sexta-feira, 5 de julho de 2013

ANDANÇAS (PORTA-RETRATO)

Crônicas de uma música
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Não existem apenas desertos de areia. Agora eu sei, pois perambulei por muitos deles, e garanto que alguns eram floridos como um jardim real. Garantiram que era pura miragem, e que aquilo que vi era a ânsia minha em me livrar da secura que me gastava. Afirmo que não. A secura estava em meus olhos e corpo, claro, mas aprendi a tocar o chão mansamente e senti-lo, conversar com ele, aceita-lo e aprender o que ele tem para me ensinar.

Andei por campos de uva onde o vinho não me bastou. Sequei tonéis inteiros buscando esquecer o que sequer sabia que existia, e mesmo na dor arroxeada dessa omissão consentida, meus olhos fabricavam um caminho a seguir.

Desbotei o céu, fazendo despencar cada estrela que existia em seu pingente. Para que precisaria de algo brilhando se a luz que me guiava vinha de uma pedra tão comum, mas que me fugia a cada instante? Também não quero diamantes, e desprezo a ganância que eles atraem. Sou pedra de rio que sonha em ser, qualquer dia, um quartzo. Sonho em ter brilho natural, e não em ser lapidado.

A brisa morna já teve sua graça. Em minhas andanças, ela mais bufava do que amainava minha pele. Pele! Faltava algo em mim. Um sopro próprio, que quando vinha dos pulmões, amansava qualquer temperatura ou, ainda mais, fazia pulsar a mais forte quentura. Era um sopro sim, mas para mim servia de furacão.

As fazes da lua sei de cor. Mas, para quê? Um quarto crescente que mais míngua do que se enche enquanto desbota na sua fase mais nova. Lua deveria ser espelho... não... lua deveria ser porta-retrato, e cada um deveria ter a sua. Quando quisesse, tiraria a sua lua do bolso e olharia para ela. Para ela. Para o retrato... dela.

Retratos. O único que carreguei durante a jornada estava amarelado. Roubaram-me tudo. Roupas, alimento, calçado, estima e coragem. Mas o retrato não. Ele estava guardado num bolso bem escondido. Num bolso chamado coração.

Aliás, perdão dona lua, mas você é um péssimo porta-retratos, pois fica aí em cima, mostrando para todos o que você carrega. Você não respeita a privacidade da saudade daquele que colocou a foto de sua amada em você? Daquele que confiou a ti a guarda das feições de uma última recordação? Fiz, então, do meu coração um porta-retratos. E mesmo com o retrato amarelado, é para ele que olho sempre que quero ver o rosto dela. Mas sempre que olhei para dentro de mim, vi um deserto enorme. Não tinha lua, nem tonéis de vinho ou pingentes de estrelas. Brisa? Só um ar seco e causticante. Só havia um deserto.

Para que, então, carregar um retrato nesse deserto? Para deixá-lo lá, amarelando ainda mais pelo sol infernal que castigava tudo? Não. Ele estava lá para servir de luz para minhas noites, e de esperança para matar minha sede. Também era minha bússola e o alimento da alma.

E como tudo nesse mundo não tem lógica, mesmo perdido cheguei a algum fim de caminho. Não existia vinho nesse lugar, mas a água que me deram matou minha sede. Não me serviram uvas para comer, mas pão. E como estava saboroso. Para meu corpo, a mão de alguém ajudou a elevar. A mão de alguém. E a mesma mão apoiou meu queixo, me fazendo olhar para cima. Vi varais sem fim, e em cada um deles, uma constelação de estrelas em pleno dia, onde sol e lua co-habitavam. Miragem? Pensei que sim. Até que olhei para os lados e vi areia, muita areia. Aos meus pés, um oásis.

Aquela mão. De quem era? Seria a mão de Deus, trazendo a mensagem de que tudo acabara?

Não. A mão era conhecida. Era a mão que eu tentei esquecer sem sequer ter conhecido. Era a mesma mão que, quando embebedado pelas mazelas do destino, me acolhia e recolhia. E foi esta mesma mão que lapidou em quartzo o retrato que estava em meu coração.

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Desertos existem sim. E nem todos são feitos de areia. Existem desertos dentro de nós mesmos, tão grandes que se não cuidarmos, jamais chegamos ao fim. Mas assim como existem desertos, também existem oásis em locais escondidos pelas miragens que nós mesmos criamos. Para encontrá-los, cabe acreditar na esperança que se tem.

Ela andou ao meu lado esse tempo todo, e eu pensando que era uma ilusão criada pela embriaguez de um vento que eu mesmo soprava. Cuidou de mim mesmo sem eu saber. No fim de tudo, miragem era o retrato, pois ele era uma idealização de algo que eu sempre busquei sem ao menos saber o que era. No entanto, jamais desisti de procurar. E encontrei.

Não pense que estou falando metaforicamente quando me refiro a “ela”. Mas saiba que “ela” contém muitos elementos além do corpo físico que carrega. Ela é de carne e osso sim, mas também é feita de felicidade, de sal e sol, de perfume e de magia, de arte e sonho.

É! Valeu a pena caminhar, por mais que tenha sido por desertos secos ou verdes. Valeu a pena.


Marcio Rutes
(Marcio JR)


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O texto acima é uma forma alusiva de descrever o que sinto e visualizo quando escuto as canções POR ONDE ANDEI e SEI, ambas interpretadas por Nando Reis.


Música: POR ONDE ANDEI (Nando Reis) - by YouTube


música: SEI (Nando Reis) - by YouTube


2 comentários:

  1. Querido meu,

    andei, andei, me sentei no chão de tua casa. Me recolhi, escolhi. Floresci.

    As andanças por aqui nos fazem relembrar as nossas, as nossas de cada dia, de cada vida. Essa luta incontrolável de achar o oásis no deserto. Esse beco seco que nos mata a sede ilusória do mundo lá fora e a fonte, ela está é dentro. E é inesgotável. Ela transborda, alcança, faz borda sem ser margem. Ela é mar. Uma imenso de amar, um tanto de nós mesmos.

    Há ainda tantos caminhos que nos despencam sob os pés calejados, dias seguintes que amanhã não sabemos. Nem saberemos o quanto de dor ainda há de se fazer carregar.
    Há areias movediças em alguns bancos de areia nas horas do descanso, nos descasos que sabemos, não são por acaso.

    Andamos num ocaso desmedido na palma das mãos e nos olhos, essa ânsia de se chegar e fazer aconchego sempre, num outro andar, num caminhar tão semelhante ao nosso que ambos se confundem.

    Você sabe.
    Eu, eu sei.

    (adoro Nando Reis)

    Beijo na alma, querido meu,
    Sam.

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  2. Os desertos são tantos, Marcio, meu amigo, e como são!… uns tem areia, outros flores; e outros nada. Ou são repletos de solidões, de saudades, apreensões, incertezas… Existem, porém, seus oásis, onde nos sentamos para dessedentar. Ou mesmo escrever.

    E a tua crônica vai se alinhavando, aos poucos. Areias, brisa, quartos de lua…
    É quando o poeta intercede junto ao cronista, ao falar da lua, astro especular onde tantos de nós nos vemos. As andanças do cronista-poeta em pegar, mexer, fazer, refazer, e depois deixar de lado o astro espelho – e com desculpas – é um dos momentos mais gratificantes do texto. Um instante de lirismo dentro de uma crônica eivada de interrogações, de buscas…

    E, como um rio que desagua no mar, a mensagem final é sempre plena de esperança, de otimismo, e de amor. Mesmo que "ela", apesar de carne e osso, continue ainda muito misteriosa para um leitor desavisado, como eu. Talvez que a Lua… *rs

    Magistral, meu amigo! por aqui, as parreiras já florescem. Beberei um à nossa amizade. Saúde!

    Forte abraço, querido amigo,
    André

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