terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

TODA UMA VIDA

 

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Todas as lembranças de uma vida estavam ali, guardadas naquele pequeno estojo de madeira, tão bem entalhado e cuidado. Ela o abriu lentamente, sentindo emoções vindas de tempos longínquos, e deixou os olhos se perderem no tempo, em uma profusão de odores e luzes que sua mente produziu, até que seus olhos voltaram para o estojo. Retirou dele um crucifixo de madeira, grande, presenteado por seu pai. Olhou ternamente para ele e o pôs de lado. Uma foto de sua mãe, amarelada pelo tempo, mas que ainda mostrava aquele olhar forte, de mulher guerreira, de mulher amiga e de esposa companheira. Saudades afloraram e fizeram lágrimas correrem por seu rosto.

Os minutos passaram e ela, indefesa diante das lágrimas, lembrava dos pais, da velhice deles e de quanto ela os protegeu, até que a morte os levou. Todo um filme passou por seus olhos, desde menina até o derradeiro dia, naquele cemitério cinza e sem vida. Mas, como o tempo passa, e quem está vivo precisa continuar em sua jornada, remexeu mais no estojo. Fitas de seda, três delas, uma rosa e duas azuis. E aquilo era uma felicidade, pois era costume em sua família presentear os amigos com aquelas fitas sempre ao nascimento de um filho. E seus filhos eram lindos, hoje casados, e todos com filhos.

Suspirou. Que bela família ela tinha. Porém, sentia falta de alguém, do homem que escolheu para amar e dividir a vida até os últimos dias. Mas, ele fora primeiro, e a saudade ardia no peito. Ela iria logo, sabia disso, e enquanto não chegasse sua hora, lembraria dele em cada instante. E assim, deitou-se. Esperou o sono tentar abrandar essa angústia vinda das recordações. Então, correu os olhos lentamente, recontando cada centímetro das paredes daquele asilo em que os filhos a haviam largado.


Marcio Rutes



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12 comentários:

  1. Que triste Márcio, nossa, foi como um balde de água fria na minha felicidade que estava tentando saltar. Mas foi bruscamente interrompida pelo seu doloroso conto...Mas sabe o que me deixa mais triste, agora dolorida de verdade? Que tudo isso que você narrou de forma tão contundente, é o que acontece de verdade, inúmeras vezes, em inúmeros lugares ao redor do mundo...Os filhos não ficam com seus pais até seus últimos dias, dando-lhes carinho e companhia...E é só disso que eles precisam para partir: um pouco de carinho.. :(
    Uma maravilhosa semana amigo e que tudo fique bem!

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    1. Bom dia, Dri. Confesso que prefiro fazer as pessoas darem risada, mas é necessário, também, mostrar a realidade, e nem sempre ela traz sorrisos. Ontem mesmo passei por uma situação complicada. Precisei acompanhar um senhor, já idoso, ao pronto-socorro, isso porque o filho simplesmente não liga para o pai. É tenso.
      Mas, te prometo... minha próxima publicação será mais leve, tá bom?
      Abraços, menina, e linda semana pra ti.

      Marcio.

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  2. Toda uma vida passada a limpo como se tal fosse possível porque há sempre "algo que está sendo esquecido". Por certo, recolher os pais em um asilo, albergue, abrigo para idosos, é sempre uma atitude extrema, dolorida, para quem vai ou para quem fica. Cada ser humano tem o seu figurino do qual não abre mão; e como é difícil o papel de julgador sem conhecer todos os meandros da família. Mas é sempre muito doloroso saber que o idoso vai passar seus últimos dias num abrigo... Nunca deveria ser a alternativa. "Nunca. Nem se Deus mandar, nem mesmo assim..." Mas a generosidade dos pais é sempre inexcedível... "Que bela família ela tinha. Porém, sentia falta de alguém, do homem que escolheu para amar e dividir a vida até os últimos dias", e mais não disse o narrador ou o disse para que o leitor soubesse do que é capaz o ser humano!
    O melhor talvez seja não botar o bloco na rua...
    Um abraço, meu amigo!

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    1. Meu bom amigo Sant'Anna, nem sempre se diz tudo, seja por esquecimento ou, até mesmo, de forma proposital. É necessário que se suscite a discussão, ou até mesmo que se faça o leitor pensar e criticar, interagir.
      Mas, indo para o texto, é, realmente, muito cruel depositar um idoso em um asilo, ou até pior, largá-lo à própria sorte em qualquer outro canto. Mas você observou muito bem quando disse "...e como é difícil o papel de julgador sem conhecer todos os meandros da família.". Há que se ver e ouvir todos os lados, e nem mesmo eu, autor, sei ou conheço todos os lados. Discussão pela frente.
      Grande abraço, meu amigo, e ótimo fim de semana pra ti e família.

      Marcio

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  3. El unniverso me empuja cuando no puedo dormir,agradezco que haya sido a tu casa,tu texto es precioso hasta el final que logra golpear el corazón.La sociedad ha avanzado en muchas cosas,sin embargo hay otras que se han liberado de llos afectos importantes,lamentablemente el ser humano se olvida de lo importante y sigue lo urgente equivocadamente.Segun mi pensar los padres deberian ser siempre importantes para sus hijos,acompañarlos hasta el final solo por amor y agradecimiento.(Si entregas valores y actuas dando amor,generalmente se de vuelve lo mismo y mas)Deseo que las estadisticas en este aspecto sean bajas y me alegra descubrirte en el mundo de bloguer.Te dejo mi abrazo fraterno desde este lado del mundo!

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    1. Menta, muito agradecido pela visita e pelas palavras ao meu texto.
      Realmente, é uma situação complexa e dolorosa. Os pais criam os filhos com todo esmero, e quando mais precisam, os filhos não querem ter tempo para cuidar deles. Mas, a justiça de Deus, em um dia qualquer, é feita, e esses mesmos filhos que depositaram os pais em um asilo, acabam sofrendo o mesmo.
      Muito grato por sua visita, e um ótimo fim de semana pra ti.

      Marcio

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  4. Olá Márcio
    Triste fim de alguém que amou e se dedicou toda uma vida.
    Mas amei a parte da recordação. Eu sou daquelas que também guarda tudo com muito carinho em um estojo de madeira!
    Achei tão delicada essa parte!
    Acho lindo guardar memórias de maneira concreta, eu na verdade tenho um caderno de recordações, onde colei cartas, lembranças,etc.
    Bom, vim aqui também pra dizer que meu blog agora está de casa nova: nome novo, banner novo, tudo novo.
    Você deve imaginar que eu não sossego né, mas é a mais pura verdade. kk
    Eu realmente não sossego com meu blog, mas olha agora é a última vez.
    abraços e bom fds.

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    1. Oi, Ciça... eita, menina que não sossega. Mas, a vida é assim, não é?
      Grato pela delicadeza das palavras em seu comentário, principalmente quando você fez referência à parte do estojo de madeira. Eu tenho pra mim que um conto, triste ou cômico, deve ser leve e ter essa parte mais delicada, que toca o leitor. Juro que me esforço pra conseguir levar até vocês algo que toque o coração, e depois desse teu comentário, vi que consegui. Que bom.
      Bom, essa foi a parte boa. Agora, vamos para a bronca que preciso te dar. Menina, cadê o parangolê lá no teu blog pra gente poder seguir? Esqueceu de colocar ou não quer que as pessoas vão até lá? Hein? rsrs...
      É brincadeira, claro (ou não :/ ). Mas tá faltando mesmo o app pra gente poder seguir você, Larissa. Coloca lá pros teus amigos poderem ter mais facilidade em te visitar? Abraços, menina. Lindo fim de semana pra ti.

      Marcio

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  5. Oi, Márcio, o fim dessa bela crônica é extremamente triste, mas eu sei de mim, o que fiz, o que não fiz. Cada um tem suas atitudes e não quero julgá-los, apenas digo que, quanto a mim, jamais levaria minha mãe ou meu pai a uma casa para idosos, asilo ou seja o que for. Não; essa incumbência de cuidá-los em sua velhice foi minha. Quando meu pai faleceu minha mãe ficou muito vulnerável, mulher ativa, guerreira...cuidou de mim em criança quando eu era vulnerável, eu tinha a obrigação de fazer o mesmo. Faleceu de mão comigo, no hospital. E eu, sentada numa cadeira, ainda escrevi uma carta de despedida. Chorando.
    Crônica perfeita, meu amigo, alcançou o objetivo...
    Os povo japonês é muito conhecido por cuidarem até o final de seus idosos.
    Grande abraço, Márcio!

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  6. Respostas
    1. Oi, Taís.
      Pensei tanto no que escrever. Escrevi, apaguei, escrevi novamente. Todos os comentários acima me fizeram pensar, e o teu foi especial. Dá pra escrever uma história inteira com o que você deixou. Triste? Não. Não é! Você viveu seus pais até o último instante, e o que você narrou me tocou demais. Espero poder fazer pelos meus o que você fez pelos seus. Tento tocar o coração das pessoas com o que escrevo, mas agora, aconteceu exatamente o contrário. Fui tocado... e agradeço imensamente. Grato, sempre. E se você me permitir, desta vez eu saio silencioso, sem assinar, somente agradecendo.

      Grato. Sempre.

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