sábado, 18 de março de 2023

MATILDE


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Ana caminhava lentamente pelo estreito corredor e, ao passar ao lado da sala, ouviu vozes masculinas. Como ela jamais conseguira conter seu ímpeto alcoviteiro (se é que alguma vez tentou!), colou a pequena e sagaz orelha à porta, e aproveitou. Do cômodo, reparou as vozes de Edú, seu irmão mais velho, e Nilo, o marido de sua melhor amiga.

—Ela é um espetáculo, meu amigo. —Nilo comentava, empolgado.

—E como ela é? —o outro questionava, mostrando interesse.

—Quando ela anda, não tem quem não repare. Quadris largos, com um rebolado bem marcado. A traseira é empinada. Puro mignon. Ela é minha e ninguém tira. Fiquei babando pela Matilde

Ana estarreceu. Sua melhor amiga estava sendo traída? Um turbilhão de pensamentos passou por sua cabeça, mas a vontade de colocar aquela bomba no Facebook e levar a fofoca adiante foi maior do que tudo. No entanto, era sua melhor amiga, e por certo deveria ser ela a primeira a saber. Depois, é claro, repartiria a informação com algumas poucas pessoas nas redes sociais. Então, em menos de cinco minutos, Ana estava em sua caminhonete e rumando apressadamente para a fazenda onde a amiga residia.

—Dedéia, minha amiga. É isso mesmo. Eu “vi” tudo, com essas orelhas que terra nenhuma há de comer. Afinal, não paguei uma fortuna em cirurgia plástica pra terra estragar tudo depois.

—Ana, que inferno! Eu não posso acreditar nisso! —Dedéia bufava, atônita. —O que mais ele falou, amiga? Diz, sem dó nem dor no “célebro”.

—Ah! Sei lá! Disse que ela é loira, alta e rica. Que conheceu ela em uma boate, e que ela é praticante de dança do ventre. Disse que tá apaixonado. E também que a bunda dela é grande.

—O que? —um berro esganiçado e carregado de raiva brotou da boca de Dedéia. Ela rodou nos calcanhares e começou a jogar tudo o que alcançava ao chão. —Loira? Rica? Faz aqueles “trem” esquisitos com a barriga? E ainda de bunda grande? Ah! Ele me paga. Me paga bem caro. O que eu faço, amiga? Me diz logo! O que eu faço com esse canalha?

—Se eu fosse você, destruía o que ele mais gosta. —Ana comentou em tom sarcástico, e, logo em seguida, sorriu como se estivesse plenamente satisfeita por incitar a amiga a fazer alguma maldade.

Dedéia ouviu aquilo e desapareceu pelas escadas que levavam ao segundo andar da casa. Ana, sem entender, foi atrás. Em instantes, localizou a amiga em um dos quartos, mas estaqueou, ficando boquiaberta com o que viu. Dedéia, armada com um taco de golfe, espancava violentamente um pato de borracha.

—Mas, o que você está fazendo?

—Ué! Fazendo o que você mandou. Estou destruindo o que ele mais gosta! Ele adora esse patinho de borracha. Quando vai pra banheira, só toma banho com esse patinho dentro da água.

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—Pelos deuses do “Olímpo Egípcio”! Sua tonta! E desde quando espancar um pato de borracha vai atingir o safado do teu marido? Tem que fazer algo mais impactante. Se bem que esse patinho é bonitinho! —Ana pegou o pato de borracha e perdeu alguns segundos, admirando-o e virando-o, até que reparou algo na parte de baixo do brinquedo. —E por que tem esse buraco desse tamanho na parte de trás do pato? Cabem meus dois polegares juntos aqui nesse buraco!

—Não seja indiscreta, amiga! Mas, você tá certa! Vou dar cabo disso agora mesmo. Ele brincou com fogo, então, vou contra-atacar com fogo também.

Dedéia agarrou o pato de borracha e desapareceu novamente. Ana, desanimada, sentou e esperou, pois sabia que a amiga pouco faria. Então, sem pressa, abriu o guarda-roupas e passou a admirar os vestidos de festa de Dedéia. E assim, o tempo passou. Meia hora depois, Ana sentiu um cheiro forte de fumaça, e correu até a janela. De lá, pode observar uma nuvem preta subindo aos céus. Aos tropeços, correu pelas escadas, e só parou quando chegou ao lado da amiga, que mantinha um olhar extremamente sórdido.

—Sua louca! —Ana gritou, pasmada. —O que você fez?

—Ué! Dei cabo das duas coisas que o pilantra mais gosta. O pato de borracha e a caminhonete dele.

—Essa é a minha caminhonete, sua estúpida!

—É? Vocês têm caminhonetes iguais? Nem me dei conta disso!

Sem que elas percebessem, as labaredas atingiram a casa, e em pouco tempo, tudo veio ao chão. Algumas horas depois, já com os bombeiros controlando tudo, Nilo chegou ao local, completamente desesperado.

—Homem é tudo igual. Vocês insistem na mentira até quando as provas são incontestáveis! Eu escutei você falar até o nome dela, seu safado! —Ana esbravejava, ainda querendo incitar a amiga a ficar com raiva do marido. —E você falou em alto e bom tom! Matilde!

—Espera! Espera um pouco! —Dedéia parou o que fazia e sentou a um canto, nitidamente desconcertada. —Matilde era minha vaquinha que morreu, e você tinha prometido comprar outra. Você não estava falando da... minha vaquinha, estava?

Nilo apenas balançou positivamente a cabeça, o que foi suficiente para que Dedéia quase entrasse em um colapso nervoso. Ana tentou acolhe-lha, mas acabou enxotada pela amiga. Um pouco mais distante, Nilo olhava para os restos de sua casa, e levou um susto enorme ao ouvir seu próprio telefone celular tocando. Saiu para o lado e atendeu, mostrando nervosismo.

—A situação tá feia. Tudo queimado. Minhas duas caminhonetes, caminhão, trator, minha casa, meus pertences. Meu patinho amado. Tudo. E o pior é que ainda vou ter que comprar uma droga de uma vaca pra sustentar a história que, por pura sorte, me livrou de um divórcio. Ainda bem que a porcaria da vaca tinha o mesmo nome que você. E por favor, Matilde. Não me liga mais no meu celular, meu amor. Senão, ainda arranjo encrenca por tua causa.


Marcio Rutes




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16 comentários:

  1. Olá, amigo Márcio, li com muita atenção e curiosidade esse seu conto.
    Na continuação da leitura cresceu a minha expectativa, pensando sempre
    que o final seria o que eu havia imaginado, mas, como não se pode confiar num contista, principalmente se for um bom contista, como é o seu caso, o que vi no
    final foi justamente o contrário do que eu havia imaginado. Assim, fui ludibriado pelo escritor.
    Parabéns pelo belo conto, caro Márcio!
    Votos de um ótimo final de semana,
    Grande abraço, amigo.

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    1. Pedro, meu amigo, obrigado pelas palavras de carinho que você sempre destina aos meus textos e a mim. São anos afinando e afiando a escrita, e sei, ainda estou longe daquilo que pretendo, mas sou persistente. Um dia chego lá. E críticas assim como a sua são sempre um grande incentivo.
      Mas eu, ludibriar alguém??? Nunquinha... rsrs. É brincadeira. Isso é algo natural quando partimos da construção do enredo em sentido contrário, ou seja, imaginando o final e construindo o começo depois. Acaba acontecendo ao acaso.
      Grato sempre, Pedro. Ótima semana pra ti.

      Marcio

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  2. Ilusionista! Fui certeira por um final enquanto lia e a surpresa foi de tirar o fôlego!
    Ah Matilde... que conto!
    Adorei!
    Bom início de semana por aí.

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    1. Ana, que bom ter você de volta por aqui. Já passei la no seu blog e deixei também meus votos de bem-vinda. Manda abração e minha torcida pra Júlia.
      E graaaaaaato por essa palavrinha "ilusionista". O ego aqui se inflou.
      Sou fã de contistas e cronistas que são feras nessa arte da dissimulação, e tanto almejo conseguir ir no rumo deles, mas não é muito fácil, e quando consigo, é festa. Grato, sempre.
      Grande abraço pra ti, menina, e linda semana.

      Marcio

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  3. Olá, Márcio, (rss) não é a primeira vez que acontece dos seus leitores se surpreenderem com o final do seus contos! A gente vai trilhando outros caminhos e vem a surpresa! Mas como disse o Pedro, isso é coisa dos bons contistas. Pura verdade. E agora, estou aqui rindo sozinha ao recordar os nomes dos nossos animais. Há anos que virou moda colocar nome de gente nos animais de estimação, daí a bagunça! Nós tivemos o Guga, o cão mais querido do mundo, com uma garra sem tamanho para viver, encontramos atropelado numa esquina de noite e pegamos, tratamos dele e ficamos com ele para sempre. Tivemos a Nena. E a Cacilda, ainda viva. Ah, e tivemos o Teixerinha, um passarinho com incrível garganta, não parava de cantar, começava de manhã cedo a cantoria...por isso esse nome. Olha só o rolo!! rsssss Não esquecerei desse conto. Um excelente e bem bolado conto, mas os próximos ficarei muito atenta...
    Grande abraço, amigo, e uma ótima semana!

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    1. A Revolta de Antunes... rsrs. Vou lembrar pra sempre de você e do Pedro dizendo que chegaram ao final e ficaram embasbacados com o desfecho do conto por o personagem ser um cavalo.
      Ops... agora me veio algo. Será que sempre existirá um cavalo, uma vaca ou outro animal que driblará meus leitores? Sempre um animal? Tomará que sim, pois adoro eles.
      E pode esperar, pois tem uma centelha aqui brotando, e faz um tempinho, depois de um comentário seu falando em baratas, que tem um enredo fervilhando aqui.
      Taís, minha amiga, linda semana pra ti, menina. Abraços.

      Marcio

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  4. Tchiii! Bem surpreendente o final!
    Mas, olhe que as fofocas são assim, podem destruir tudo como um fogo!

    Parabéns pelo seu saber contar!

    Abraços.

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    1. Oi, Fá.
      Sempre um afago ter você aqui.
      Adorei o "tchiii"... Esse eu ainda não conhecia, mas aqui pelo sul do Brasil, temos algumas expressões que se aproximam.
      E, realmente, as fofocas destroem muitas coisas. Parece existir uma vontade premente nas pessoas em espalhar boatos sem sequer constatar se é verdade ou não. É o espírito destruidor da alma humana. Tenso.
      Grato, sempre, pelas visitas, Fá. E linda semana pra ti. Abraços.

      Marcio

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  5. Olá Marcio,
    Gosto de pessoas inteligentes e você o é.
    Parabéns pelo belo e inteligente conto!
    Abraços
    Lua Singular

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    1. Olá, Dorli.
      Fico imensamente grato pelo elogio e o carinho que você deixou em seu comentário. Coração agradece.
      Me perguntaram, dia desses, de onde eu tiro ideia para meus contos. Nem é necessária tanta criatividade, é mais observação, pois até as coisas mais inusitadas que escrevo acabam acontecendo, e bem a nossa volta. Penso que é mais observação do que criatividade... rsrs.

      Grande abraço, Dorli, e um ótimo fim de semana.

      Marcio

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  6. Antes de falar deste engraçado conto, quero desculpar-me pela ausência, mas, quando se é avó e uma " sapequinha " tem de ficar aqui por impossibilidades de ir ao infantário, tudo fica para segundo plano aqui na minha casa. Não se chama Matilde, mas se tivesse uma vaquinha com esse nome, iria adorar. Não tenho animais em casa, pois vivo em apartamento, mas gosto muito deles e respeito-os. A minha mãe gostava muito de gatos e nunca soube explicar-nos o motivo de se chamarem sempre " Luis ou Luisa " com a agravante de ter uma irmã Luisa que, claro, não ficava nada satisfeita quando, na sua presença, chamavamos a gata. Mas, voltemos à tua vaquinha, a tal da Matilde que livrou o safadinho do marido da Dedéia de um divórcio. Comecei por ter dó do Nilo que, por causa da fofoqueira da amiga da mulher, perdeu muitos dos seus bens, mas, depois mudei radicalmente de ideias, porque " afinal havia outra" ( canção portuguesa...) e a mulher mais uma vez enganada, acreditando que ia ter uma nova vaquinha, já que a outra falecera. As fofocas são sempre muito más, mesmo quando têm um fundo de verdade. Aqui, foi uma maneira de se descobrir uma traição, de qualquer modo, se a amiga tivesse falado de outro modo, sem acrescentar tanto veneno, ajudaria a Dedeia e não haveria toda aquela destruição de bens que prejudicou o casal. Sabes, Márcio, gostei muito do conto, muito divertido e com um final surpreendente, mas fiquei " encucada" com o patinho, principalmente pelo enorme buraco que tinha por baixo; enfim...esquisitices...
    Beijinhos, Amigo e que o Outono te proporcione dias agradáveis, sem grandes problemas, com muita inspiração e saúde para todos aí em casa
    Emilia 🐄 🐄 🍂🍂

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    1. kkkk... o patinho faz parte daquelas "coisas de casal". Melhor mudar de assunto. rsrs.
      Bom dia, minha querida amiga.
      Mas, falando sério, tudo tem um propósito. Quando escrevo, normalmente lanço uma isca, algo bem inusitado ou esquisito, no meio do texto, e que normalmente, devida a estranheza, acaba sendo comentado. Isso acaba funcionando como certificação de que o texto foi realmente lido. Não que todos os que leram vão comentar, mas é sempre bom quando comentam.
      E não precisa se desculpar por nada, Emília. Nos dias atuais, tempo é moeda rara, ainda mais quando se cuida de filhos ou netos.
      Voltando ao texto, tem uma miscelânea atitudes erradas, como a fofoca e a traição, ações descontroladas, incitação ao que é danoso, e por ai vai. Até eu mesmo me assustei ao re-ler o texto, e fiquei pensando até onde vão as atitudes do tal humano no tocante a um relacionamento, seja seu ou de outros, e o que as pessoas conseguem fazer para prejudicar ou machucar alguém. Neste caso, apenas a vaquinha falecida ficou de inocente.
      Ah! Sim! Amo gatos, e no momento tenho um, o Farofa. Caso queira conhecê-lo, é só ir lá no topo da página, abaixo do banner. Tem um link para uma página que criei só com fotos dele.
      Grande abraço, minha querida amiga, e um lindo fim de semana pra ti.

      Marcio

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  7. Já fui conhecer o Farofa! Lindo gato! A propósito, adoro farofa. Beijinhos e um bom fim de semana para os dois amigos
    Emilia 🐈‍⬛ 👏

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    1. rsrs... Farofa é unanimidade, Emília. Todos adoram o Farofa... ops... é outra farofa? kkk. Tá vendo a confusão que gera quando damos esses nomes pros animaizinhos domésticos?
      Beijos pra ti, minha querida amiga, e o Farofa tá te mandando um miau bem grande em agradecimento. Lindo fim de semana pra ti.

      Marcio

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  8. Como dizia aquela música antiga "ando meio desligado", por isso não passei aqui antes para conhecer esta soberba narrativa. És porque és um exímio contador de história, e não digo uma novidade. Você sabe disso. Manter o leitor preso à cadeira e só se levantar-se no ponto final. Mas quem falou em ponto final? Se as suas histórias sempre deixam o leitor às voltas com as voltas que você deixa para que o leitor coloque o seu ponto final. e, antes disso, reflita sobre as atitudes e comportamentos dos personagens delineados. Há muitos recheios na sua narrativa que podemos viajar na narrativa para "saborear" as várias nuances trazidas pelo seu conto.
    Um grande abraço, Marcio!

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    1. Nem esquente a cabeça, Sant'Anna. Como disse acima para nossa querida Emília, tempo, nos dias de hoje, é moeda rara.
      Fico muito agradecido, e envaidecido, com suas palavras, meu bom professor. Ainda mais que são elogios vindos de alguém que é mestrado na área, um crítico que muitos gostariam de ter como leitor. Me honra demais sua presença por aqui. Grato, sempre.
      Tento escrever bem, e me solto quando me deixo a disposição de um mote, um assunto que me atiça, e então, tudo flui. Por vezes, invento de escrever ao contrário, imaginando o final para depois escrever o começo. E é onde aparecem essas maluquices que invento... rsrs. E quer saber? Nada mais fácil do que "contar" algo sobre o tal humano. Matéria prima não falta. Barbaridade!
      Meu bom amigo José Carlos, um ótimo fim de semana pra ti e família. Abraços.

      Marcio

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