até jornalistas de outros países se interessaram pela história. A mídia local não se cansava de fazer chacota, mas quanto mais se tentava ridicularizar a ideia, mais sucesso ela fazia. Dinheiro para o Natal? Que nada. Naquela altura, eles estavam pensando era em viajar para a Europa. E foi quando a ganância tratou de complicar tudo.

Uma nova cliente. Atriz famosa, mas com a carreira em declínio, e querendo mais alguns minutos de fama. Evento para sair em todos os maiores canais de mídia. Tema? Exotérico. E Ziza foi a primeira a se maravilhar. Bolou estratégias de mídia e desenhou cenários. Pensou em uma decoração extravagante. Velas. Muitas velas pretas. O que a atriz pensou sobre isso? Para ela pouco importava. Queria apenas um pouco mais de espaço nas revistas.

Leocádia e Loló também se maravilharam. A primeira pelo glamour do mundo dos artistas. Pensou em convidar Pedro de Lara, Dercy Gonçalves e Hebe para o evento, pois era fã ardorosa de cada um deles, mas desistiu assim que alguém comentou com ela que todos já haviam partido desta para melhor. Contentou-se com alguns figurantes que haviam participado do filme “O PAGADOR DE PROMESSAS”. Já Loló pensou na possibilidade de encontrar algum daqueles bonitões da TV. Quem sabe alguém como Toni Tornado, Rolando Boldrin ou Silvio Santos, ou até mesmo outro mais novo, como Raul Gil ou José Sarney. E ficou ali, deslumbrada. Era sonho, claro, mas quem disse que sonhar é proibido?

Para dona Maria a história era outra. “Negócios são negócios. E se traz dinheiro, to dentro”, dizia ela. Já seu Macedo estava pensativo. Quieto e sisudo, andava pelos cantos, nitidamente preocupado. Ziza, sem entender, foi até ele e perguntou se não tinha gostado da nova cliente. E ele logo expôs seus motivos.

―É muita areia pro nosso caminhãozinho! E as velas? Você relacionou 300 velas pretas aromatizadas, Ziza! Onde vamos conseguir tudo isso?

―Samira. ―Ziza respondeu de pronto, fazendo com que Macedo se engasgasse.

―Neeeeeeeeeeeeeem a pau! A Samira não! Eu e ela não podemos sequer transitar na mesma rua. Ela me odeia!

―Pára com isso, Macedo! Você é quem aprontou com ela! Lembro bem da história. Deixou ela esperando por 3 anos, enquanto você foi na esquina comprar cigarros. Quando voltou, estava casado e com dois filhos.

―Tá! Eu até aceito essa ira dela. Mas ela nunca esquece! Na última vez em que ela esteve lá em casa, colocou purgante na minha pasta de ameixa! Como se não bastasse, trancou todos os banheiros e jogou as chaves fora! Acho que ela não vai topar! E se aceitar, vai dar um jeito de ferrar tudo. Eu to avisando!

image by Google
Ziza, a muito custo, convenceu Macedo a aceitar a presença de mais uma sócia no evento. Assinaram contrato com a atriz e partiram para a organização de tudo. Eram extremamente profissionais, mas desta vez, algo estava errado. O deslumbramento de todos, cada um com seus motivos, levava-os a negligenciar alguma tarefa ou obrigação. E quando se deram conta, os prazos estavam esgotando e muito pouco já havia sido providenciado. Correria.

A divulgação, por conta de Macedo, foi maciça. Convidados de outras cidades e, claro, gerentes e donos de funerárias de todos os cantos. Todos interessados naquele negócio que não parava de crescer. E aos poucos, tudo foi se ajeitando, até que um problema inesperado pegou a todos com as calças nas mãos.

―Amanhã é o dia. E por sorte, está quase tudo pronto. ―Maria comentou, quase comemorando.― Falta apenas montar a estrutura das velas.

―Não tem problema quanto a isso. ―Ziza tomou a palavra, também demonstrando contentamento. ―A Samira me ligou ontem e disse que já está tudo lá na loja, separado em caixas de papelão.

As quatro mulheres estavam na sala, praticamente largadas pelos sofás e tomadas pelo cansaço, quando Macedo, literalmente, invadiu a casa, afoito e preocupado.

―Meninas, vocês não vão acreditar. A Samira... morreu hoje cedo.

―O quê? ―as quatro gritaram praticamente juntas, assustadas.

―Eu falei, bem que avisei... ―Macedo se encostou na porta, quase infartando. ―Avisei que essa peste ia aprontar pra mim! Ela não me perdoa. Pilantra!

­―E agora? ―Maria foi a primeira a retomar a consciência. ―Precisamos cancelar o evento. Sem as velas, nada feito.

―Nem brincando! Lembra que já recebemos adiantado? ­―Leocádia argumentou, mostrando desespero. ―E tem muitos convidados de fora e que já estão aqui. Tem a imprensa, os donos de funerária. E até a assessoria do Wanderley Cardoso disse que tem chances dele comparecer. Nem brincando que vamos cancelar. Temos que dar um jeito! O que você acha, Loló?

―Wanderley Cardoso? Mas... Mas... Você não tinha dito que ia tentar a presença do Jair Rodrigues? Você me enganou. Sabe que tenho uma quedinha pelo Jair, mas resolveu trazer justo o Wanderley? Ah, isso não vai ficar assim!

A bagunça foi geral. Ninguém falava coisa com coisa. Aos poucos, Macedo foi soltando o corpo, até sentar-se ao chão. A mulherada não parava, e falava, falava, falava. Até que Macedo viu algo que rendeu uma ideia. Debaixo da mesa, um pé-de-cabra sorria para ele.

―Vamos arrombar!

Todas calaram ao mesmo tempo. Arrombar? Arrombar o que? E, claro, por que?

―Ué! ―Macedo deu de ombros, mostrando que não tinham alternativa. ―Pelo que sei, as velas estão lá na loja do shopping. Já telefonei para a família da Samira, e eles disseram que não existe a mínima chance de fazerem nenhuma entrega antes de realizarem um inventário. Mas nós já pagamos por aquilo tudo. É nosso. E de mais a mais, assim me vingo daquela pilantra. Cáspita, ela não podia morrer num outro dia?

Estava decidido. Se esconderiam no shopping e, depois de fechado, arrombariam a loja de Samira e pegariam as velas. Seria fácil. A filha de Loló trabalhava por lá, e eles tinham acesso direto a administração. Para facilitar ainda mais, o vigia, Nestor, era conhecido de Leocádia. Ela sabia que ele só esperava todos saírem para cair no sono. Seria fácil.

Fácil? Não, não foi fácil.

A primeira parte até se deu com certa facilidade. Esconderam-se e, quando todos encerraram o expediente e esvaziaram o local, os "gatunos" saíram de onde estavam.

―Cadê o tonto do Macedo? ­―Ziza perguntou, sendo repreendida por Maria.

―Quieta. Fale baixo. Tá querendo chamar a atenção do quarteirão?

­―Tenho que falar alto. A Loló esqueceu o trem do aparelho de surdez em casa.

―Tá. Sem problemas. O Macedo tá ali no canto. Ficou muito tempo sentado e agora não consegue levantar. A Loló tá ajudando ele. Mas, e a Leocádia?

―Mandei ela desligar as câmeras. É a única que entende disso.

Ziza mal terminara de falar, e as luzes se apagaram. Na tentativa de desligar as câmeras, Leocádia se enganou e desativou a chave geral de energia do prédio.

―Tem certeza, Ziza? Será que ela sabe o que tá fazendo?

―Bom. Sem luz, as câmeras não vão poder filmar a gente. Agora vamos. Senão não vamos terminar isso até amanhecer.

Quando elas estavam saído da administração do prédio, Leocádia estava voltando. Contou que Nestor estava em uma salinha, roncando profundamente. Loló e Maria arrastavam Macedo, enquanto Ziza ia na frente, esgueirando-se pela parede como se fosse em um desses filmes de agentes secretos.

―O que ela pensa que está fazendo? ―Macedo perguntou, enquanto ajeitava algo dentro das calças.

―Liga não! ―Loló respondeu, olhando com curiosidade para Macedo. ­―Deixa ela brincar de “FULGA DE ALCATRÁZ”. Mas, diz uma coisa, Macedo! Por que você está mexendo dentro das calças? E o que é essa coisa comprida e grossa que está aparecendo aí? Que é isso?

―Arre! O pé-de-cabra, ué! Quer arrombar a fechadura de que jeito?

―Ah! Tá! Pé-de-cabra? Poxa, achei que era algo com mais utilidade! Que pena!

Um pouco mais adiante, Ziza parou e olhou para os lados. A pouca iluminação fez com que ela firmasse bem os olhos. Os demais também pararam e observaram, e se espantaram ao vê-la sair correndo de um jeito bem estranho.

―E agora? Onde essa doida vai? ―Leocádia perguntou, encostando-se na parede.

―Banheiro! ―todos os outros responderam, fazendo coro.

Meia hora depois, e com mais três idas ao banheiro, Ziza parou diante de uma porta metálica. Todos se olharam e estranharam. Ninguém lembrava de nenhuma placa vermelha na entrada da loja de Samira.

―Ziza! Você tem certeza de que é aqui?

―Maria, é claro que eu tenho! Extremo norte, perto do quiosque de sorvete. Agora, vamos logo, senão não saímos daqui hoje. Alguém lembrou de trazer os explosivos?

―Acho que ela esqueceu de tomar o Gardenal nesses dias. Só pode! ―Maria puxou o braço de Macedo, e o mandou fazer sua parte.

Macedo se abaixou, mas logo parou. Um estalo nas costas arrepiou todo mundo, e um “aiii” lamentoso partiu de sua boca.

―Danou tudo. ­―Ziza se agitou, voltando a falar alto.

―Danou nada! E pare de falar alto! Olhem o que eu roubei lá do Nestor!

Todos olharam para Leocádia, e viram a mulher balançando um jogo de chaves.

―São as chaves de segurança. O Nestor estava dormindo, e nem viu eu pegar. Mas quem de nós enxerga bem, o suficiente para achar a chave certa? Acho que a Loló, né? Vai, Loló. Loló... Lolóooooooooooooo... Eita. Até enxerga, mas escutar que é bom, nada!

―Loló, dá pra prestar atenção? Até parece que ta aí, perdida?

―Coceira na perseguida? ­―Loló soltou um grito, irritada. ­―Tão me chamando do quê? Eu tomo banho todos os dias, viu!

―Ai, ai! Isso vai demorar mais do que eu imaginei! ―Macedo desanimou, pegando as chaves das mãos de Leocádia. ―Ziza, você... Ziza? Onde ela foi?

E novamente o coro: “Banheiro”.

image by Google
Meia-hora depois, todos estavam dentro da loja. Não enxergavam um palmo diante do nariz, mas continuaram em frente. Passaram pelo balcão principal e foram diretamente para os fundos da loja, mais especificamente para o depósito. Lá, algumas caixas de papelão chamaram a atenção. Na lateral de cada caixa, uma etiqueta dizia “VELAS ESPECIAIS BIG NEGÃO”.

―Big Negão? Que droga de vela é essa? ―Macedo perguntou, olhando para Maria, que vinha logo atrás.

―Isso é coisa dessas doidas, dessas malucas que mexem com bruxaria! Só pode! Samira e Ziza! Quer o que? E vamos logo que não temos muito tempo. Cadê a Loló?

Quando Maria olhou para trás, reparou um vulto na porta, carregando algo comprido nas mãos, como se fosse um cacetete. O susto foi tanto, que ela quase se atirou nos braços de Macedo.

―Calma gente! ―Loló comentou, calmamente. ―Olhem só o que eu achei!

Loló chegou mais perto dos outros, e mostrou o que tinha nas mãos. O espanto foi geral. Ziza foi a primeira a expressar algo.

―Mas isso é uma benga! E é enorme! Onde você achou isso?

―Tava ali no balcão. Pelo visto é um vibrador. O que será que a Samira andava aprontando por aqui? Não sei por que, mas me deu uma saudade do falecido!

―Vocês querem parar de ficar admirando essa coisa? ­―Macedo reclamou, começando a recolher as caixas para levá-las até o estacionamento. ―Parece que nunca viram um pinto na vida!

E o coro fez presença novamente: “Desse tamanho, nunquinha”.

Tudo ia bem, até que já na boca do amanhecer, Nestor acordou e resolveu fazer a ronda. As caixas já estavam quase todas nos carros, e quando o grupo voltava para pegar o restante, deram de cara com o vigia. Ele, sem entender nada, ficou apenas olhando. E foi exatamente o que todos os outros fizeram. Ficaram estáticos. No entanto, espantaram-se pouco depois, ao reparar que Loló chegava sorrateira, por trás do vigia, e com algo nas mãos.

Ela se aproximou e encostou aquele vibrador nas costas do vigia e fingiu que era um assalto. Nestor, ao sentir que algo o espetava na altura das costelas, empalideceu. Foi dobrando os joelhos, até que do nada, desmaiou.

―Eita, cabra macho! ―Ziza comentou, rindo. ―Acho que ele não vai gostar muito quando descobrir que a Loló dominou ele com um pinto.

―Não podemos deixar ele aqui! ―Maria interrompeu, pensativa. ―Vamos levar junto! Vai que ele dá com a língua nos dentes antes de fazermos o evento?

E lá foram todos, arrastando o vigia. Já quase amanhecia, e Leocádia, a última a sair, virou para trás e tentou ler o que estava escrito na placa vermelha, logo na entrada da loja de Samira. Mas como seus óculos não ajudavam muito, pouco conseguiu ver.

―Hot Se... Hot Sex... ah, sei lá! Ficam dando esses nomes esquisitos pros comércios! Por que não dão um nome brasileiro, em bom português, ou algo assim?

Cansados, foram diretamente para o salão onde seria realizado o Chá de Mortalha. Por lá, deixaram as caixas e também Loló, que ficaria responsável pela montagem do cenário com as velas. Além disso, uma grande cortina preta esconderia toda a decoração especial, que seria mostrada somente quando a atriz se deitasse no caixão para fazer a sessão de fotos.

Ao voltar para um dos carros que estava estacionado na rua, Maria estranhou a ausência de Ziza. Procura daqui, procura dali e, ao vê-la, quase morreu de susto. Ziza, calmamente, despia Nestor, e o ajeitava no porta-malas do veículo de Macedo.

―Sua maluca! O que você tá fazendo? Por que isso?

―Vai que ele acorda e resolve fugir! Sem roupas não vai a lugar nenhum.

―Até que ele é um coroa bem enxuto! ―Maria arregalou os olhos, percorrendo todo o porta-malas do veículo.

―Isso não é hora para sentimentalismos. Vamos embora, Maria. Temos muito o que fazer ainda. E a Leocádia? Tá com o Macedo?

―Estão telefonando e confirmando tudo. Vamos com o carro do Macedo. Mas, e o Nestor? Já sequestramos mesmo! Fazemos o que com ele?

―Sei lá! Qualquer coisa! Podemos dar um porre nele, ou contratar uns garotos de programa e bater umas fotos! Se ele quiser dar com a língua nos dentes, fazemos chantagem!

―Ai, ai, ai! Santo Cristo! Você anda assistindo muita televisão!

Assim, o dia passou, com tudo se ajeitando e correndo bem. Para decepção de Leocádia e Loló, os únicos artistas que apareceram foram os funcionários de um tal Circo do Lingüiça, que estava instalado nas proximidades. Mas vários outros convidados deram o ar da graça, assim como a imprensa e os empresários.

A festa era puro glamour e divertimento. Flashes disparavam a cada instante, e os garçons não conseguiam ficar com as bandejas cheias. E tudo ia bem. Bem demais.

­―Ziza, você arrebentou! Adorei os detalhes das velas. Nossa, arrepiei!

―Do que você está falando, Loló? São apenas velas pretas aromatizadas.

―Pois é... e que velas! Ui, ui, ui! De tirar o fôlego! Mas vou lá pra trás da cortina, que já vamos abrir o palco principal. Aiiiiiiii, to emocionada. Vai ser o must!

―Pirou! Essa deve ter visto o passarinho verde!

Ziza estranhou, mas pegou o microfone para anunciar o descerramento da cortina.

―Por favor, gostaria da atenção de todos. Tenho certeza, meus amigos... que o que vocês assistirão aqui jamais será esquecido. ―Ziza falava, orgulhosa de tudo. ―Atrás dessa cortina estão signos daquilo que nos moveu desde nossa gestação. Atrás dessa cortina estão elementos que queimam em cada um de nós, simbolicamente. A chama que nos ilumina vem dessas belas peças. Que desça a cortina!

Assim foi feito. Calmamente, Macedo puxou a corda que abria a cortina. E, exatamente da maneira como Ziza havia dito, foi um espetáculo que ninguém esqueceu.

―Mas, o que é isso? ―uma senhora comentou ao ver todas aquelas velas acesas. ­―O que são essas velas? Me parecem algo conhecido.

―Olha, Mirtes. ―outra senhora respondeu, arregalando os olhos. ―Se a memória não me falha, são pintos!

O alvoroço foi geral. Quando Maria e Ziza olharam para trás, o que viram foi Loló terminando de acender a última vela, que era justamente em formato de pênis. E o que eles tinham ali era um tablado enorme, com mais de duzentas velas acesas, e todas elas pretas e no formato do órgão sexual masculino, porém, em um tamanho deveras avantajado.

image by Google
O alvoroço tomou conta. A atriz, sem entender nada, tentou levantar do caixão, mas a tampa escorregou e a deixou trancada. Os fotógrafos não perdoaram, e deram closes e mais closes naquelas velas inusitadas. Como se não bastasse todo o furdunço, Nestor resolveu dar o ar da graça. O problema é que além de bêbado, ele estava completamente nú, e mal conseguia trocar os passos. E mais flashes dos fotógrafos.

―Você não falou que ia amarrar ele, Ziza?

―Arre, não pensei que ele ia conseguir levantar depois de tomar quase um garrafão de cachaça.

E as coisas não paravam de piorar. Entre os convidados, estava a mulher do delegado de polícia, que se sentindo ofendida, telefonou para o marido. Em menos de uma hora, estavam todos na delegacia.

Lá, Maria tentava argumentar com o delegado. Explicou tudo o que ocorreu desde o início, e ele até parecia disposto a escutar, mas Macedo tentou atalhar, e ofereceu uma parte dos lucros do evento para o delegado. Resultado disso: todos presos.

No dia seguinte, recolhidos na cela da delegacia, Ziza se lamentava e argumentava com os demais.

―Pois é. No fim das contas, estragamos tudo. Mas, alguém sabe onde foi parar o Nestor, afinal?

―Abri o caixão e empurrei ele pra dentro. ―Macedo respondeu, de cabeça baixa. ―Bêbado daquele jeito, e pelado, só iria piorar as coisas. E tranquei, pra não ter problema dele sair.

Dois meses depois, com tudo mais calmo e todos em liberdade, mas respondendo processo, eles se reuniram novamente na casa de Maria, para tentar retomar o clube de baralho. Ziza e Macedo conversavam a um canto.

―Então, Macedo. Como ficou a invasão da loja?

―Eles só vão cobrar os prejuízos, e não vão prestar queixa! Só queria entender como é que fomos nos enganar de andar e invadir justamente um sex shop! Falando nisso, eles estão cobrando algo esquisito! Segundo eles, além das caixas com as velas, sumiram mais vinte vibradores, chicotes e lingeries especiais!

Os dois se olharam e riram, fazendo coro: “Loló”.

―E apesar de toda a bagunça, os donos de funerária gostaram! Temos mais gente interessada no Chá de Mortalha!

―Tudo bem, Macedo! Mas vamos esquecer isso por um tempo! O melhor é sossegar um pouco, pelo menos por enquanto! Só queria saber o porque daquela atriz retirar todos os processos que nos acusou inicialmente!

―Você não sabe o que aconteceu? O Nestor convenceu ela!

―E o que o Nestor tem com isso, santo Deus?

―Bom, quando eu empurrei ele para dentro do caixão e tranquei, nem reparei que ela estava lá também. O fato é que eles tiveram uma noite, digamos, bem próxima e muito inusitada. Vai saber o que aconteceu lá naquele caixão, não é?




Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.