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Armandinho, o irmão
mais velho, estava apaixonado. Conhecera Silvana, a Sassá, na fundação de
assistência que frequentavam, e ela, moça espevitada e também portadora de
problemas de visão, logo se enveredou pelo moço romântico e batalhador. A
cidade pequena era cheia de armadilhas em suas calçadas. Buracos e obstáculos
atrapalhavam muito, o que obrigava os dois a apoiarem-se um no outro em quase metade do
caminho para suas casas. Conversas bobas e sensações de bem-estar apareciam por
quase todo o caminho, fazendo com que a fundação de assistência se tornasse uma
mera desculpa para que eles pudessem se encontrar todos os dias. Enamoraram-se.
Hugo, o irmão de
Armandinho, era moço estudado. Mais novo, ele nunca se conformou com as
restrições que a vida impunha. Certa feita, aos 15 anos de idade, armou sua
trouxa de roupas e partiu para a cidade grande, para morar com os tios e
estudar. Voltou formado em Letras, coisa que poucos naquela pequena cidade
sabiam para que servia, e também ostentando um visual estranho, de cabelo
colorido e roupa extravagante. No entanto, o que ninguém compreendia era aquele
aro metálico que ele usava no nariz, parecendo uma argola que se coloca em
focinhos de bois para amansá-los.
Os amigos e
familiares, ao descobrir a paixão de Armandinho, fizeram festa. Ele, muito
querido por todos, estava em êxtase, e queria porque queria dar um presente para sua amada. Hugo contou que na cidade grande existia uma tal “tele-mensagem”, que nada
mais era do que um veículo equipado com equipamentos potentes de som. O veículo
parava diante da casa de alguém e um locutor recitava poesias ou, meramente,
fazia alguma homenagem previamente escrita para a pessoa residente na casa.
Armandinho gostou da
ideia, mas desiludiu, pois ali não existia tal coisa. Foi onde sua capacidade
de improvisação entrou em ação. Juntou todos os amigos e, para cada um, deu uma
tarefa. Alguns correram até a chácara de seu Ambrósio e pediram emprestado um
Tobata, espécie de pequeno trator para espaços reduzidos ou manuseio de
plantações de menor escala, enquanto outros deram jeito de arranjar uma carroça
que se adaptasse ao mini-trator. Para Heitor, pai de Armandinho, ficou o
encargo de procurar a estação da rádio local e conseguir algum tipo de
equipamento de som para instalar na carroça. Por sorte, além do equipamento de
som, ele conseguiu um eletricista, que montou o equipamento e o colocou para
funcionar. A mãe, dona Jesuína, arranjou as roupas e fez o marketing e
divulgação do evento, não deixando nenhuma amiga sem saber do ocorrido. Ela, em sua
simplicidade, não reparou que a sagacidade de mãe zelosa tomava conta, e até
para o padre Eustáquio ela acabou dando incumbência. Ele, na surdina,
aproveitava os momentos em que estava com os fiéis no confessionário e espalhava
a novidade.
O que ninguém notou é que o que era para ser uma simples serenata, acabou tomando ares de
evento intermunicipal, pois até seu Leocádio, prefeito da cidade vizinha e
irmão de padre Eustáquio, entrou na dança e resolveu ajudar, patrocinando o
evento que, para ele, poderia render alguns votos em sua pretensão a atingir
cargos maiores na política estadual. Então, preparou alguns cartazes, juntou
seus correligionários e confirmou presença.
Tudo caminhava as mil
maravilhas. Padre Eustáquio se ofereceu para ficar por perto na hora da
cantoria. Era o único que conhecia alguma coisa de música, e por
certo poderia ajudar, caso algo precisasse ser improvisado. E lá foram todos,
com os dois irmãos vestidos a caráter. Terno branco e chapéu Panamá, também
branco, e tudo patrocinado por seu Leocádio.
Na rua, a satisfação
de dona Jesuína era imensa. Olhando ao redor, ela jurou ver mais gente do que
nas festas da quermesse da Igreja. Se soubesse contar, poderia dizer que o
grupo passava, tranquilamente, dos 100 integrantes. E lá foram todos eles, em
passeata, até a casa de Silvana, a amada Sassá de Armandinho.
Padre Eustáquio também
estava orgulhoso. Conseguia, não se sabe como, impor ordem a toda aquela gente.
Até haviam pensado num grande alarde após a cantoria, com passos ensaiados de
dança e tudo. Mas, existia um problema. Sassá era moradora nova, e não
frequentava a igreja. Sequer seus pais ou familiares eram conhecidos.
Onde era a casa dela?
―Olha, padre
Eustáquio. Eu inté sei, mais num vô consigui guiá tudo esse povo inté lá!
―Armandinho comentou, se aprumando dentro da apertada e incômoda gravata. ―É du
lado da casa nova que o prefeito construiu e que se mudou inda ontem. O sinhô
sabe dadonde é?
―Aquelas duas casas
iguais, lá perto da praça? Sei sim.
O padre confirmou e
subiu na carroça. Com alguns berros, ordenou todos em marcha e, ao chegar bem
próximo ao local, colocou sua estratégia em prática. Pediu a algumas beatas da
igreja para ajudá-lo na organização do povo. Elas estavam incumbidas de
observar os movimentos do padre e, na hora certa, aparecer de supetão e
propiciar a maior algazarra. E até nisso seu Leocádio ajudou, dando a elas
alguns uniformes, que, obviamente, carregavam seu slogan político e seu nome.
Com tudo pronto e
silencioso, Armandinho deu a deixa para Hugo começar a tocar o violão.
―Como assim? Eu não
sei tocar esse negócio. Ninguém me falou que eu deveria tocar violão.
Padre Eustáquio
pressentiu que tudo poderia desmoronar, e correu em socorro. Em menos de 5
minutos, ele já tinha encontrado um violeiro e o colocado junto aos irmãos.
Ninguém menos do que seu Leocádio.
E também não demorou
para passarem a seu Leocádio a programação da serenata. Iriam começar com a
música que Sassá mais gostava, e que era um clássico da música sertaneja: ABRA
A PORTA, MARIQUINHA. Armandinho, diante de seu pouco talento, faria a voz
masculina, deixando para Hugo a voz feminina. E começaram.
Armandinho - Abre a porta Mariquinha
Hugo - Eu não abro não
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão
Armandinho - Abre a porta Mariquinha
Hugo - Eu não abro não
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão
Nada. Um silêncio
aterrador. Sequer um pio de coruja ou latido de cachorro se escutava.
Armandinho, que mal enxergava, perguntou para seu Leocádio o que estava
acontecendo, e ele apenas deu de ombros, mostrando que também não estava
entendendo patavina de nada. Partiram, então, para a segunda parte da música,
toda cantada por Armandinho.
Armandinho
Oh! Mariquinha abre a
porta e não reclama
Mostra que você me ama que eu não quero discussão
Você queria que seu bem fosse bocó
Pra te levar no forró
E depois ficar na mão
Mostra que você me ama que eu não quero discussão
Você queria que seu bem fosse bocó
Pra te levar no forró
E depois ficar na mão
Assim que o último
verso foi cantado, uma das janelas do segundo andar se abriu lentamente. Alguém,
todo de branco, caminhou até a sacada e, segurando uma espingarda de dois canos,
disparou para cima.
―O qui é qui ocêis
quérem aqui, seus bosta? I qui negócio é esse di chamá minha muié Mariquinha pra
módi abri a porta?
Ninguém entendeu nada.
Até que o padre se deu conta do que estava acontecendo. E teve certeza quando,
ao olhar para a outra casa, viu uma moça na sacada.
―Meu Jesus! Essas duas
casas são iguais, e esse tanço do Armandinho se enganou de casa. Essa aqui é a
casa do prefeito.
Lá em cima, o homem
bufava e recarregava a espingarda. Até que parou e olhou bem para os três
homens que estavam lá embaixo.
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―Mais eu num querdito!
Intão é ocê, Leocádio? Seu bosta. Pensa qui num alembro qui ocê foi apaxonado
pela minha Mariquinha antes di eu casá cum ela? I qui história é essa di vim
aqui, cantá dizêno pra ela abrí a porta i ti levá pro colchão dela? Ah! Eu mato
ocê, peste.
Seu Leocádio se
desesperou e levantou. Nisso, padre Eustáquio também saiu de onde estava e ergueu os braços, querendo parar aquele homem tomado pela raiva. As beatas,
mais distantes, acharam que era o sinal para começar a algazarra e,
rapidamente, atiçaram o povo, que saiu da surdina e foi todo para frente da casa onde
os outros estavam. Nas mãos, todos carregavam cartazes e faixas com o nome de
seu Leocádio, e para piorar, ainda entoavam versos da música que Armandinho
havia escolhido para a homenagem.
O furdunço foi geral.
Não demorou e os dois prefeitos estavam frente a frente, se acusando. Ao ver
todo aquele povo usando camisetas e portando faixas e cartazes com o nome de
seu Leocádio, o outro prefeito considerou uma afronta tanto pessoal quanto
política, e chamou seus correligionários. Seu Leocádio, vendo que iria apanhar
e não tinha para onde correr, telefonou para sua cidade e chamou seus
seguranças. A guerra estava formada.
Armandinho, perdido
naquele tumulto, se amparou em alguém, e para não cair, segurou firmemente na
pessoa. Não esperava, no entanto, que fosse justamente dona Mariquinha. Bem
perto deles, Sassá e seus pais assistiam a tudo, e mais atrás, o marido de dona
Mariquinha e seu Leocádio também pararam para admirar o que estava acontecendo perto deles. O que todos viam,
condenou Armandinho a pagar por algo que ele sequer sabia que estava
acontecendo. No desespero de segurar em algo para não cair, ele se apoiou
justamente no peito de dona Mariquinha, mais precisamente no seio esquerdo.
―Abestado! Mato ocê,
seu peste! ―o marido de dona Mariquinha berrou, empunhando a espingarda.
O tumulto generalizou,
e só não piorou porque o padre, armado com a espingarda de alguém, deu dois
tiros para cima e fez todos sossegarem. Foi o tempo suficiente para tirarem
dali o pobre do Armandinho. Porém, Hugo havia desaparecido, e por mais que
procurassem, não conseguiam encontrar. Só foram ter notícias dele alguns meses
depois.
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Passados alguns anos,
a animosidade que se instalou entre as duas cidades, isso por conta do pé-de-guerra
que os dois prefeitos declararam na época, parecia acalmar. Seu Leocádio é,
agora, aliado político de seu antigo rival, ou seja, justamente do marido de
dona Mariquinha. Ambos estão na capital e tramam lançar como candidato para
deputado federal o pobre do Armandinho, que depois de tudo, ganhou
espaço na rádio local e nos jornais da região. Ficou famoso.
O irmão de Armandinho,
que sumira, foi descoberto tempos depois, em uma cidade do litoral. Virara poeta hippie e ganhava a vida cantando versos para os turistas e vendendo artesanato
que sua esposa confeccionava. Quem é a esposa? Sassá.
Padre Eustáquio foi
quem mais penou com o ocorrido. Largou a batina e ficou pelas ruas, mas não
demorou para se reerguer. Hoje, além de ser um dos banqueiros do jogo de bicho
da cidade, ainda mantém uma linha de importação de bebidas. Ou melhor, compra
bebida falsificada no Paraguai e distribuiu para toda a região. Com os lucros,
sustenta a campanha política de Armandinho. Além disso, acabou casando e tendo
filhos, e justamente com dona Mariquinha, que largou o prefeito e abriu, na
época ainda, um sex shop na cidade.
E como dizem, entre
mortos e feridos, todos se salvaram e vivem em paz.
Marcio Rutes
Kkkkkkkkkkkkkkkk...
ResponderExcluirEspera eu recuperar o fôlego, seu pesssste!!! rs
Eu sinceramente queria ser uma mosquinha, um bichinho pra entrar nessa sua cabecinha de ouro e descobrir onde você guarda taaaanta criatividade assim, Sr. Rutes!
Como pode uma simples conversa, uma simples frase, uma ideia, um palpite fazer fervilhar uma história assim, fantástica, repleta de humor (e olha que é muito mais dificil fazer as pessoas rirem do que chorar) E você faz isso com maestria, meu querido. Tanto um, quanto o outro.
Sem contar que lá vem trocando as botas com essa tal melodia da Mariquinha e puts, coitado do Hugo. Na próxima, vê se dá uma posição melhor pra ele. Ele tem talento, mas não cantando Mariquinha, Marcito.
Adoreiiiii o furdunço.
E claro, o poeta hippie foi demais e nada como fechar com chave de ouro, tempos de modernidade num sex shop. hehehe
AMEIIIIII
Beijoca Muahhhhhhhhhh!
Sam.
rsrsrsrsrsrs adorei esse furdunço por demais da contaaaaaaaaaaa, e penso como a Sam, de onde você tira essas idéias homem??? Demais!!! Pior que me lembrou o arraia meu e da Cêledian........
ResponderExcluirjesus!!!
Parabéns Marcio!
BeijO
kkkkkkkkkkkkkkk...eu volto depois para comentar, porque agora estou de saída, de horário marcado e dando boas gargalhadas. Beijos para vocês, amadinhos, Márcio, Sam e Rosane.
ResponderExcluirkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirUma boa viagem pelas suas palavras
ResponderExcluirrecriadas em prosa poética