Lincoln Continental 1961 - by Google |
A secretária, com aspecto entristecido, entrou no escritório para dizer adeus ao patrão. Ela, uma senhora de seus bons 50 anos de idade, trabalhara ali por toda uma vida. Viu o patrão, Jacob, levar aquela distribuidora de cereais a se transformar em uma das maiores exportadoras de alimentos enlatados e grãos do estado de Goiás.
Ela era apenas uma menina de 15 anos quando foi contratada pela cerealista. Começou na faxina, e com paciência e dedicação, logo estava no escritório, lado a lado com a chefia. E agora, chegava o momento de se despedir não de um patrão, mas de um amigo. Ficou ali, olhando e lembrando a trajetória de vida daquele homem.
Jacob herdara do pai tanto o ofício de comerciário quanto a empresa, que já detinha boa carteira de clientes, e não decepcionou. Ele era conhecido como um patrão austero e exigente, mas era acima de tudo justo e íntegro e não se fazia de rogado ou preguiçoso. Arregaçava as mangas e ia para o pátio sempre que era necessário. Trabalhava lado a lado com os serventes na carga e descarga dos caminhões, e com isso, adquiriu o respeito máximo de todos naquela empresa.
Jacob herdara do pai tanto o ofício de comerciário quanto a empresa, que já detinha boa carteira de clientes, e não decepcionou. Ele era conhecido como um patrão austero e exigente, mas era acima de tudo justo e íntegro e não se fazia de rogado ou preguiçoso. Arregaçava as mangas e ia para o pátio sempre que era necessário. Trabalhava lado a lado com os serventes na carga e descarga dos caminhões, e com isso, adquiriu o respeito máximo de todos naquela empresa.
Jacob era tradicionalista ao extremo. Detestava tecnologia e, se possível, vivia enfurnado entre as quinquilharias que adquirira no correr de seus 70 anos de vida. Mantinha em sua empresa o departamento de “guarda-livros”, e por muito pouco não obrigava esses profissionais a utilizar caneta-tinteiro e mata-borrão. Pura birra. Seu automóvel, um Lincoln Continental 1961 original, era seu xodó, e em cada fim de semana, ele ia com seu carro brilhoso ao barbeiro e ao alfaiate.
Mas Jacob teve dois filhos, e estes ele não conseguiu educar em sua rotina tradicionalista. Hoje, Jacob se surpreende com a facilidade que eles possuem em ter tudo de forma imediata e integral. Informações que ele, Jacob, levaria semanas para levantar quando iniciou sua vida profissional, os filhos conseguiam com meros cliques em um teclado de celular ou computador. Mas Jacob se mantinha irresoluto. Fazia as coisas do jeito que sabia e, principalmente, de forma segura. Os filhos que ficassem com seus investimentos na bolsa e suas especulações em outras áreas financeiras. Para o pai, o que os filhos faziam era, além de arriscado, um jeito preguiçoso de ganhar dinheiro, e ele não gostava nada daquilo.
No entanto, dizem que “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. E um dia, furou mesmo. Os filhos perturbaram tanto ao velho pai, que ele cedeu à pressão. Automatizou parte da empresa, comprou computadores, contratou funcionários especializados e conhecedores de modernidades, demitiu, contra sua vontade, parte dos funcionários e, mesmo a contragosto, adquiriu um telefone celular. Os lucros aumentaram e Jacob teve que admitir que aquilo não era algo tão ruim. O empresário passou a deixar parte dos lucros a cargo dos filhos, para investimentos na bolsa e em outras áreas que eles tão bem dominavam com suas tecnologias. E assim, Jacob passou a ser um investidor moderno, com presença até na bolsa de Nova Iorque.
Certo dia, Jacob foi pego de surpresa com o pedido de um dos filhos. Uma empresa em Taiwan iria lançar um equipamento extra-hiper-super moderno, e o filho queria investir dez milhões de dólares na empresa. E a discussão começou.
—O que essa empresa produz?
—Não é o que eles produzem, pai, e sim a rentabilidade das ações, que irão subir muito. Compramos as ações agora, por preço baixo, e vendemos depois.
—Sei! Especulação. E cadê seu irmão? Mandei ele até a Central de Distribuição para levar uma ordem de compra de milho. Quero adquirir todo o estoque possível, pois a janela de exportação vai abrir, e não quero ficar sem sementes justo agora!
—Ele não precisou ir até lá. Os tempos são outros, e não necessitamos mais gastar tempo com deslocamentos e salas de espera. Ele fez tudo pelo novo sistema eletrônico de compra de um grande site de vendas. Eles são o que há de mais moderno na internet e reúnem tudo num mesmo lugar. Fácil, prático e seguro.
—Ah! Que mania que vocês têm de fazer tudo por essas máquinas. O que aconteceu com o olho-no-olho? Tá! Investe esse dinheiro. Mas, cuidado com o que você anda fazendo. Todo nosso dinheiro tá nesses investimentos que você anda fazendo, mas eu prefiro ele aqui, onde eu posso controlar!
Alguns dias depois, Jacob foi novamente surpreendido pelos filhos. Só que agora, a euforia que eles sempre mantinham não era por boa coisa.
—O que foi? —Jacob sentiu uma leve coceira na orelha, o que, para ele, não era um bom sinal.
—Pai. Lembra daquele dinheiro que eu iria investir na empresa de Taiwan?
—Como assim, iria investir? O que aconteceu?
—Bom... quando autorizei a ordem de transferência, alguém me roubou. —o filho falava em voz baixa, completamente apavorado.
—De que forma? E o gerente do banco? A segurança?
—Não é isso, pai. Autorizei pelo IPhone. Os bancos eletrônicos são modernos e seguros, mas alguém deve ter “grampeado” a linha. Roubaram a senha da conta e limparam tudo, tanto o que eu iria investir quanto o que ficou na conta!
—Modernos e seguros? Você chama isso de seguro? —inconformado, Jacob olhava atônito para o filho. —Quanto nós perdemos?
—Tudo! Estamos sem um centavo no banco!
—Modernos e seguros? Você chama isso de seguro? —inconformado, Jacob olhava atônito para o filho. —Quanto nós perdemos?
—Tudo! Estamos sem um centavo no banco!
Jacob sentou e enrubesceu. Como aquilo era possível? Durante décadas, o gerente de suas contas é que ia até sua empresa. Tudo seguro e nos conformes. E agora, querem fazer tudo por máquinas frias. Mas Jacob ainda iria se irritar muito mais, e isso aconteceu no exato momento em que ele olhou para seu outro filho, que mantinha a cabeça baixa e as mãos trêmulas.
—Não me diga que você também foi roubado pelo telefone? —Jacob fitava o filho e temia pela resposta.
—Não, pai! Mas aquela ordem de compra do milho que fiz pelo sistema eletrônico...
—Tá! Me diz... o que tem ela? Essa ordem já está paga. Cadê o milho?
—É que o sistema eletrônico concentra uma série de empresas de setores diferentes. E na correria, errei os códigos e acabei comprando outra coisa. Mas tá tudo bem. A mercadoria está aí embaixo, pronta para ser descarregada.
—Você errou os códigos? Quais códigos? Qual é a mercadoria que está aí embaixo?
—Quarenta e cinco carretas carregadas de...
O filho estaqueou e olhou tanto para o pai quanto para o irmão. Durante alguns segundos, o silêncio foi aterrador, e antecipava algo que o velho Jacob já sabia que não seria bom.
O filho estaqueou e olhou tanto para o pai quanto para o irmão. Durante alguns segundos, o silêncio foi aterrador, e antecipava algo que o velho Jacob já sabia que não seria bom.
—Carregadas do quê? Fala logo! —Jacob, literalmente, suplicava.
—Comadres.
comadre - by Google |
Jacob ficou arfante, e por muito pouco não foi acometido por um infarto. Olhava para os filhos e não acreditava naquilo tudo que ouvia.
—O que são “comadres”? —um dos irmãos questionou, como se não ligasse muito para a complexidade da situação. —Comadres não são mulheres que batizam filhos umas das outras?
—Não! Que besteira! Comadres são penicos, seu tonto!
—Que merda você fez, hein!?
—Vocês dois, calem a boca. Já terminaram de bombardear seu velho pai, ou tem mais alguma coisa que tenha acontecido e que vocês ainda não me contaram?
—Aaaaaaah! Tem sim, pai! A mamãe foi embora com aquele ex-namorado, que ela achava que tinha morrido antes de conhecer o senhor.
—O que? Como assim? Aquele salafrário e conquistador barato desapareceu faz mais de 50 anos. Eu sempre soube que ela era apaixonada por aquele homem e que perdia a noção das coisas quando ele se aproximava, mas achávamos que ele estava muito bem morto e enterrado!
—Pois é, pai. Mas ele não morreu e eles se reencontraram!
—Que inferno! —Jacob esmoreceu definitivamente. —E como isso aconteceu?
—Bom... nós achávamos que ela precisava distrair um pouco a cabeça, e ensinamos ela a mexer nas redes sociais. Sabe como é, né! Facebook, Par Perfeito, Tik-tok, Ping-Pong, zap-zap... hoje cedo, encontramos o computador dela ligado e uma mensagem de e-mail do ex-falecido pra ela. Olha só a mensagem.
O filho esticou o braço e entregou uma folha de papel com algumas coisas escritas ao pai. Ele, nitidamente trêmulo e reticente, trouxe lentamente o papel até próximo aos olhos e empalideceu de vez. Entregou novamente o papel ao filho e, nervoso, pediu que a mensagem fosse lida em voz alta.
O filho esticou o braço e entregou uma folha de papel com algumas coisas escritas ao pai. Ele, nitidamente trêmulo e reticente, trouxe lentamente o papel até próximo aos olhos e empalideceu de vez. Entregou novamente o papel ao filho e, nervoso, pediu que a mensagem fosse lida em voz alta.
“Para: Zuzu_fogosa@gmail.com
De: Coroa_enxuto@uol.com.br
Zuzú, minha deusa. Teu retorno na minha vida me deu uma sorte danada. Vendi todo o estoque encalhado da minha fábrica para algum idiota.
Agora, com dinheiro no bolso, podemos fugir para algum lugar.
Beijos, minha totosa linda.”
—É muito para meu pobre coração. —Jacob pronunciava as palavras e olhava incrédulo para os filhos. —Afinal de contas, o que esse ex-defunto fabricava?
O filho mais novo olhou para o pai e, sem piedade alguma, arrematou.
—Comadres, papai. Ele fabricava penicos.
Marcio,
ResponderExcluirQue show esse texto.
Show de realidade e de formas
de pensarmos na vida que nunca
para.
Adorei ler.
Te aguardo no Espelhando.
Feliz Páscoa para Vc
e os seus.
Bjins
CatiahoAlc.
Olá, Catia.
ExcluirDepois de alguns dias só de correria, e com um feriado para atrapalhar tudo, acho que estou voltando ao meu ritmo normal.
Assim que der, quero colocar as leituras em dia... assim espero.
Grande abraço, minha amiga.
Marcio
A vida tem golpes guardados para os menos avisados. As tecnologias e o que ela podem nos influenciar. Deu no que deu Marcio, com este perfeito final com belo toque de humor diante de uma situação critica.
ResponderExcluirGostei amigo.
Abraços e Feliz Páscoa.
Olá, Toninho.
ExcluirEste conto já é antigo, e tem um comentário seu lá no original que me deixou com o ego lá em cima, onde você cita que, ao final do conto, procurou a assinatura do Drummond (ou seria Veríssimo? ...agora fiquei na dúvida...)...
Mas a vida é assim, meu amigo, essas gerações que estão vindo nos deixam de cabelo em pé com suas modernidades, e sempre pensamos que nada vingará... mas elas vingam, e nós, com nossas ideias de museus, acabamos ficando para trás. O ciclo normal da vida.
Uma ótima semana pra tí, profeta Itabirujo.
Marcio
Caro Márcio,
ResponderExcluirpegando a deixa, eu diria que traz o charme do humor de Márcio Rutes, mas há alguma impregnação de Veríssimo, risos. É inquestionável, tal como ele, você segura o leitor à unha. E o deixa reflexivo até a última linha. Imagina o que é vender quarenta cinco carretas de "comadres"! Um bem-humorado conto com todas as nuances da modernidade e os seus riscos, por vezes incontornáveis.
Parodiando Roberto Carlos, a modernidade canta: "Eu cheguei, cheguei para ficar/ porque aqui é o meu lugar", enquanto Zuzu, a fogosa, canta a versão original: Eu voltei, voltei para ficar...
Moral da história: a felicidade não tem preço, pode ser trocada por um ex-vendedor de comadres, risos! "Totalmente demais".
Um abraço, Márcio!
P. S.: O que foi feito do poema concreto?
Olá, Sant'Anna.
ExcluirO poema concreto? Bom, digamos que foi concretado... rsrs. Aquela foi uma arte que vendi, então, tenho certas restrições de postagem. A versão original ( http://cronicasdeareia.blogspot.com/2014/02/ponto-e-pronto.html ) pode ficar no ar, pois foi postada antes da concretização do negócio, mas re-edições podem complicar. Tenho outros casos desses, e vira e mexe tenho que mexer com o lado "legal" da coisa.
Muito, muito, muitoooo grato pelo elogio. Veríssimo? Já não chega o Toninho Bira? Assim, vocês inflam meu ego. Imagina um cronista de quem sou fã de carteirinha. Já quanto à Zuzúuuuu... melhor deixar quieto, né!?! E ainda entra Roberto Carlos na sua citação. Danou-se... rsrs.
Meu bom professor, grato sempre por suas críticas. O ânimo renova e a vereda literária se expande. Muito obrigado.
Marcio
rssssssssss, cruzes, que conto!! Eu teria morrido enfartada, Márcio!
ResponderExcluirMas eu sou muito parecida com esse Jacob, e jamais deixaria os filhos fazerem grandes aplicações, ou seja o que for por um celular, meu Deus, fiquei com pena do Jacob, e esse teu excelente conto me parece coisa acontecida na vida real! Odeio essas aplicações e tantas outras coisas pelo celular. E por fim, dás um final pior ainda!!! Pobre homem! rsss
Excelente conto, aplausos, amigo! Gostei muito de ler essa criação!
Abraços, bom findi.
Olá, Taís.
ExcluirPensei em envolver o Lincoln Continental do Jacob nesse final, mas confesso que até eu fiquei com dó do pobre coitado. Então, deixei o xodó dele intacto. Pelo menos isso.
Mas o que relato nesse conto é algo bem palpável, não muito difícil de acontecer. Avô e pai trabalham uma vida inteira para amealhar seus bens, e a geração mais nova, que não precisou pegar no pesado e já nasceram no bem-bom, dilapidam tudo em poucos instantes. Uma pena.
Grande abraço pra ti e família, Tais. E um ótimo fim de semana.
Marcio