domingo, 23 de abril de 2023

O BUTIÁ DE ALELUIA

 

Butiá - palmeira e fruto - by Google
Aquela caminhonete era enorme. Grande mesmo, totalmente fora dos padrões daquela cidadezinha de porte médio lá pelos lados do interior de São Paulo. Parada no estacionamento do banco, ocupava o espaço de dois carros muito grandes.

Seu Oscar, o morador mais ilustre de uma cidade próxima, desceu fazendo pose. As botas, de couro de crocodilo, brilhavam em parceria com a grande fivela do cinto que segurava sua lustrosa calça jeans, e que diga-se, era mantida sempre muito bem passada a ferro e, claro, com um aparente vinco nas pernas. A camisa era quem sofria. Branca e em estilo social, quase se arrebentava na altura da saliente barriga. Na cabeça, um chapéu de boiadeiro, daqueles de rodeio, e decorado com alguns butiás secos, fruto de uma palmeira típica da região. Seu Oscar ostentava sempre aqueles frutinhos, e dizia a quem quisesse ouvir que sua fortuna era devida a eles.

Logo depois de Seu Oscar, apareceu dona Aleluia, sua esposa. Ela fazia o estilo esguio, alta, e com os cabelos desgrenhados. O vestido longo, florido de lilás e azul, marcava bem as ancas largas, deixando para as mãos um par de luvas importadas, e que ela gostava sempre de gabar a procedência: Paraguai. No rosto, a maquiagem não era pouca, e em momento algum pretendeu a discrição.

E para completar a família, os 3 filhos: Cajuino, Equinócio e Perestróica.

Já diante do gerente especial que cuidava de suas contas, seu Oscar ordenou:

―Fio, invista naquilo que melhor me render. To quereno fazer uma viagem pra Poconé, no Mato Grosso, e adespois esticar pra minha fazenda. Não quero percupação com meu dinhero.

―Poconé? ―perguntou o gerente, tentando ser simpático ao extremo com aquele que era um cliente tão rico.

―Oxe! Tá achano poco? Intão jogue mais uns 10 mião junto. Si o sinhor acha poco, é purque sabe do que tá falano. O sinhor é a otoridade aqui.

O gerente sorriu, e meio sem jeito, explicou que fazia referência a cidade para onde seu Oscar viajaria. Mas, obviamente, aproveitou e jogou mais aquela soma para o investimento. E como queria agradar ainda mais ao cliente, resolveu servir um café e esticar a conversa.

―Mas, me conte, seu Oscar! Como o senhor fez para amealhar toda essa fortuna? Existe alguma fórmula que o senhor possa ensinar?

―Seu moço, num amiaiei nada não! Não pranto mio (milho), nem do branco, nem do amarelo! Eu trabaiei é muito. Eu e Aleluia!

―Aleluia, seu Oscar! Aleluia!

―Que Aleluia? Purquê falou ansim?

―Ué? Eu falei aleluia no sentido de “graças a Deus”!

―É! Foi cum fé e trabaio! Eu e minha Aleluia!

―Aleluia!

―Di novo? Purquê o sinhor só repete o nome da minha mulher? Pur acaso acha que ela trabaiô mais du que eu? Aliás, Cajuino só largava o enxadão quando chegava Equinócio! Era duro!

―O que? Não entendi nada! O senhor plantava caju nos equinócios de outono e primavera? Mas caju nem dá por essas bandas!?!

―Tá dando uma de abestado cum eu, é? Que caju? Cajuino é fio meu, o mais véio. Adespois veio Equinócio, junto com a Perestróica.

―Ah! Tá! Entendi! Me desculpe! Mas então, o senhor já estava casado quando veio a abertura soviética?

―Quem é essa muié que o sinhor falou? Essa tar Soviética? E purque ela veio aberta? Tinha ispinhéla caída?

―Hã? Como assim? Não, não! É que foi na abertura soviética que veio a perestróika!

―Vo ti dá um amansa corno nos beiço, já já, si o sinhor não parar de ofender minha famia! Perestróica é minha fia, e veio de Aleluia. A partera num era essa tar de Soviética, e nem muito menos tinha ispinhéla caída. Me arrespeite, tarzinho!

Eles se olharam fixamente por alguns instantes, e seu Oscar reparou uma gota de suor escorrendo pela face do gerente. O rapaz parecia perdido, e quem sabe sequer tivesse sido a intenção dele ofender assim. Então, seu Oscar continuou no relato.

―Bão! O começo foi dificir! Eu era bóia fria, e conheci a muié da minha vida. Aleluia!

―Aleluia! ... ops... perdão, seu Oscar. É a força do hábito.

­―...tá. ...sei. Mas como eu arrelatava, conheci Aleluia! Ela morava numa área de terra muito ruim, coberta com esse tar de butiá, uma parmera que eu nunca tinha visto lá donde eu vim. No começo, quando casamo, eu cuidava da terra e era servente de pedrero, enquanto Aleluia colhia e vendia butiá. Logo adepois, veio uma estia grande, cum tudo seco pur tudo canto, e pur um acaso de Deus, nossa porpiedade foi a única que manteve um poco de água, mas como nóis num prantava muita coisa além daquelas parmera, e nem criava gado, passemo a usar a água pra moiar só as parmera. Ficou uma belezura, e a gente viu que só nóis fiquemo com essas parmera na região. Aleluia! Aleluia!

Seu Oscar calou, e como percebeu que o gerente não iria falar nada, retomou a palavra com certa irritação.

―Tá mangando di eu, é? Falei aleluia, em gardecimento, i o sinhor num vai arresponder não, seu abestado?

―Aleluia, aleluia! ―o gerente respondeu rapidamente, sem entender nada.

―Mior ansim! Mas, enfim, o tempo passou, e nossos butiá começaro a fazer o maior sucesso. Era os butiá de Aleluia, como o pessoar falava. Inventemo suco, doce, artezanato cas foia, pinga e inté licor. Era o Licor do Butiá da Aleluia.

―Mas que maravilha! Parece muito bom, seu Oscar!

―É muito mior du que o sinhor pode pensar! Num tem ser vivente lá no vale das Parmera, donde moramos, que já num tenha dado umas beiçada no butiá da minha mulher. Só o padre é que é um chato! Nunca bebeu o licor que sai do butiá dela.

―Como assim? Não entendi!

by Google
―É que o padre é meio chato. Ele acha o licor do butiá da minha mulher um poco grosso. Diz ele que tem chero forte. Mas o padre é danado. Não posso virar as costas que lá tá o padre cá vara na mão, esfregando no butiá da Aleluia, e pronto pra comer o butiá da minha mulher. É eu sair de perto e ele soca a vara no butiá dela, sem dó!

―Como é? Não to entendendo!

―Ele mete a vara no cacho. Pior é que ele judia do butiá dela cum isso. Mas o fato é que si temos o que temos hoje, devemos ao butiá da Aleluia. E que butiá gostoso. Butiá grandão! O senhor quer provar?

―Provar o que? Como assim?

Seu Oscar, repentinamente, levantou-se e procurou por sua esposa. Quando a enxergou, soltou um assobio, o que chamou a atenção de todos, e começou a falar alto, bradando pela esposa.

―Aleluia! Aleluia!

Sem entender nada, os outros clientes, em coro, responderam:

―Aleluia! Aleluia!

Seu Oscar olhou todo sorridente para o gerente do banco, e falou baixinho:

―Mas, óie, seu tarzinho. Viu como todos bradaram o nome de minha mulher? Todos eles já devem ter comido o butiá dela! Que orguio qui eu tenho!

Ainda sorridente, virou novamente para onde estava a esposa, e continuou falando alto.

―Aleluia, mande Cajuino ir até Equinócio, e traga a cesta. Hoje, todos os que estão aqui vão comer teu butiá, mulher. E o melhor, de graça. Eu to feliz, e todo aquele que quiser comer o butiá de Aleluia, pode fazer fila aqui. E guarde um butiá bem graúdo, que é pro seu tarzinho aqui poder se lambuzar no teu butiá, mulher.

―Seu Oscar, por favor! O senhor está passando dos limites!

―Ara, tarzinho! Se o sinhor num é chegado num butiá, minha fia tem umas vaquinha de leite. Já provou o leite da Perestróica?

―Mas isso já é o cúmulo! Que pouca vergonha! ―o gerente gritou, indignado. ―Eu não quero comer o butiá da sua mulher. Não quero comer o butiá de ninguém aqui, nem o butiá dos seus filhos e nem o seu! Se eu quiser comer butiá, como o meu, mesmo sendo difícil, mas mantenho o respeito! E também não quero saber do leite da perestróica da sua filha! Que pouca vergonha!

O gerente gritava e se agitava, até que percebeu que todos olhavam para ele de uma forma esquisita. Foi quando o filho de seu Oscar apareceu diante dele com uma enorme cesta, cheia dos frutos de que seu Oscar tanto falava.

―Ah! Então são esses os butiás de sua mulher? ―o gerente aquietou-se, completamente corado e percebendo que seu julgamento estava totalmente equivocado com relação àquela discussão.

―Mas é craro, soh! De quar butiá intão o sinhor acho qui eu tava me arreferindo?

―Nenhum, seu Oscar! Nenhum! E ainda bem que o senhor não planta caju, pois eu até imagino como seria complicado comer a castanha do Cajuino. Que confusão. Acho que me perdi nessa bagunça toda de nomes! Devo confessar que eu cheguei até a sentir que algo meu ficou apontando para um equinócio de primavera, mas foi por pouco tempo!

―O qui o sinhor tá arresmungando aí, seu tarzinho? Num to intendendo nadica!

Alho - by Google
―Bom, por sorte o seu nome não segue o padrão de complicação do restante de sua família.

O gerente, completamente corado, sentou-se. Mais calmo depois de alguns minutos, retirou alguns papéis da gaveta e começou a analisar, até que viu algo estranho.

―Seu Oscar! Me parece que houve um erro de digitação aqui nos documentos. Seu nome está incompleto. Está apenas como “Oscar A.”. Qual é seu nome completo, afinal, seu Oscar?

­―Ah, seu moço. Meu nome é uma belezura em homenagem ao melhor fruto da terra. É Oscar Alho. E falando nisso, dizem na minha terra que adespois de dar umas lambidas no butiá da minha mulher, a melhor coisa que tem é sapecar e comer um alho bem suculento. Dizem que o cheiro é uma dilícia!

―Eu mereço! Eu mereço! ­―o gerente suplicou, desanimado.



Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

VALENTINA E A LUA NEGRA

 


image by Google

Valentina ouviu as vozes da consciência, e pensou ser o momento de retomar o controle de seus dias. Valentina, então, parou na esquina do destino e olhou para todos os lados. Olhou também para cima e para baixo, e não viu nada de novo além de seu rosto refletido na poça d’água. E Valentina entristeceu.

Seu porte de mulher altiva estava murcho naquele instante. Superar uma história que estava tatuada em seu seio era uma meta, e virar a página de um amor, o seu intento mais imediato. Conseguir tais feitos, no entanto, era algo que corroia seu coração e atiçava seu metabolismo.

Esquecer um amor. Seria possível? Transpor um rio repleto de crocodilos ferozes talvez fosse até mais fácil do que arrancar um sentimento que criara raízes tão profundas pelo corpo. Um amor que invadira cada célula de seus órgãos, sem sequer pedir licença, certamente não cederia assim, do dia para a noite.

Valentina procurava nos rostos que passavam naquela esquina um complemento para a angustia que sentia. Ela não era a única, não poderia ser. E Valentina chorou. Chorou sim, mas já nem sabia se por amor, por saudade, se por tesão ou, ainda, pela raiva que brotava de seus olhos combalidos. Ele não valia aquelas lágrimas, ela sabia disso, mas, mesmo assim, ela as derramava ao chão. A sujeira daquela viela era até mais digna daquele despejar de agonia, pois ao menos o chão a sustentava ali parada, sem cobrar nada, sem acusar, sem impor limites absurdos ou, ainda, sem castrar seus sentimentos.

Algumas pessoas invisíveis passavam por ela, munidas de pedras nas mãos. Valentina olhava diretamente para os olhos daquelas pessoas e via, unicamente, desprezo. Era aterrador saber que a castigariam por um crime que não quisera cometer. Crime? Sim, Valentina era criminosa. Cometera o crime de não se valorizar, de não se levantar diante da inescrupulosa mente dominadora de um homem que a queria sob sua tutela. Cometera o crime de amar sob qualquer circunstância, mais do que a ela própria.

Ao chão, uma coroa de espinhos roçava em seu tornozelo, e no retumbar das vozes, ela pensou ter escutado alguém proferir: “paga por teus pecados e carrega tua cruz”. Mais adiante, surgiu um edifício que se perdia para cima, e lá no alto, três cruzes esperavam seus condenados.

Valentina rodou o olhar, e reparou uma turba se amontoando ao seu redor. Ela, desesperada, pensou em correr, mas suas pernas estavam pesadas e não conseguiram mantê-la em pé. Caiu de joelhos e, sem esboçar reação alguma, foi encoberta por aquelas pessoas estranhas e desordeiras.

Em instantes, algumas pessoas levantaram Valentina no ar e a carregaram para o edifício que sustentava as três cruzes. Cantavam, gritavam e agitavam lenços vermelhos. Do horizonte, sem nuvem alguma, brotava uma lua negra, circundada de uma auréola branca e aparentemente fria. O ambiente foi tomado por uma corrente de ar espessa, como uma névoa densa e que vertia diretamente do corpo de Valentina ao ser carregado.

Valentina, no entanto, continuava exatamente no mesmo lugar, ainda de joelhos. O que aquelas pessoas carregavam então, se ela estava ali, sem sequer ter sido tocada?

Ao olhar novamente para aquele grupo, Valentina assustou-se. Não era ela, e sim um homem quase transparente e completamente desesperado. Era ele, seu amado. Ela, inquieta, levantou-se e tentou correr até ele, mas foi contida por uma barreira invisível que se formou em pleno ar. E assim, as pessoas se foram.

image by Google
Algum tempo depois, no alto daquele edifício, três homens ocupavam as três cruzes, e em cada uma delas, uma labareda brotava flamejante. Não havia, no entanto, arrependimento naqueles três homens. E sequer eram três homens. Era apenas um, ladeado por suas consciências, a boa e a má. Duas cruzes queimaram instantaneamente, enquanto a terceira, que estava a direita, permaneceu intacta. Não existia, nela, essência alguma. Não havia o que queimar, pois ela era vazia. Era a parte boa daquele homem, mas era somente isso, uma casca sem nada dentro.

Lá embaixo, as mãos de Valentina sangravam. Próximo a ela, um daqueles lenços vermelhos que as pessoas agitavam caiu suavemente, e serviu para que ela estancasse o sangramento em uma das mãos.

Valentina despertou pela manhã, apavorada. Um sonho, um terrível e cansativo pesadelo. Seus olhos, ainda receosos, percorreram todo o quarto. Tudo em seu devido lugar. No coração, uma sensação estranha de tranquilidade. Pensou naquele homem que ela tanto amou e que a fez sofrer, mas sequer lembrou de seu rosto. Não conseguia lembrar, por mais que se esforçasse.

Aquele pesadelo teria sido uma ferramenta para fazê-la exorcizar a amargura que sentia? Não desejava mal algum a ele, mas gostaria de esquecê-lo. E se o que sonhou a ajudou a retirar do coração aquele que tanto a fez sofrer, então que assim fosse.

Pela janela, o sol e o vento brincavam com a cortina. Ela pensou em levantar e ir para a cozinha, mas ao se apoiar na cama, sentiu uma dor horrível na palma de uma das mãos. Olhou-as e viu alguns riscados na pele. Ao aproximar os olhos, reparou várias pontas de espinhos cravadas profundamente. Quando levantou o olhar e mirou a estante que ficava diante da cama, foi acometida por um sobressalto. Lá, jazia algo que a fez mergulhar novamente naquele pesadelo. Uma coroa de espinhos, parcialmente queimada. Ao lado, um lenço vermelho manchado de sangue.

Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

DOS TONS DE TUAS NOTAS

 

image by Google
Não da palavra, mas sim da letra que te compõe.
Foi escrita como uma melodia, como uma cantiga de acordar, como versos de embalar a alma
e acalentar a saudade.
É assim que Deus te compôs, rimada com o vento em uma escala sempre de um sol maior.
Os acordes da canção dançam por teu corpo, te escorrem livremente da boca para as mãos, encaixando-se não nos ouvidos de quem te escuta, mas diretamente na vereda que se abre nos olhos. O concerto é dado pela orquestra de cordas afinadas, todas raiadas por teus cabelos soltos.
O solo, sustenido pelo vocal alerta de um passarinho, faz dueto perfeito em teu colo reconfortante.
Então, um tanto adiante, que se adiante a fala, aquela minha, em uma súplica de um bis. Sonoro, retalho meu pedido, aplaudo, saúdo, e concluo entre arrebatado e encantado:
tua letra, a da tua vida, é uma trilha ainda inacabada, lançada ao tempo e sendo escrita em capela, aquela mesma que se encaixa com a nota mais bela, essa mesma que sempre me vem nas lembranças, quando da janela me invade a saudade.
Te concluir, jamais.
Teu show apenas começou, e a música mais graciosa ainda está por ser escrita.



Marcio Rutes

quinta-feira, 6 de abril de 2023

TEMPOS MODERNOS – O ARREPENDIMENTO DE JACOB



Lincoln Continental 1961 - by Google

A secretária, com aspecto entristecido, entrou no escritório para dizer adeus ao patrão. Ela, uma senhora de seus bons 50 anos de idade, trabalhara ali por toda uma vida. Viu o patrão, Jacob, levar aquela distribuidora de cereais a se transformar em uma das maiores exportadoras de alimentos enlatados e grãos do estado de Goiás.

Ela era apenas uma menina de 15 anos quando foi contratada pela cerealista. Começou na faxina, e com paciência e dedicação, logo estava no escritório, lado a lado com a chefia. E agora, chegava o momento de se despedir não de um patrão, mas de um amigo. Ficou ali, olhando e lembrando a trajetória de vida daquele homem.

Jacob herdara do pai tanto o ofício de comerciário quanto a empresa, que já detinha boa carteira de clientes, e não decepcionou. Ele era conhecido como um patrão austero e exigente, mas era acima de tudo justo e íntegro e não se fazia de rogado ou preguiçoso. Arregaçava as mangas e ia para o pátio sempre que era necessário. Trabalhava lado a lado com os serventes na carga e descarga dos caminhões, e com isso, adquiriu o respeito máximo de todos naquela empresa.

Jacob era tradicionalista ao extremo. Detestava tecnologia e, se possível, vivia enfurnado entre as quinquilharias que adquirira no correr de seus 70 anos de vida. Mantinha em sua empresa o departamento de “guarda-livros”, e por muito pouco não obrigava esses profissionais a utilizar caneta-tinteiro e mata-borrão. Pura birra. Seu automóvel, um Lincoln Continental 1961 original, era seu xodó, e em cada fim de semana, ele ia com seu carro brilhoso ao barbeiro e ao alfaiate.

Mas Jacob teve dois filhos, e estes ele não conseguiu educar em sua rotina tradicionalista. Hoje, Jacob se surpreende com a facilidade que eles possuem em ter tudo de forma imediata e integral. Informações que ele, Jacob, levaria semanas para levantar quando iniciou sua vida profissional, os filhos conseguiam com meros cliques em um teclado de celular ou computador. Mas Jacob se mantinha irresoluto. Fazia as coisas do jeito que sabia e, principalmente, de forma segura. Os filhos que ficassem com seus investimentos na bolsa e suas especulações em outras áreas financeiras. Para o pai, o que os filhos faziam era, além de arriscado, um jeito preguiçoso de ganhar dinheiro, e ele não gostava nada daquilo.

No entanto, dizem que “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. E um dia, furou mesmo. Os filhos perturbaram tanto ao velho pai, que ele cedeu à pressão. Automatizou parte da empresa, comprou computadores, contratou funcionários especializados e conhecedores de modernidades, demitiu, contra sua vontade, parte dos funcionários e, mesmo a contragosto, adquiriu um telefone celular. Os lucros aumentaram e Jacob teve que admitir que aquilo não era algo tão ruim. O empresário passou a deixar parte dos lucros a cargo dos filhos, para investimentos na bolsa e em outras áreas que eles tão bem dominavam com suas tecnologias. E assim, Jacob passou a ser um investidor moderno, com presença até na bolsa de Nova Iorque.

Certo dia, Jacob foi pego de surpresa com o pedido de um dos filhos. Uma empresa em Taiwan iria lançar um equipamento extra-hiper-super moderno, e o filho queria investir dez milhões de dólares na empresa. E a discussão começou.

—O que essa empresa produz?

—Não é o que eles produzem, pai, e sim a rentabilidade das ações, que irão subir muito. Compramos as ações agora, por preço baixo, e vendemos depois.

—Sei! Especulação. E cadê seu irmão? Mandei ele até a Central de Distribuição para levar uma ordem de compra de milho. Quero adquirir todo o estoque possível, pois a janela de exportação vai abrir, e não quero ficar sem sementes justo agora!

—Ele não precisou ir até lá. Os tempos são outros, e não necessitamos mais gastar tempo com deslocamentos e salas de espera. Ele fez tudo pelo novo sistema eletrônico de compra de um grande site de vendas. Eles são o que há de mais moderno na internet e reúnem tudo num mesmo lugar. Fácil, prático e seguro.

—Ah! Que mania que vocês têm de fazer tudo por essas máquinas. O que aconteceu com o olho-no-olho? Tá! Investe esse dinheiro. Mas, cuidado com o que você anda fazendo. Todo nosso dinheiro tá nesses investimentos que você anda fazendo, mas eu prefiro ele aqui, onde eu posso controlar!

Alguns dias depois, Jacob foi novamente surpreendido pelos filhos. Só que agora, a euforia que eles sempre mantinham não era por boa coisa.

—O que foi? —Jacob sentiu uma leve coceira na orelha, o que, para ele, não era um bom sinal.

—Pai. Lembra daquele dinheiro que eu iria investir na empresa de Taiwan?

—Como assim, iria investir? O que aconteceu?

—Bom... quando autorizei a ordem de transferência, alguém me roubou. —o filho falava em voz baixa, completamente apavorado.

—De que forma? E o gerente do banco? A segurança?

—Não é isso, pai. Autorizei pelo IPhone. Os bancos eletrônicos são modernos e seguros, mas alguém deve ter “grampeado” a linha. Roubaram a senha da conta e limparam tudo, tanto o que eu iria investir quanto o que ficou na conta!

—Modernos e seguros? Você chama isso de seguro? —inconformado, Jacob olhava atônito para o filho. —Quanto nós perdemos?

—Tudo! Estamos sem um centavo no banco!

Jacob sentou e enrubesceu. Como aquilo era possível? Durante décadas, o gerente de suas contas é que ia até sua empresa. Tudo seguro e nos conformes. E agora, querem fazer tudo por máquinas frias. Mas Jacob ainda iria se irritar muito mais, e isso aconteceu no exato momento em que ele olhou para seu outro filho, que mantinha a cabeça baixa e as mãos trêmulas.

—Não me diga que você também foi roubado pelo telefone? —Jacob fitava o filho e temia pela resposta.

—Não, pai! Mas aquela ordem de compra do milho que fiz pelo sistema eletrônico...

—Tá! Me diz... o que tem ela? Essa ordem já está paga. Cadê o milho?

—É que o sistema eletrônico concentra uma série de empresas de setores diferentes. E na correria, errei os códigos e acabei comprando outra coisa. Mas tá tudo bem. A mercadoria está aí embaixo, pronta para ser descarregada.

—Você errou os códigos? Quais códigos? Qual é a mercadoria que está aí embaixo?

—Quarenta e cinco carretas carregadas de...

O filho estaqueou e olhou tanto para o pai quanto para o irmão. Durante alguns segundos, o silêncio foi aterrador, e antecipava algo que o velho Jacob já sabia que não seria bom.

—Carregadas do quê? Fala logo! —Jacob, literalmente, suplicava.

—Comadres.

comadre - by Google
Jacob ficou arfante, e por muito pouco não foi acometido por um infarto. Olhava para os filhos e não acreditava naquilo tudo que ouvia.

—O que são “comadres”? —um dos irmãos questionou, como se não ligasse muito para a complexidade da situação. —Comadres não são mulheres que batizam filhos umas das outras?

—Não! Que besteira! Comadres são penicos, seu tonto!

—Que merda você fez, hein!?

—Vocês dois, calem a boca. Já terminaram de bombardear seu velho pai, ou tem mais alguma coisa que tenha acontecido e que vocês ainda não me contaram?

—Aaaaaaah! Tem sim, pai! A mamãe foi embora com aquele ex-namorado, que ela achava que tinha morrido antes de conhecer o senhor.

—O que? Como assim? Aquele salafrário e conquistador barato desapareceu faz mais de 50 anos. Eu sempre soube que ela era apaixonada por aquele homem e que perdia a noção das coisas quando ele se aproximava, mas achávamos que ele estava muito bem morto e enterrado!

—Pois é, pai. Mas ele não morreu e eles se reencontraram!

—Que inferno! —Jacob esmoreceu definitivamente. —E como isso aconteceu?

—Bom... nós achávamos que ela precisava distrair um pouco a cabeça, e ensinamos ela a mexer nas redes sociais. Sabe como é, né! Facebook, Par Perfeito, Tik-tok, Ping-Pong, zap-zap... hoje cedo, encontramos o computador dela ligado e uma mensagem de e-mail do ex-falecido pra ela. Olha só a mensagem.

O filho esticou o braço e entregou uma folha de papel com algumas coisas escritas ao pai. Ele, nitidamente trêmulo e reticente, trouxe lentamente o papel até próximo aos olhos e empalideceu de vez. Entregou novamente o papel ao filho e, nervoso, pediu que a mensagem fosse lida em voz alta.

“Para: Zuzu_fogosa@gmail.com
De: Coroa_enxuto@uol.com.br

Zuzú, minha deusa. Teu retorno na minha vida me deu uma sorte danada. Vendi todo o estoque encalhado da minha fábrica para algum idiota.
Agora, com dinheiro no bolso, podemos fugir para algum lugar.
Beijos, minha totosa linda.”

—É muito para meu pobre coração. —Jacob pronunciava as palavras e olhava incrédulo para os filhos. —Afinal de contas, o que esse ex-defunto fabricava?

O filho mais novo olhou para o pai e, sem piedade alguma, arrematou.

—Comadres, papai. Ele fabricava penicos.


Marcio Rutes


não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.