segunda-feira, 17 de abril de 2023

VALENTINA E A LUA NEGRA

 


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Valentina ouviu as vozes da consciência, e pensou ser o momento de retomar o controle de seus dias. Valentina, então, parou na esquina do destino e olhou para todos os lados. Olhou também para cima e para baixo, e não viu nada de novo além de seu rosto refletido na poça d’água. E Valentina entristeceu.

Seu porte de mulher altiva estava murcho naquele instante. Superar uma história que estava tatuada em seu seio era uma meta, e virar a página de um amor, o seu intento mais imediato. Conseguir tais feitos, no entanto, era algo que corroia seu coração e atiçava seu metabolismo.

Esquecer um amor. Seria possível? Transpor um rio repleto de crocodilos ferozes talvez fosse até mais fácil do que arrancar um sentimento que criara raízes tão profundas pelo corpo. Um amor que invadira cada célula de seus órgãos, sem sequer pedir licença, certamente não cederia assim, do dia para a noite.

Valentina procurava nos rostos que passavam naquela esquina um complemento para a angustia que sentia. Ela não era a única, não poderia ser. E Valentina chorou. Chorou sim, mas já nem sabia se por amor, por saudade, se por tesão ou, ainda, pela raiva que brotava de seus olhos combalidos. Ele não valia aquelas lágrimas, ela sabia disso, mas, mesmo assim, ela as derramava ao chão. A sujeira daquela viela era até mais digna daquele despejar de agonia, pois ao menos o chão a sustentava ali parada, sem cobrar nada, sem acusar, sem impor limites absurdos ou, ainda, sem castrar seus sentimentos.

Algumas pessoas invisíveis passavam por ela, munidas de pedras nas mãos. Valentina olhava diretamente para os olhos daquelas pessoas e via, unicamente, desprezo. Era aterrador saber que a castigariam por um crime que não quisera cometer. Crime? Sim, Valentina era criminosa. Cometera o crime de não se valorizar, de não se levantar diante da inescrupulosa mente dominadora de um homem que a queria sob sua tutela. Cometera o crime de amar sob qualquer circunstância, mais do que a ela própria.

Ao chão, uma coroa de espinhos roçava em seu tornozelo, e no retumbar das vozes, ela pensou ter escutado alguém proferir: “paga por teus pecados e carrega tua cruz”. Mais adiante, surgiu um edifício que se perdia para cima, e lá no alto, três cruzes esperavam seus condenados.

Valentina rodou o olhar, e reparou uma turba se amontoando ao seu redor. Ela, desesperada, pensou em correr, mas suas pernas estavam pesadas e não conseguiram mantê-la em pé. Caiu de joelhos e, sem esboçar reação alguma, foi encoberta por aquelas pessoas estranhas e desordeiras.

Em instantes, algumas pessoas levantaram Valentina no ar e a carregaram para o edifício que sustentava as três cruzes. Cantavam, gritavam e agitavam lenços vermelhos. Do horizonte, sem nuvem alguma, brotava uma lua negra, circundada de uma auréola branca e aparentemente fria. O ambiente foi tomado por uma corrente de ar espessa, como uma névoa densa e que vertia diretamente do corpo de Valentina ao ser carregado.

Valentina, no entanto, continuava exatamente no mesmo lugar, ainda de joelhos. O que aquelas pessoas carregavam então, se ela estava ali, sem sequer ter sido tocada?

Ao olhar novamente para aquele grupo, Valentina assustou-se. Não era ela, e sim um homem quase transparente e completamente desesperado. Era ele, seu amado. Ela, inquieta, levantou-se e tentou correr até ele, mas foi contida por uma barreira invisível que se formou em pleno ar. E assim, as pessoas se foram.

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Algum tempo depois, no alto daquele edifício, três homens ocupavam as três cruzes, e em cada uma delas, uma labareda brotava flamejante. Não havia, no entanto, arrependimento naqueles três homens. E sequer eram três homens. Era apenas um, ladeado por suas consciências, a boa e a má. Duas cruzes queimaram instantaneamente, enquanto a terceira, que estava a direita, permaneceu intacta. Não existia, nela, essência alguma. Não havia o que queimar, pois ela era vazia. Era a parte boa daquele homem, mas era somente isso, uma casca sem nada dentro.

Lá embaixo, as mãos de Valentina sangravam. Próximo a ela, um daqueles lenços vermelhos que as pessoas agitavam caiu suavemente, e serviu para que ela estancasse o sangramento em uma das mãos.

Valentina despertou pela manhã, apavorada. Um sonho, um terrível e cansativo pesadelo. Seus olhos, ainda receosos, percorreram todo o quarto. Tudo em seu devido lugar. No coração, uma sensação estranha de tranquilidade. Pensou naquele homem que ela tanto amou e que a fez sofrer, mas sequer lembrou de seu rosto. Não conseguia lembrar, por mais que se esforçasse.

Aquele pesadelo teria sido uma ferramenta para fazê-la exorcizar a amargura que sentia? Não desejava mal algum a ele, mas gostaria de esquecê-lo. E se o que sonhou a ajudou a retirar do coração aquele que tanto a fez sofrer, então que assim fosse.

Pela janela, o sol e o vento brincavam com a cortina. Ela pensou em levantar e ir para a cozinha, mas ao se apoiar na cama, sentiu uma dor horrível na palma de uma das mãos. Olhou-as e viu alguns riscados na pele. Ao aproximar os olhos, reparou várias pontas de espinhos cravadas profundamente. Quando levantou o olhar e mirou a estante que ficava diante da cama, foi acometida por um sobressalto. Lá, jazia algo que a fez mergulhar novamente naquele pesadelo. Uma coroa de espinhos, parcialmente queimada. Ao lado, um lenço vermelho manchado de sangue.

Marcio Rutes


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14 comentários:

  1. Olá, amigo Márcio, sempre que leio um conto bem escrito,
    como esse seu conto, vem-me à memória um ou outro contista famoso,
    como você sabe, desta vez ao acabar de ler a sua narrativa, preso que estava como leitor, ao sofrimento da Valentina, esta forte personagem, ocorreu-me, como estava dizendo, um nome que prezo muito, por duas razões: a qualidade de seu conto e a influência que teve como contista. Estou falando do escritor mexicano Juan Rulfo,
    que contribuiu em boa parte para a escrita de Gabriel Garcia Marques. Então, amigo Márcio, essa lembrança ocorreu-me pela boa qualidade deste seu conto, do amor de Valentina, amor frustrado e do seu pesadelo que muito enriqueceu a sua história.
    Aplausos para o contista!
    Um forte abraço e uma boa semana, com muita paz;

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    1. Julio Cortázar, um dos expoentes dos contos, era um dos grandes admiradores de Rulfo. Infelizmente, este último deixou publicado apenas dois livros, mas, mesmo assim, e com seus trabalhos de bastidores, influenciou toda uma nova era na literatura. Uma grande citação, Pedro.
      Sempre muito bom ter você por aqui, admirador que é do universo dos contos. Grande abraço, Pedro. E que venha o frio para nossas paragens aqui do sul. Ótima semana pra ti e família.

      Marcio

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  2. Oi Márcio, não é muito comum ler postagens longas por aqui nos blog's.Estamos numa fase de conteúdos resumidos entregues de bandeja na internet , e nos celulares cada dia com capacidades mais gloriosas. Quem como eu que lê livros com 950 páginas gosta também de crônicas e contos longos .Mas ,com certeza há de se educar o cérebro para leituras mais demoradas porque o efeito moderno é subistiruir os filmes pelas séries em doses pequenos ,por capítulo.Eu já viciei nesse modelo rs E quando sou surpreendida com um conto que me leva até a frase final, é muito prazeroso.A saga da Valentina e rica em situações bem reais nos nossos dias (os pesadelos de amores desencontrados) ,e você sim construiu de uma forma surreal numa narrativa poética.
    Parabéns, gostei muito e fica o abraço,desejando que a sua semana seja boa.

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    1. Olá, Lis.
      É bem verdade. Os textos estão encurtando, e não tanto motivado pelos autores, mas sim pelos leitores, que estão cada vez mais ávidos por leituras rápidas e mastigadas. Como alguém envolvido na área publicitária, mais especificamente na redação, não me assombro com isso, e tenho até certa facilidade para tal, mas, honestamente, na hora de escrever, o lado contista (e bem expansivo) fala mais alto.
      Já nos conhecemos de outros tempos, lá do meu finado blog Abismo das Vaidades (que depois virou De prosa Pro Vento), e sempre publiquei crônicas e contos mais longos, e por isso perdi inúmeros seguidores. Dos que ficaram, um bom número sequer lia, mas queria fazer audiência, e daí já viu né!?! Bateu aquele desânimo. Hoje, prefiro ter um número menor de seguidores, um grupo mais seleto, mas que gosta de contos e crônicas mais longas, e que realmente lê antes de comentar. O engraçado é que meus comentários nos blogs que sigo são, não raro, muito maiores do que os textos publicados.
      Lis, grato pela visita e pelo carinhoso comentário. Muito bom ter reencontrado você pelos blogs amigos. Abraços.

      Marcio

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  3. Ola! Teu conto é escrito a sangue pelo punho de Valentina.

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    1. Olá, Ana. Me sinto muito honrado com sua visita.
      Talvez não é escrito com sangue, mas sim com a indignação dela após perceber que sua vida estava, literalmente, terminada, isso frente a subserviência a qual ela se entregara. E isso acontece muito, e quando se tenta reagir, já é tarde demais. Mas, quando se consegue reagir, o remédio é amargo e difícil demais para engolir. Uma pena que tudo isso exista, mas é o que mais vemos por ai, nos noticiários.
      Grande abraço e um ótimo fim de semana pra ti, Ana.

      Marcio

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  4. Olá Marcio, como vai? Eis-me aqui em pleno feriado de Tiradentes e a sua narrativa , esse conto tão emblemático me fez pensar e imaginar tantas coisas. Eis o poder das letras e da leitura, pois quando é feita com calma, podemos observar e reconhecer cada detalhe cuidadosamente deixado pelo autor na certeza de que seus leitores encontrarão e reconhecerão todos os desafios propostos.
    No princípio, quando começou a narrar as características da Valentina, pensei estar em um livro do Stephen King, particularmente do "O Iluminado"que depois até o cinema adaptou em uma obra prima cinematográfica que fez com que eu passasse a ter medo do ator Jack Nicholson...rsrs Talvez pela cara assustadora natural dele ou melhor, pelo talento como ator que é incomensurável.
    Mas voltando, como o conto é intrigante. De uma vida de intenso sofrimento, Valentina vai conseguir se desvencilhar e tomara que tudo corra para esse propósito!!
    Aproveito para agradecer suas presença em meus pequenos blogs que ficaram muito mais animados com a sua participação.
    Um grande abraço e um final de semana maravilhoso!!

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    1. Oi, Dri.
      Conheço algumas pessoas que nutrem o mesmo sentimento pelo Anthony Hopkins, isso por conta de O Silêncio dos Inocentes. Mas são dois talentos inenarráveis, tanto o Jack quanto o Anthony.
      E me é de muito grado você ter citado Stephen King em seu comentário, que é alguém que fez parte de uma fase de minha vida. Já no conto, busquei muito a catarse da personagem, no caso, Valentina. Mas, no meio do conto, reparei que apenas uma catarse não seria suficiente, pois dentro de minha cabeça a situação dela era muito densa e profunda. Foi quando precisei lidar com a subserviência que ela carregava. Te garanto que não foi um texto muito fácil para ser escrito. Mas vou aliviar na próxima postagem (spoiler), que será uma comédia. Bom, será uma comédia, mas vai mexer com os neurônios de alguns... rsrs.
      Abraços, menina. E tudo de bom nesse fim de semana. E tem um miauuuu meio "eclipsado" que o Farofa tá te mandando. Bixim tá até vesgo de tanto dormir por causa do frio.

      Marcio&Farofa

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  5. Mas báh, Marcio, que conto, amigo, li duas vezes na maior calma e percebi várias coisas nas entrelinhas que não teria percebido se lesse mais rápido. Há contos que precisamos entrar nele, até vestir-se do personagem! E você foi muito sensível narrando um amor que não vingou, apesar de Valentina ter feito força. E quantas 'Valentina' existem nesse pobre mundo, amigo? Quantas sofrem e ainda se culpam? Carregam essa culpa do fracasso por muito tempo.
    Aquela parte da coroa de espinho é forte e muito compreensível. Mas essa é a história de muitas mulheres, estão rodeando o mundo, mas também estão evoluindo. Conto de muita sensibilidade, vi a psicologia própria das mulheres sendo contada muito bem.
    E digo então que você retrata muito bem essas coisas, situações e conflitos da vida real, e claro, você usou aquele pesadelo que clareou muita coisa ao leitor.
    Aplausos, meu amigo, muito bom ler conto assim.
    Bom feriadão, muita paz.
    Grande abraço.

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    1. Olá, Taís. Preciso confessar que não escrevi esse conto sozinho. Ele é baseado na história e relatos de uma amiga, lá dos anos de 2008 ou 2009, e que sofreu muito com isso. O que fiz foi pegar os relatos e traduzí-los para o conto. Mas nem por isso foi fácil. O nome Valentina, claro, é real... sim, é real! Mas poucas pessoas a conheciam pelo nome verdadeiro. A conheciam como... rsrs. Essa parte fica para mim.
      O que posso dizer é que, mesmo com o passar de muitos anos, ela ainda se ressente de muita coisa que deixou de fazer, mas se livrou do cidadão.
      E são tantas Valentinas, não é, Taís? Tantas!
      Um lindo fim de domingo pra ti e família, Taís. Grande abraço.

      Marcio

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  6. Pois é, Marcio, a vantagem de vir por último é que, quase tudo, foi dito sobre sua narrativa. Escrevi inicialmente vigorosa narrativa. E o é. Não ficou uma entrelinha que não tenha sido devassada pelos seus leitores. Você os domina. Ou melhor nos domina. Nos aprisiona como o amor aprisionou Valentina. Cortázar ficaria orgulhoso, sim, ao lê-lo e perceber que não há adiposidades nas suas narrativas, tudo é essencial, e o leitor à medida que lê, constrói a história de Valentina ou reconstrói, pois ainda que narrada, ela vai se costurando, entrelaçando com as imagens que se formam com a leitura, montando os quadrinhos, animando-os na sequência que convém. Solta a imaginação e conjuga-a a outros eventos que fervilham em sua cabeça. Como disse Taís, ainda há muitas Valentinas que os pesadelos não resolveram seus traumas de amores não resolvidos...
    Muito boa a narrativa. Já o disse. Você é um excelente narrador, um criador de atmosferas que não assustam, antes encantam , seduzerm...
    Um bom domingo,
    Um abraço,

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    1. Esse é um dos meus poucos contos baseados em fatos reais, e de uma pessoa "próxima". E foi um dos mais difíceis de escrever, Sant'Anna. É complicado quando você precisa de um desfecho, mas está preso ao "fatos reais". Não sei como Cortázar lidava com isso, mas, para mim, foi complicado. Sem contar que, como citei em respostas anteriores, a personagem de Valentina (nome real) pareceu criar vontade própria. Inúmeras revisões e, com isso, muitas mudanças no texto. Tenso.
      Grato, meu amigo. Grato sempre por suas críticas pontuais, por seus elogios e, claro, pelo estímulo para continuar.
      Grande abraço e um ótimo fim de domingo pra ti e família.

      Marcio

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  7. Um artista nas palavras nos entrelaçamentos de sentimentos e emoções. Criar uma personagem forjada a ferro e esta mesmo se tornar frágil, amorosa e movida por uma empatia não permitida para os mais céticos e durões defensores do amor sem dor. Mergulha-se no seu conto e cria-se um amor pela Valentina e com ela viaja pelos momentos mais dolorosos e num ápice, você nos tira de um pesadelo e suspiramos boquiabertos diante da misericórdia da Valentina. Uma arte a ligação como o Monte Calvário, que só grandes escritores poderia nos levar.
    Sem palavras amigo e só aplaudir.
    Um abração e feliz semana iluminada.

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    1. Como relatei acima, na resposta para a Taís, esse conto é baseado em uma vida real, Toninho. E de alguém que era lá do nosso círculo de blogueiros. Claro que não vou expor a pessoa, mas era alguém muito próxima a nós. Lembro que na época fiquei muito envolvido com a história, pois passei a ser um confidente de tudo. E creia, foi muito difícil escrever esse conto, pois a Valentina personagem parece ter criado vida própria. Foi um de meus textos que precisou de muitas revisões, e em cada uma delas, muita coisa mudava. Talvez tenha sido uma catarse tanto para ela quanto para mim.
      Meu querido amigo "Profeta Itabirujo", um abração, e que saudade daquela época. Fica bem, meu amigo, e ótimo fim de domingo pra ti.

      Marcio

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