domingo, 23 de abril de 2023

O BUTIÁ DE ALELUIA

 

Butiá - palmeira e fruto - by Google
Aquela caminhonete era enorme. Grande mesmo, totalmente fora dos padrões daquela cidadezinha de porte médio lá pelos lados do interior de São Paulo. Parada no estacionamento do banco, ocupava o espaço de dois carros muito grandes.

Seu Oscar, o morador mais ilustre de uma cidade próxima, desceu fazendo pose. As botas, de couro de crocodilo, brilhavam em parceria com a grande fivela do cinto que segurava sua lustrosa calça jeans, e que diga-se, era mantida sempre muito bem passada a ferro e, claro, com um aparente vinco nas pernas. A camisa era quem sofria. Branca e em estilo social, quase se arrebentava na altura da saliente barriga. Na cabeça, um chapéu de boiadeiro, daqueles de rodeio, e decorado com alguns butiás secos, fruto de uma palmeira típica da região. Seu Oscar ostentava sempre aqueles frutinhos, e dizia a quem quisesse ouvir que sua fortuna era devida a eles.

Logo depois de Seu Oscar, apareceu dona Aleluia, sua esposa. Ela fazia o estilo esguio, alta, e com os cabelos desgrenhados. O vestido longo, florido de lilás e azul, marcava bem as ancas largas, deixando para as mãos um par de luvas importadas, e que ela gostava sempre de gabar a procedência: Paraguai. No rosto, a maquiagem não era pouca, e em momento algum pretendeu a discrição.

E para completar a família, os 3 filhos: Cajuino, Equinócio e Perestróica.

Já diante do gerente especial que cuidava de suas contas, seu Oscar ordenou:

―Fio, invista naquilo que melhor me render. To quereno fazer uma viagem pra Poconé, no Mato Grosso, e adespois esticar pra minha fazenda. Não quero percupação com meu dinhero.

―Poconé? ―perguntou o gerente, tentando ser simpático ao extremo com aquele que era um cliente tão rico.

―Oxe! Tá achano poco? Intão jogue mais uns 10 mião junto. Si o sinhor acha poco, é purque sabe do que tá falano. O sinhor é a otoridade aqui.

O gerente sorriu, e meio sem jeito, explicou que fazia referência a cidade para onde seu Oscar viajaria. Mas, obviamente, aproveitou e jogou mais aquela soma para o investimento. E como queria agradar ainda mais ao cliente, resolveu servir um café e esticar a conversa.

―Mas, me conte, seu Oscar! Como o senhor fez para amealhar toda essa fortuna? Existe alguma fórmula que o senhor possa ensinar?

―Seu moço, num amiaiei nada não! Não pranto mio (milho), nem do branco, nem do amarelo! Eu trabaiei é muito. Eu e Aleluia!

―Aleluia, seu Oscar! Aleluia!

―Que Aleluia? Purquê falou ansim?

―Ué? Eu falei aleluia no sentido de “graças a Deus”!

―É! Foi cum fé e trabaio! Eu e minha Aleluia!

―Aleluia!

―Di novo? Purquê o sinhor só repete o nome da minha mulher? Pur acaso acha que ela trabaiô mais du que eu? Aliás, Cajuino só largava o enxadão quando chegava Equinócio! Era duro!

―O que? Não entendi nada! O senhor plantava caju nos equinócios de outono e primavera? Mas caju nem dá por essas bandas!?!

―Tá dando uma de abestado cum eu, é? Que caju? Cajuino é fio meu, o mais véio. Adespois veio Equinócio, junto com a Perestróica.

―Ah! Tá! Entendi! Me desculpe! Mas então, o senhor já estava casado quando veio a abertura soviética?

―Quem é essa muié que o sinhor falou? Essa tar Soviética? E purque ela veio aberta? Tinha ispinhéla caída?

―Hã? Como assim? Não, não! É que foi na abertura soviética que veio a perestróika!

―Vo ti dá um amansa corno nos beiço, já já, si o sinhor não parar de ofender minha famia! Perestróica é minha fia, e veio de Aleluia. A partera num era essa tar de Soviética, e nem muito menos tinha ispinhéla caída. Me arrespeite, tarzinho!

Eles se olharam fixamente por alguns instantes, e seu Oscar reparou uma gota de suor escorrendo pela face do gerente. O rapaz parecia perdido, e quem sabe sequer tivesse sido a intenção dele ofender assim. Então, seu Oscar continuou no relato.

―Bão! O começo foi dificir! Eu era bóia fria, e conheci a muié da minha vida. Aleluia!

―Aleluia! ... ops... perdão, seu Oscar. É a força do hábito.

­―...tá. ...sei. Mas como eu arrelatava, conheci Aleluia! Ela morava numa área de terra muito ruim, coberta com esse tar de butiá, uma parmera que eu nunca tinha visto lá donde eu vim. No começo, quando casamo, eu cuidava da terra e era servente de pedrero, enquanto Aleluia colhia e vendia butiá. Logo adepois, veio uma estia grande, cum tudo seco pur tudo canto, e pur um acaso de Deus, nossa porpiedade foi a única que manteve um poco de água, mas como nóis num prantava muita coisa além daquelas parmera, e nem criava gado, passemo a usar a água pra moiar só as parmera. Ficou uma belezura, e a gente viu que só nóis fiquemo com essas parmera na região. Aleluia! Aleluia!

Seu Oscar calou, e como percebeu que o gerente não iria falar nada, retomou a palavra com certa irritação.

―Tá mangando di eu, é? Falei aleluia, em gardecimento, i o sinhor num vai arresponder não, seu abestado?

―Aleluia, aleluia! ―o gerente respondeu rapidamente, sem entender nada.

―Mior ansim! Mas, enfim, o tempo passou, e nossos butiá começaro a fazer o maior sucesso. Era os butiá de Aleluia, como o pessoar falava. Inventemo suco, doce, artezanato cas foia, pinga e inté licor. Era o Licor do Butiá da Aleluia.

―Mas que maravilha! Parece muito bom, seu Oscar!

―É muito mior du que o sinhor pode pensar! Num tem ser vivente lá no vale das Parmera, donde moramos, que já num tenha dado umas beiçada no butiá da minha mulher. Só o padre é que é um chato! Nunca bebeu o licor que sai do butiá dela.

―Como assim? Não entendi!

by Google
―É que o padre é meio chato. Ele acha o licor do butiá da minha mulher um poco grosso. Diz ele que tem chero forte. Mas o padre é danado. Não posso virar as costas que lá tá o padre cá vara na mão, esfregando no butiá da Aleluia, e pronto pra comer o butiá da minha mulher. É eu sair de perto e ele soca a vara no butiá dela, sem dó!

―Como é? Não to entendendo!

―Ele mete a vara no cacho. Pior é que ele judia do butiá dela cum isso. Mas o fato é que si temos o que temos hoje, devemos ao butiá da Aleluia. E que butiá gostoso. Butiá grandão! O senhor quer provar?

―Provar o que? Como assim?

Seu Oscar, repentinamente, levantou-se e procurou por sua esposa. Quando a enxergou, soltou um assobio, o que chamou a atenção de todos, e começou a falar alto, bradando pela esposa.

―Aleluia! Aleluia!

Sem entender nada, os outros clientes, em coro, responderam:

―Aleluia! Aleluia!

Seu Oscar olhou todo sorridente para o gerente do banco, e falou baixinho:

―Mas, óie, seu tarzinho. Viu como todos bradaram o nome de minha mulher? Todos eles já devem ter comido o butiá dela! Que orguio qui eu tenho!

Ainda sorridente, virou novamente para onde estava a esposa, e continuou falando alto.

―Aleluia, mande Cajuino ir até Equinócio, e traga a cesta. Hoje, todos os que estão aqui vão comer teu butiá, mulher. E o melhor, de graça. Eu to feliz, e todo aquele que quiser comer o butiá de Aleluia, pode fazer fila aqui. E guarde um butiá bem graúdo, que é pro seu tarzinho aqui poder se lambuzar no teu butiá, mulher.

―Seu Oscar, por favor! O senhor está passando dos limites!

―Ara, tarzinho! Se o sinhor num é chegado num butiá, minha fia tem umas vaquinha de leite. Já provou o leite da Perestróica?

―Mas isso já é o cúmulo! Que pouca vergonha! ―o gerente gritou, indignado. ―Eu não quero comer o butiá da sua mulher. Não quero comer o butiá de ninguém aqui, nem o butiá dos seus filhos e nem o seu! Se eu quiser comer butiá, como o meu, mesmo sendo difícil, mas mantenho o respeito! E também não quero saber do leite da perestróica da sua filha! Que pouca vergonha!

O gerente gritava e se agitava, até que percebeu que todos olhavam para ele de uma forma esquisita. Foi quando o filho de seu Oscar apareceu diante dele com uma enorme cesta, cheia dos frutos de que seu Oscar tanto falava.

―Ah! Então são esses os butiás de sua mulher? ―o gerente aquietou-se, completamente corado e percebendo que seu julgamento estava totalmente equivocado com relação àquela discussão.

―Mas é craro, soh! De quar butiá intão o sinhor acho qui eu tava me arreferindo?

―Nenhum, seu Oscar! Nenhum! E ainda bem que o senhor não planta caju, pois eu até imagino como seria complicado comer a castanha do Cajuino. Que confusão. Acho que me perdi nessa bagunça toda de nomes! Devo confessar que eu cheguei até a sentir que algo meu ficou apontando para um equinócio de primavera, mas foi por pouco tempo!

―O qui o sinhor tá arresmungando aí, seu tarzinho? Num to intendendo nadica!

Alho - by Google
―Bom, por sorte o seu nome não segue o padrão de complicação do restante de sua família.

O gerente, completamente corado, sentou-se. Mais calmo depois de alguns minutos, retirou alguns papéis da gaveta e começou a analisar, até que viu algo estranho.

―Seu Oscar! Me parece que houve um erro de digitação aqui nos documentos. Seu nome está incompleto. Está apenas como “Oscar A.”. Qual é seu nome completo, afinal, seu Oscar?

­―Ah, seu moço. Meu nome é uma belezura em homenagem ao melhor fruto da terra. É Oscar Alho. E falando nisso, dizem na minha terra que adespois de dar umas lambidas no butiá da minha mulher, a melhor coisa que tem é sapecar e comer um alho bem suculento. Dizem que o cheiro é uma dilícia!

―Eu mereço! Eu mereço! ­―o gerente suplicou, desanimado.



Marcio Rutes


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8 comentários:

  1. Não iria acreditar em uma só palavra desta história. Mas...
    O vinco numa calça jeans. Um sujeito que se veste com calça jeans bem vincada é realmente alguém que me faz acreditar em cada palavra aqui muito bem escrita!
    O riso veio fácil nesta leitura! E agradeço por isso.
    Um abraço
    ana paula

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    1. Oxe... e um personagem assim, do porte de Seu Oscar, iria utilizar uma calça sem vinco? Parece que nem conhece meu estilo, Ana!?! rsrsrs...
      Aliás, mais alguém, além de você e eu, sabe o que é um vinco em uma calça? To começando a achar que o tempo tá passando meio rápido para mim!
      Ana, vocês vão viajar, e pelo visto a viagem é longa. Vai e aproveita, mas volta logo, pois você faz falta nos blogs. E que bom que você soltou umas risadas nessas minhas palavras amontoadas. Fico feliz quando faço alguém rir ou sorrir. Vão, e voltem, com Deus. Abraços, menina.

      Marcio

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  2. Um conto muito bem engendrado,Márcio e estou rindo aqui do pobre gerente
    embasbacado com o butiá da Aleluia., que fez a famíla do sr,Oscar 'enricar' rs
    e sabe que esses coquinhos eu conheci quando morava no interior e o nome
    era babaçu,cheio de fibra, ninguém gostava.
    Muito boa leitura , sabes bem prender o seu leitor. Que venha outros ,bem
    humorados, assim , Um abraço e boa noite,amigo

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    1. Oi, Lis.
      Acredito que os "coquinhos" a que você se refere não seja o mesmo "butiá" do meu conto. O Butiá até tem um pouco de fibra, mas nada que atrapalhe. O butiá tem muita polpa, e o sabor é quase exótico, mesmo sendo natural de nosso solo. O babaçu que você cita me parece ser o Jerivá, esse sim muito fibrento, e de uma palmeira bem mais alta. O butiazeiro é baixo, não passando de uns 2,5 ou 3 metros de altura.
      Deus abençoe esse nosso Brasil, de tantas e tantas variedades que fica até difícil escrever sobre elas... rsrs.
      Grato, sempre, Lis. Suas palavras são sempre um afago para quem escreve. E vem mais conto cômico sim, tanto que essa família maluca já tem uma continuação. Abraços, menina. E ótima semana pra ti.

      Marcio

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  3. Olá, amigo Marcio, lendo esse seu conto, tão bem
    construído e com tema que diz muito bem do nosso
    povo do interior, que vive em sítios e fazendas, com
    suas linguagens características, mas não apenas isso,
    também com modos de vida diferente, que não esconde
    a sabedoria adquirida com o passar do tempo de cada um.
    Uma construção com muito humor, mas que conta o lado
    sério da vida deles.
    Com muito gosto li esse seu conto, caro Márcio.
    Uma ótima semana,
    Abraços!

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    1. Bom dia, Pedro.
      Todo humor acaba nascendo de algo sério. E não podemos viver apenas de casmurrices ou fatos que nos afetem negativamente. Por isso, sempre que posso, tento fazer as pessoas darem risada. Mas, é uma arte complicada de ser feita.
      Grande abraço, Pedro, e ótima semana pra ti.

      Marcio

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  4. Olá Márcio
    Vim te dizer que já me decidi
    Não vou ter um jardim mas sim uma florzinha somente
    em um vaso no meu quintal.
    Como a florzinha do pequeno príncipe ela vai me ser muito especial.
    Amei seu conto, pois me fez lembrar minha vida na roça quando eu era criança.
    Como é boa a vida no interior de Minas e na roça, tu nem imagina,
    é bão demais,
    abraços e boa semana!

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    1. Olá, Ciça.
      Muitos não conseguem enxergar uma flor dentro de um jardim inteiro, enquanto outros constroem um jardim no peito observando uma única flor. Isso vai muito da pessoa e da sensibilidade que ela carrega e com a qual tratam tudo a sua volta. E você é extremamente sensível. Elétrica demais, claro, mas muito sensível. Que venha a florzinha.
      Grande abraço, menina.

      Marcio

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