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Maio de 2012, em algum condomínio residencial desse nosso enorme Brasil.
A pressa, muitas vezes, é inimiga de todos os atos, e quando aliada aos maus costumes, é ainda pior. Naquele prédio, chamado Reino da Dinamarca, parecia que todos tinham o péssimo hábito de apertar os dois botões de espera do elevador, independente para onde fossem. Quando a porta do elevador abria, pouco importava seu trajeto, e todos se enfiavam para dentro. O resultado era mais demora, e muita reclamação quando alguém entrava e constatava o trajeto contrário daquele que era pretendido. Porém, todos os moradores ostentavam certo status, nem sempre verdadeiro, mas ostentavam. E assim, fingiam que nada viam, e viviam alimentando-se meramente de aparências.
Certa feita, o elevador parara no décimo quinto andar e, como sempre, sacolejou um pouco. Ninguém deu atenção, e mais alguém entrou. Estavam, àquela altura, em cinco no mesmo ambiente, e todos faziam aquele semblante de quem olha uma paisagem, ou seja, miravam a tudo e fingiam não enxergar nada, apenas deixando o olhar se perder pelo horizonte. Na descida, outro sacolejo, e dona Emma, senhora de seus bem vividos 85 anos, suspirou.
―Só falta enguiçar! ―ela comentou, como se antevisse o feito.
Cinco segundos depois, um sacolejo maior e, bruscamente, o elevador parou. Dona Camélia, vizinha de dona Emma, blasfemou imediatamente.
―Pago esse condomínio para compartilhar espaços com essas bocas de sapo. ―fazendo clara referência à dona Emma em seu presságio.
―Gente, não vamos brigar! Já, já tudo volta ao normal. ―Guilherme, um janota de brechó e com sorriso amarelado, emendou rapidamente. ―Este elevador é seguro! Eu garanto!
Antes, nada tivesse dito. Bastou a frase ser proferida, e as lâmpadas se apagaram.
―Meu Jesus! Hecatombe!
―Quem falou essa asneira? ―Dona Emma perguntou, como se sentisse indignação pela ignorância que ouvira.
―Foi a Jandira! ―a resposta, em voz masculina, veio do fundo do elevador. ―Ela só sabe falar do “fim do mundo Maia”!
―Tinha que ser essa oxigenada! ―Dona Camélia completou, em tom zombeteiro. ―E você deve ser o traste do marido dela, que só sabe pagar as contas dessa perua descabida e mal vestida! Tá aí, com esse micro-vestido e acha que está trajada! Despudorada!
―Mais educação, gente! Se não podemos conviver harmoniosamente lá fora, ao menos aqui vamos manter o respeito até que alguém venha em socorro. ―tornou o janota, querendo amainar os ânimos.
―Ecaaaaaaa! Que cheiro é esse? ―Jandira perguntou e segurou no braço daquele que ela pensava ser o marido. ―To com medo, morzim. Não gostei do barulho deste cheiro.
―Jandira! Cheiro não faz barulho! E seu marido está para o outro lado. Eu sou o Guilherme! Mas, que este cheiro está horrível, isso está! Que foi isso, afinal?
―Foi essa desenxabida da Camélia! Deve ter almoçado batata-doce e soltou um pum! ―Dona Emma emendou rapidamente, em tom maldoso.
―Não solto pum. Sou chique. Eu flatulei.
Novo ruído, agora estridente, tomou o ambiente, e foi seguido de outro sacolejo, o que ouriçou ainda mais aos pobres náufragos do elevador. Repentinamente, todos ficaram em silêncio, e um silvo recortado e repetido se fez ouvir.
―Affff Maria, meu São Jorge dos Sovacos Peludos! E agora? Esse maldito cheiro de novo, e fez barulho, seu Guilherme. Viu como cheiro faz barulho? ―Jandira comentou, quase berrando aos ouvidos do homem que estava ao seu lado.
―Jandira, meu amor. O Guilherme está do outro lado. Eu sou o seu marido. Não precisa gritar, pois está escuro, e isso não diminui minha capacidade auditiva. Mas, honestamente, você está com a razão! Dona Camélia, por favor!
―Não foi ela, fui eu! ―Dona Emma respondeu, tomando as dores da outra senhora. ―To nervosa, e quando to assim, meus intestinos entram em pânico. E qual é o problema? Vou fazer de conta que o senhor nunca peidou pela vida afora!
―Aaaiiii! Quem me bateu? ―o janota berrou, nitidamente descontente e irritado.
―Fui eu, seu tarado! ―Dona Camélia também berrou. ―Que história é essa de apalpar meus seios?
―Não apalpei seio nenhum! Só queria apertar os botões do painel, sua maluca! E me bateu com o que, afinal? Com um cacetete?
―Não. Com meu bastão retrátil de metal, de 60 centímetros de haste. Mas para tarados, tenho outra coisinha aqui. Quer ver?
Uma faísca azul iluminou todo o ambiente, e veio acompanhada de um barulho esquisito, imitando uma descarga elétrica. A gritaria foi geral, e quando a luz azul cessou, o que se escutou foi o estatelar de alguém ao chão.
―Gostou do meu choque elétrico, seu mauricinho de quinta categoria?
―Dona Caméliaaaa! Foi o meu marido que a senhora estrebuchou! Ele enfarlicou, e nem um suspiro o tadinho soltou! A senhora matou ele! ―Jandira reclamou, meio soluçante.
―Errei? Não tem problema. Tem mais um pouco de carga. Vem cá, seu traste, que vou te mostrar a não abusar mais de velhinhas indefesas! Cadê você?
O ambiente iluminou-se novamente em um tom azulado, mas desta vez, ninguém gritou.
―Errou novamente, sua maluca! ―o janota respondeu, em tom zombeteiro.
―Mas acertei alguém! Quem foi? ―Dona Camélia mostrou-se reticente.
―Ah! Não! Quem soltou esse pum agora? ―Jandira perguntou, recuperando-se do susto anterior.
―Acertei a Emma! E meu Deus! Que cheiro de peixe podre é esse? Ela peidou de novo! Tudo culpa sua, seu tarado. Vem cá, que tenho mais um presentinho pra você!
―O que a senhora vai fazer agora? Tá maluca?
Diante da dúvida sobre o que Dona Camélia faria, o janota tentou sair para o lado e tropeçou, caindo e enroscando-se ao vestido de Jandira, que por ser pequeno e preso apenas na altura dos seios, foi basicamente arrancado do corpo da moça. Ela, agora nua e tentando se abaixar para socorrer o marido, desesperou-se ao perceber que alguém arrancara sua única peça de roupa. Sem saber o que fazer, apalpou o chão e agarrou-se à roupa de Dona Camélia, puxando com toda a força, mas voltou ao chão.
―Você está aí, seu tarado? Quer arrancar minha saia, é? Vou te mostrar a não abusar de uma donzela meio virgem! Toma! ―Dona Camélia também se desesperou, sem saber ao certo o que acontecia.
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Novo barulho, agora parecendo um spray ou algo do gênero. Em instantes, o ambiente foi tomado por uma nuvem extremamente ardida aos olhos, o que fez Jandira puxar ainda mais a saia de dona Camélia para baixo, até quase tirá-la. Dona Camélia não entendeu o que estava acontecendo e desequilibrou-se, sentando-se e espirrando novamente aquele líquido. Jandira levantou e levou com ela a saia da senhora idosa, enquanto o janota protegia o rosto com o vestido da moça.
―Que inferno foi esse que você espirrou, sua velha doida? ―o janota perguntou, arfante e tentando limpar o rosto.
―Spray de pimenta. E devolve minha saia, seu tarado, que eu saí desprevenida da cintura pra baixo!
―Não peguei sua saia. Tá maluca? To com um pano na mão, que nem sei o que é!
―É meu vestido, seu tarado! E me devolve, que também to sem nada por baixo. To peladinha aqui! ―Jandira suplicou, tateando as pernas de dona Camélia.
O reboliço foi geral e ninguém se entendia. E também pouco notaram que, lentamente, o elevador descia até o térreo.
Lá embaixo, Emanuel, o porteiro, já esperava o elevador com as portas externas abertas, e quando ele chegou, o que se viu foi algo inusitado.
―Pela madrugada! Minha Santa Clara do Elevador Quebrado! O que é isso? ―questionou o porteiro, que, de posse de seu telefone celular de última geração, filmava a tudo o que via.
No hall de entrada, várias pessoas também estavam boquiabertas. Dentro do elevador, o gás de pimenta ainda forçava seus ocupantes a manter os olhos fechados pela ardência.
Jandira estava completamente nua. O janota, com o vestido de Jandira aos olhos, dava a impressão de que cheirava o vestido da moça, e ela, com os olhos e a boca ardendo, passava a saia de dona Camélia pela boca, tentando eliminar o gás de pimenta que a incomodava. A moça, querendo se por em pé, segurava agora as pernas do janota.
Ao chão, o marido de Jandira, ainda desmaiado e estatelado, estava com a boca bem próxima à boca de dona Emma, que se mantinha deitada de barriga para baixo. O detalhe que mais chamou a atenção de todos, no entanto, foi justamente a situação de dona Camélia, que além de se encontrar nua da cintura para baixo, ainda esfregava o rosto em algum tecido para tentar, assim, limpar o gás de pimenta dos olhos. E o primeiro lugar que ela encontrou, diante de seu desespero, foi o tecido da saia que cobria as nádegas de dona Emma.
O murmúrio contagiou a todos, mas foi imediatamente contido por um barulho estranho, como um silvo que se repetia de forma entrecortada (outro pum de dona Emma). E logo, alguém professou em alto e bom tom.
―Camélia, minha véia. Não bastasse a pouca vergonha de eu descobrir que você é sapatão, vocês ainda poluem o ambiente com esse cheiro de gambá bêbado! Ecaaaaa. Quem comeu batata-doce?
No dia seguinte, uma nota enorme no jornal chamou a atenção do porteiro do prédio.
SIM, HÁ ALGO DE PODRE NO REINO DA DINAMARCA*.
*Príncipe Hamlet, em Hamlet, de William Shakespeare.
Marcio Rutes
rssssss, que diálogo trágico! Eu nunca fiquei presa em elevador,
ResponderExcluirgraças a Deus! Mas acontece dos ânimos se exaltarem. A senhora com problemas de "flatulência" pode acontecer, sim! Cruzes.
É, todos sabem um pouco desses condomínios, se não acontecem umas coisas, acontecem outras. No meu prédio tinha um adolescente que, quando seu time de futebol, num Grenal, Inter X Grêmio, ele ia para a sacada, em cima da nossa,
e berrava e vibrava como um débil mental. Que coisa horrorosa! Cresceu e parou.
Algum milagre qualquer...
Ótima crônica, Márcio, coisas da vida real!! rss
Grande abraço, bom fim de semana.
Olá, Taís. Essa foi inspirado em meu tempo de condomínio lá em Campinas/SP. Pensa em um prédio eclético, repleto de todos os tipos possíveis... e os piores possíveis. Esse é o problema. No fim das contas, penso que não nos moldaram para morar em conjunto. Grato pela presença, Taís. Grande abraço.
ResponderExcluirMarcio
Não; não nos moldaram para morar em conjunto!
ExcluirÉ rolo, é nitroglicerina pura!!! 😂😄😅
Abraços!!
A vida em um condomínio pode ser um barato. Como se trata, o nome já o diz, de um condomínio, reunião de várias famílias, pode-se imaginar a fauna que se torna quando todo ocupado. Há tipos vários ali encerrados. É possível escrever várias crônicas em que aparecerá o real e o imaginado. Depois de uma convivência relativamente longa por três condomínios poderia escrever um livrinho de contos a partir dos tipos que eu conheci. Por exemplo, o matador de aluguel. Se narro dois ou três episódios pedindo empréstimo do seu talento faria uma história com o real e imaginado que os leitores não saberiam separar o real do fictício. Só quem o conheceu exibindo, sem explicação, a escopeta que mantinha escondida no porta-malas do seu carro, com um riso escabroso, deixando-me com a orelha em pé. E eu o conheci. Acredite. Não conto mais detalhes.
ResponderExcluirVerdade é que você escreveu uma história que beirou às raias da loucura como se tal não fosse possível. Alguém dirá, é exagero do narrador... É nada. É que ainda não viu do que é capaz o ser humano...
Bem, gostei da sua narrativa. Você cria uma atmosfera tão angustiante com os tipos que rolam pelo elevador que saímos nos perguntando "Quantas loucuras já fiz nos limites dos metros quadrados do nosso condomínio?
Sabe, é melhor ficar por aqui.
Um forte abraço,
kkkk... meu estimado professor... o pior é que você foi direto ao ponto. Não imaginei nada. É claro que a cena não se deu a tanto, mas essa história realmente aconteceu, em Campinas/SP. Obviamente, algumas coisas brotaram de minha imaginação, mas o que é o cronista/contista sem essa verve de observar e transcrever? Floreando por vezes?
ExcluirMas, tem um detalhe, caro Sant'Anna... você, pegar emprestado meu talento de narrar? Endoidou? Eu é que preciso de seu talento. E ponto, pronto! rsrs.
Meu amigo, já havia lido seu comentário lá na Taís, que também escreveu sobre condomínios e condôminos (preciso escrever algo sobre essas palavras tão próximas, onde um acento ou uma mera letrinha altera completamente o sentido da palavra... me ajuda?) e me diverti muito.
Me perguntam de onde eu consigo criar enredo para meus contos... você acabou de me dar um... rsrs. E já tem outro da Taís, morrendo de medo de uma barata e o Pedro Luso, muito calmo, dizendo para ela preservar o bichinho... cotidiano. Grato, Sant'Anna, sempre. Abraços.
Marcio