Geada em Curitiba / image by Google |
Existem três coisas que geram um fascínio automático em minha mente: um sorriso qualquer pela manhã, um par de olhos curiosos e a palavra “saudade”.
Era um inverno rigoroso, e minha mãe, que sempre gostou de acordar antes do sol nascer, me chamava muito cedo para ir à escola. Não era muito longe de casa, uns 40 minutos andando naquele passo de criança de nove anos de idade, e após o parco café da manhã, saíamos eu e minha irmã, cada um com seus poucos cadernos e com as mínimas roupas de frio que tínhamos, que eram totalmente inadequadas, para não dizer quase esfarrapadas. O calçado fino me faz lembrar até hoje do chão gelado e da sensação horrível e dolorosa que isso trazia.
Essas lembranças fazem par com o vento frio que nos cortava o rosto, resultante da geada que deixava tudo branco e com um aspecto belo, mesmo sendo insuportável para o corpo de uma criança com a nutrição bem desequilibrada. No meio da caminhada, surgiam do horizonte aqueles filetes de sol, que mais pareciam mágicos, misturando-se ao vapor que saia de nossas bocas quando expirávamos o ar dos pulmões. Aquilo era mágico, uma sensação única. Adiante, mais e mais crianças se juntavam a nós, e ao darmos conta, éramos muitos.
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Já perto da escola, sempre reparava uma senhora, de idade bem avançada, sentada em uma cadeira colocada quase fora de seu portão. Ela pouco se importava com o frio, e durante anos esteve ali, com sua face amarrotada e castigada pelo tempo. Seu cabelo estava sempre preso, e era esplendidamente branco, um verdadeiro algodão. Quando passávamos, ela nos mirava, de forma serena, e nos seguia apenas com aquele par de olhos curiosos. Ela sabia que na volta, passaríamos por ali e, como se ela não soubesse, pegaríamos escondidos algumas frutas de seu pomar. Ela sempre via, mas nunca nos reprimiu ou negou uma daquelas frutas.
Hoje pela manhã, ao passar nesse mesmo lugar, a nostalgia me tomou. Senti saudades daquele frio nos pés, por mais cortante e insuportável que ele fosse, e dos raios de sol secando o orvalho ou derretendo a geada. As árvores frutíferas não estão mais lá, sequer a casa está. Fiquei lá parado por alguns minutos, observando, até que veio em minha mente uma imagem daquela senhora. Lá estava ela, novamente, me olhando com aquele par de olhos curiosos. E é engraçado, pois foi somente hoje que lembrei da única vez em que a vi sorrindo. Foi em uma manhã de inverno, a única em que fui sozinho à escola. Ao passar naquele lugar, ela mirou-me diretamente nos olhos e soltou aquele singelo sorriso, único, o primeiro que vi vindo dela. E então, naquela mesma noite, fiquei sabendo que ela se fora.
Bah, que linda crônica, Márcio, um encanto essas memórias que anos depois nos trazem recordações, e porque não, saudades! Na verdade, essas lembranças são saudades de nós, quando crianças, protegidas, seguras e amadas. Saudades da convivência com nossos pais.
ResponderExcluirVocê contou tão bem, e transpareceu muito carinho (eu notei) pelas suas memórias afetivas. Texto leve, que leva a gente a pensar nas nossas memórias da infância, o período escolar que é muito marcante. E que também trouxe-me inúmeras saudades.
Parabéns muitas vezes!
Grande abraço, amigo.
Sempre procurei isso, Taís, tocar as pessoas com aquilo que escrevo. Mas, na hora de escrever, esqueço e só solto as mão, e flui.
ExcluirMinha infância não foi fácil, mas nem por isso me fecho para ela. Aprendi muito, e se hoje tenho alguma força frente às mazelas da vida, devo a esse período de aprendizado.
Grato, sempre, Taís.
Marcio
As sombras nos acompanham. Uma arrasta a outra que arrasta a outra. Depois as juntamos nos escaninhos da memória. E como são úteis esses escaninhos, o que nos contam em silêncio. E levantam outras sombras. E se torna um círculo virtuoso. A crônica da perspectiva de adulto flagra o menino de 9 anos, mas o olhar, a simplicidade e delicadeza da narrativa é do menino de 9 anos. E essa visita e os seus eflúvios mexe com o leitor, deixa-o entorpecido. É como eu fiquei ao chegar à última linha... Bateu um friozinho...
ResponderExcluirForte abraço, Márcio!
Convidadíssimo a vir sentir um friozinho aqui no sul, em pleno inverno, meu caríssimo professor. É só agendar... rsrs.
ExcluirQuando escrevo, procuro vestir o personagem, pois fica mais fácil dar vida a ele. Neste caso, não houve necessidade, pois era eu mesmo em reminiscências. Mas, mesmo assim, fiz questão de deixar o "eu, ainda guri", contar a história. Muito grato, sempre, Sant'Anna. Suas visitas são sempre muito aguardadas. Abraços.
Marcio
Depois de um texto muito engraçado onde contas as peripécias caracteristicas de lugares pequenos, de cidadezinhas do interior, como dizeis no Brail, onde toda a gente se conhece e onde todos estão prontos a ajudar no que for preciso; ajudam-se uns aos outros e por vezes surge uma enorme confusão da qual nem o sr, abade ( termo usado antigamente na minha aldeia ) escapava. Muito engraçado, amigo Marcio. Mas este novo texto onde, também a mim, me veio à mente logo a palavra saudade, já o riso transformou-se em nostalgia; falas do teu caminho para a escola, do frio, da pouca roupa e da alimentação insuficiente e eu revi-me em tudo isso. O inverno em Portugal é muito rigoroso e, quando era criança, ia para a escola agasalhada, mas não com casacos como os de hoje; não havia os acolchoados, não havia botas quentinhas, não havia aquecedores nem em casa nem na escola, não havia a merenda escolar e havia muitas crianças com fome; eu era uma privilegiada, não por haver muita fartura em casa, mas por sermos só dois filhos ; tinhamos o essencial e a comidinha nunca faltou. Havia muitos meninos que tiritavam de frio e os que não iam descalços, usavam uns tamancos de madeira, muitas vezes sem meias. Saiam de casa com fome e a ela voltavam com a mesma fome, esperando-os, na melhor das hipoteses um pão de milho cozido há muito tempo e uma " malga de caldo de couves " que as mães colhiam na horta de casa. Os filhos eram muitos, os trabalhos mal pagos e assim era a miséria das aldeias de Portugal, em tempo de ditadura. Nunca vi uma senhora sentada à porta de casa, olhando com carinho as crianças, mas havia muitas, também bondosas, que fingiam não ver aqueles que ousavam entrar nos quintais para pegarem as frutas caidas do chão. A minha mãe, apesar da pouca abundância, compadecia-se com algumas criancas, nossas vizinhas, com quem eu brincava e era uma satisfação tão grande ver aquele olhinhos brilharem quando, comigo, comiam uma paozinho fresco, algumas vezes com marmelada. Muitas senhoras dessas, bondosas, também já se foram, mas ainda há uma que, com mais possiblidades do que nós, ajudava muito a minha mãe, naquilo que ela precisasse. Sou amiga dos filhos desses senhores até hoje, assim como sou amiga daqueles que precisavam do pãozinho da minha mãe para matar a fome e que, hoje, felizmente estão bem. Recordamos, quando nos encontramos, esses tempos dificeis e, engraçado, não há mágoas, mas sinto que aquele pãozinho dado pela minha mãe fez muita diferença E é como dizes, Márcio, são estas coisas simples e muitas vezes sofridas que nos marcam para a vida. E sabes de uma coisa? Aqui, nesta cidade onde vivo, mora uma das minhas professoras que muito me ajudou; encontro-a muitas vezes e conversamos sobre esses tempos E a saudade bate. Que bem me fez este texto, Márcio. Muito obrigada e fica bem, com saúde e saudade dos tempis de infância que muito bem nos faz recordá-los. Beijinhos e b9a noite
ResponderExcluirEmilia
Emilia
Minha querida Emilia.
ExcluirSei que devemos viver mais o hoje do que o ontem, mas sempre que posso, estou com um pé no passado. Es por vezes, mesmo que eu não queira, as reminiscências me tomam.
Hoje tenho uma vida até tranquila, mas minha infância foi difícil. Mas, nem por isso, deixei de ser criança. Sei que meus pais, assim como os seus, fizeram o que podiam fazer, e por vezes, faziam até mais daquilo que tinham condições. E sabe o que eu penso? Acredito que, mesmo não tendo sido fácil, crescemos mais fortes do que essas gerações mais contemporâneas. Nós sabemos o que é pouca alimentação, vestimentas insuficientes... sabemos o que era escrever com um lápis que quase não conseguíamos segurar, de tão pequeno que estava. E o respeito? Tínhamos muito, fosse pela mãe, pai ou professor. E essa geração de hoje, que tem tudo e não sabem respeitar nada? Me preocupo muito com eles, como se portarão quando adultos. Mas, isso é outra história, não é?
Um lindo fim de semana pra tí, minha amiga. Abraços.
Marcio.
É Márcio, tudo isso nos ajudou a crescer e a enfrentar melhor as dificuldades da vida. Muito, muito obrigada, por teres respondido ao que deixei aqui como testemunho da minha infância, uma infância sem exageros, mas com muitos valores, sendo o mais importante deles, o respeito pelos mais velhos e pelos professores . Mais uma vez, muito obrigada e saúde para todos vós. Beijinho
ExcluirEmilia
Marcio,
ResponderExcluirEu estive lendo em blogs que aprecio
e vm do Pedro Luso e da Taís
e amboas falam algo sobre: tempo
lembranças e saudade.
Eu gosto dessas lembranças pois
nos remetem a momentos, gostos
e aromas do tempo exato que aconteceram.
Adorei ler hoje aqui e fazer aquele
percurso com Você.
Bjins de ótima quinta-feira.
CatiahoAlc.
Olá, Cátia. Eu e Taís andamos pensando de forma semelhante nos últimos tempos, tanto que, na próxima postagem, feitas ao mesmo dia (a minha e a dela), falamos sobre condôminos e suas, digamos, mazelas na vida em conjunto. Mero acaso.
ExcluirAgora, com relação a falar em tempo, passado ou futuro, é meu vício. Preciso me policiar para não ficar só nisso.
Grato, sempre, minha amiga, pelas visitas e comentários. Grande abraço.
Marcio
Olá, amigo Márcio,
ResponderExcluirsei que essa não é sua mais recente postagem,
mas depois que a Taís me falou sobre essa sua crônica,
resolvi comentar aqui.
Li com a maior atenção esta crônica que fala muito da sua
infância, e também daquela senhora idosa que você a viu
sorrir uma única vez. Esta sua crônica, caro Márcio, certamente
levou e levará o leitor a pensar na sua própria infância, tal é
o registro da sua, nessa bela e bem escrita crônica.
Gostei imensamente.
Um bom final de semana,
com saúde e paz.
Grande abraço.
Deus te ouça, Pedro.
ExcluirFalei, em certa feita, ao Sant'Anna (José Carlos), que há muito, refino minhas letras. Não é só compor ou escrever; não é só jogar letras no papel; não é só irradiar frases a esmo. Gosto de entrar na alma, tanto a minha, de meus personagens ou, ainda mais, de meus leitores. E você não tem ideia de como um comentário como o seu me toca. Me faz ver que meu tempo não foi perdido e que estou no caminho.
Grato, sempre, Pedro, por seus comentários de apoio e críticos. Fazem um bem danado. Abraços.
Marcio