sábado, 26 de agosto de 2023

DORINHA E UM CONTO DE NATAL - parte 1

 

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Frio. Andar por aquelas ruas era um verdadeiro martírio, e Dorinha já se arrependera de não ter trazido luvas e cachecol. Jujubão, seu cachorro, também sentia os reflexos da neve. Mal conseguia manter as patas no chão.

Dorinha andava e olhava assustada para tudo. Jamais vira neve, pois onde nascera, o inverno mal baixava dos 10° C. Mas estava ali, e isso era o que importava para ela. Então, mãos a obra. Precisava procurar pela menina que vendia fósforos.

Um menino passou correndo por Dorinha, e para desviar-se dela, se chocou contra um amontoado de tábuas e deixou cair algo que carregava nas mãos. Apressou-se para levantar e tirar satisfações com a menina, mas desistiu assim que viu os dentes do cachorro que se mantinha vigilante ao lado dela. Jujubão rosnou bravamente, fazendo o menino intimidar-se e desaparecer pela rua lamacenta. E assim que viu o menino desaparecer pela penumbra da noite, o cachorro saiu farejando algo, até que parou e ficou olhando para Dorinha.

―O que você encontrou, Jú? ―a menina se aproximou, abaixando-se para juntar algo. ―É um pé de chinelo adulto. Lembro que o papai falou que a mocinha que vende fósforos usava os chinelos da mãe dela, e que um menino malvado roubou um deles. Será que é este? Vamos tentar a sorte. Vai lá, Jú. Cheira, fareja e vai no rastro.

O cachorro fez o que Dorinha ordenou, mas como o chão estava coberto pela neve e lama, pouco conseguiu. E assim eles andaram, andaram, até que cansaram. O frio aumentava, deixando a mostra alguns flocos de neve bailando pelo ar. Andaram mais um pouco e pensaram em parar, e foi o que fizeram assim que viram um estabelecimento comercial, parecido com um restaurante.

―Fique aqui, Jú! Não vão deixar você entrar! Vou lá dentro tentar comprar alguma coisa pra gente comer e já volto.

Dorinha entrou no estabelecimento e deixou o cachorro para fora, porém logo retornou. Esquecera ela que aquele não era o mundo real, mas sim o mundo mágico, e ali o dinheiro dela de nada valia. Mas quando chegou novamente onde deixara o cachorro, constatou que ele havia desaparecido.

Tudo parecia mais escuro. Nas fachadas das casas, algumas luzes de lampião clareavam a decoração de Natal, e através das janelas embaçadas, podia-se ver as famílias comemorando e fartando-se com alimentos da época. Parecia tão quente dentro das casas.

Dorinha olhou pela rua, e reparou vários indigentes largados pelos cantos. Alguns dormiam, enquanto outros esmolavam ou reviravam lixeiras. Triste aquela realidade, mesmo vinda do mundo mágico dos contos de fadas.

―Que dó! ―ela murmurou, enquanto procurava pelo cachorro. ―Nunca imaginei que pudesse existir tanta coisa ruim nos contos de fadas!

Repentinamente, o badalar do relógio da igreja marcou meia-noite. Dorinha, que lembrava claramente da história contada pelo pai, desesperou. A vendedora de fósforos deveria estar prestes a morrer, e de nada teria adiantado essa visita ao mundo mágico.

―Jú, cadê você? ­―Dorinha gritava, mas o ar frio castigava a tal ponto, que ela quase não conseguia falar direito.

Andou até onde conseguiu, e encostou-se na parede de um beco. Deixou o corpo escorregar, e quando estava quase sentando na lama, escutou um latido. Era Jujubão, e o latido vinha do fundo do beco. Dorinha levantou rapidamente e correu o quanto pode, mas ao chegar onde estavam seu cachorro e a menina, desanimou.

A vendedora de fósforos estava deitada, abraçada ao cachorro. Jujubão mal se mexia, mas não pelo frio, e sim para manter a menina colada ao seu pelo, tentando mantê-la aquecida. E quando viu Dorinha se aproximando, latiu novamente e lambeu freneticamente o rosto da vendedora de fósforos.

―O que foi, Jú? Por que você está lambendo ela? Ela está...

Dorinha parou de falar e observou. Algumas estrelas, muito pequenas, brotaram do rosto da menina. Era como se fosse um pó dourado, e começaram a flutuar. Um tom amarelado brilhante verteu por todo o corpo da vendedora de fósforos, e do nada, tudo pareceu aquecer.

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―O que está acontecendo, afinal? ―Dorinha perguntou, olhando para o cachorro, que latia de maneira persistente, quase em agonia.

Dorinha, instintivamente, deitou-se sobre a menina e tentou aquecê-la. Era a única coisa que poderia fazer naquele instante. E rezou, rezou muito. Quando abriu os olhos, viu ao chão alguns palitos de fósforo queimados, e ao lado, a caixa vazia. Talvez fosse tarde demais.

Jujubão parou de latir, mas continuou ao lado das meninas, aquecendo-as. Dorinha, sentindo a ação do frio, adormeceu, e também começou a brilhar, deixando brotar de sua face o mesmo pó dourado que nascia da vendedora de fósforos. E assim, a noite passou.

No dia seguinte, um alvoroço se fez naquele beco. Um amontoado de pessoas falava sem parar, e sequer a presença da polícia fez com que eles parassem.

―Duas indigentes e um cachorro! ―um policial comentava com outro, que pelo fardamento, parecia ser seu superior. ―Não suportaram o frio, senhor! Uma pena! Bem na noite de Natal! Vou mandar o rabecão recolhe-las.



continua...


Marcio Rutes

não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.

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Este conto é uma alusão ao original "A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS" de Hans Christian Andersen. O conto original de Andersen foi publicado pela primeira vez em 1845, em dinamarquês, com o título Den Lille Pige med Svovlstikkerne, que significa "A menina com os palitos de fósforo".

Saiba mais: 


17 comentários:

  1. E assim a Dorinha adentra novamente no mundo mágico da menina dos fósforos e encanta ., apesar de triste é quando a beleza ganha ares de ternura e compaixão.
    Sempre leio muitas fábulas e quando estou em Genebra fico a traduzir as de La Fontaine , que as netas treinavam quando chegaram lá e eu tento me familiarizar um pouco com o francês _ a estante delas só não cabe nada em português rs Sao todas lindas e poéticas_as inesquecíveis 'a cigarra e a formiga, a raposa e as uvas', além do privilégio de pdermos viajar pela mente do escritor como você sabe bem conduzir-nos ,Márcio. Adoro !
    Esse finalzinho 'vou mandar o rabecão, recolhe-las' foi bem dramático , quis machucar o coração dos leitores., não foi?
    Um abraço e Parabéns , sempre parabéns pelo dom maravilhoso de pintar a cores os seus contos. Beijinhos,Márcio e boa semana.
    Aqui chove uma chuvinha dengosa que gosto demais !

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    1. Poxa vida, Lis. Você falou em Genebra, e eu lembrei de meu mentor, meu amigo, meu gurú André Bessa, maestro, poeta, cronista e publicitário maranhense, e que residia na Suíça. Infelizmente já nos deixou, e fazia parte lá daquele nosso grupo de blogueiros da década de 2010. Que saudade.
      Já quanto à Dorinha, vou deixar um spoiler pra você. Esse conto da Pequena Vendedora de Fósforos foi responsável por eu me afastar, e por muito tempo, das fábulas. Lembro que, lá pela minha pré-juventude, ao ler o texto, fiquei amargurado com o final da fábula, e me fechei para esses contos. Não consegui digerir o que o Andersen reservou para a protagonista.
      Voltei a escrever um tempo depois, mas nada voltado para o infanto-juvenil, até que um dia, do nada, nasceu uma fábula com o título "Fábula das Pérolas", que publiquei inicialmente no Recanto das Letras. Alí, vi que eu poderia fazer "justiça" para a Vendedora de Fósforos, e foi o que fiz aqui.
      Realmente, essa parte do Rabecão foi proposital, mas como uma admiradora de Dorinha, pode esperar, que ainda existem mais dois capítulos deste conto. E quer saber? Aposto que irão correr algumas lágrimas, mesmo que escondidas ou disfarçadas, dos teus olhos. Eu considero esse conto como o melhor que já escrevi.
      Lis, minha querida amiga, aqui tá friiiiiiiiio, mas sem chuva. Mas, tá gelado. Quero o sol capixabaaaaaa. Beijos, moça. Linda semana pra ti.

      Marcio

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  2. Márcio você conseguiu emoldurar a tristeza dessa primeira parte do conto numa beleza tão delicada que ainda que ele assim terminasse, ficaria algo de belo e arrisco dizer ser a compaixão.
    O amargor que lhe tomou pela época da juventude foi, talvez sem você inicialmente se dar conta, decantando e transformando e hoje, mesmo trazendo as coisas tristes ( e olha só, até no mundo das fadas elas acontecem ) tudo está polvilhado por um pozinho mágico de delicadeza.
    Realmente lindo.
    Um abraço, ana paula

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    1. Oi, Anaaaaa.
      Esse conto de Natal só está aqui, nesta época, por causa de três pessoas. Você é uma delas, e as outras duas sabem bem quem são, néééé Lis!!!!???
      Esse conto/fábula é muito especial para mim. Sempre falo que a publicidade me refinou, apurou, e me deu um público específico, mas este conto... ele me marcou, e ensaiei uma re-leitura por anos, e é bem como você disse, foi incondicional. Foi sem eu me dar conta. Precisei criar uma personagem para ir até lá, para interferir e fazer... ops... calma, que tem mais dois capítulos. E como falei para a Lis no comentário acima, tenho certeza de que você vai rir bastante, mas também ainda vai soltar umas lágrimas.
      Grato, sempre, pelo apoio, minha amiga. Nesses tempos nublados, sempre bom ter alguém (alguns alguéins) que falem a verdade pra gente. Grato, e muito.

      Marcio

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    2. Bom Márcio, eu tinha um olhar tão rígido para os " da publicidade"... você já deve imaginar, uns manipuladores e por aí vai.
      Então agradeço por me tirar desse lugar congelado e apreciar o que a publicidade também pode fazer de maravilhosos. Você e Carrascoza são responsáveis por me conduzirem para esse outro lugar!

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    3. Menina, você não tem ideia de como me deixou feliz com esse comentário. Você sempre volta para conferir se publicou ou não, então neste, em específico, fico esperando tua resposta. Você fez faculdade. e sabe o quanto é desesperador o futuro. Será que aquilo que estamos estudando pode gerar algo? Pode mudar a vida de alguém? Para melhor?
      Quando fui para a publicidade, eu buscava algo muito específico. Queria melhorar minha redação. Te confesso. Eu consegui. Faço síntese na maior brincadeira, identifico público, brinco com ele sem agredir, sei identificar cada elemento, mas, o melhor, e por incrível que pareça, a publicidade, que aprendi a amar, me fez ser mais humano.!.!.! Pode?
      Amei teu comentário, ainda mais citando o Carrascoza, um dos meus mentores!
      Linda semana, moça!

      Marcio

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  3. Que belo, mas os contos de fadas também tem sofrimento, sim! E como li.
    Lembro da coleção que meu pai me deu, Reino Infantil, eu era bem criança. Li tudo em pouco tempo. E fiz a bobagem de me desfazer dos livros daquela minha época.
    Acho que tem de haver sofrimento em certas historias, afinal, elas ensinam, moldam nossos sentimentos, nossa solidariedade começa nesse ponto. Vejo a beleza dessa menina ao se aconchegar à outra para esquentá-la do frio. Olha que coisa mais linda!
    Já está ficando emocionante, Márcio! Mas pega leve, rssss. Aguardo, então.
    Fico muito contente de você ter voltado a escrever, não se bota talento fora.
    Um beijo, querido amigo, muita paz nesse mundo que não é tão encantado.

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    1. Eu não pego leve nãããão, Tais!!!! Brincadeira, pego sim!
      Vai com calma, que no próximo capítulo, você dará risadas. Mas, no terceiro... vai ser de renguear cusco no pasto! Você vai chorar!
      Realmente, a parte em que a Dorinha deita sobre a Vendedora de Fósforos, para aquecê-la e não deixá-la morrer, é de uma comoção que até eu fico admirado. Escrevi isso sem me ater. Só desceu e eu mandei prá tela. Me arrepia.
      Menina, to doidim pra colocar o próximo capítulo na tela, mas falta alguns alguéns... Cadê Pedro? rsrsrs.
      Abraços, Tais. Tá frio aqui, mas sem geada. E aí?

      Marcio

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    2. Muito frio aqui, também.
      Aguarda, hoje é o tal de futebol... rsss cruzes.
      😆😅👍

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  4. Olá, amigo Márcio, vou tentar falar sobre essa sua história como se fosse um leitor
    no meu tempo de menino, quando abria os livros de contos infantis e ficava ali sentado, olhando ao longe, com vontade de entrar na história, agora tive essa mesma sensação, queria entrar na história com um cobertor na mão e estende-lo sobre a Glorinha, a vendedora de fósforo e o Jujubão na esperança de que com o calor do cobertor eles ficassem a salvo. Foi isso que senti pelas três criaturas. Essa sua história confirmou que Márcio é um excelente contador de história.
    Parabéns, amigo!
    Uma boa semana, com saúde e paz.
    Grande abraço.

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    1. Dos contos de fadas, essa da vendedora de fósforos é a que mais me toca, Pedro. Nunca consegui aceitar o final, com a menina morrendo sem sequer ter alguma chance de viver dignamente. É um atrevimento de minha parte interferir nessa história, mas, ao mesmo tempo, acho que tenho uma dívida com essa menina, e se eu não escrevesse essa "interferência" da Dorinha, carregaria sempre essa dívida comigo. E também é cruel sabermos que existem inúmeras crianças, no mundo real, em situação iguais ou muito piores, não é?
      Pedro, meu amigo, que você e Tais tenham um ótimo fim de semana. Sempre grato pela sua atenção e generosidade aos meus escritos. Abraços.

      Marcio

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  5. Marcio,
    Hoje estou aqui em missão especial.
    Parabéns por esse seu
    Blog que tanto representa
    para nós Blogueiros e Blogueiras!
    Grata por existir.
    Bjins
    CatiahoAlc.
    do Blog Espelhando
    Confere lá:
    https://reflexosespelhandoespalhandoamigos.blogspot.com/2023/08/con-versa-sobre-o-dia-do-blog.html

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    1. Olá, Catia.
      Tenho demorado para aparecer por aqui, isso ainda por conta da recuperação da cirurgia no joelho, Dói um pouco quando fico sentado, e como não utilizo a web no celular, só me resta o computador de mesa.
      Fui até seu blog, mas infelizmente, o blogger não me deixa comentar em alguns blogs parceiros, e o seu é um deles. Tentei entrar em contato com a plataforma, mas eles não conseguem resolver o problema. Dizem que são as configurações do meu próprio blog, mas não apresentam solução. E assim, fico eu a deriva. Me perdoe.
      Um grande abraço pra ti, Catia, e um lindo fim de semana.

      Marcio

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  6. Grande amigo Márcio, sua arte no conto é fantástica na descrição, que nos faz criar as imagens e adentrar nas cenas. Emotivo conto amigo que prende à leitura e aos personagens.
    Agora vou lá na continuação.
    Um abração amigo.

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    1. Bóóóóóóra, porque já tem a parte 3, o final. Toninho, meu querido amigo, você aqui é sinal de júbilo, é festa. Comentário foi curtinho, mas a alegria é imensa. Itabira tá quase cidade-irmã de Curitiba.
      Linda semana pra ti, meu irmão.

      Marcio

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  7. Olá Márcio, eis-me aqui depois de bastante tempo e vi como uma pausa nos faz perder tanta coisa...Mas foi necessária, pois eu não conseguia nem sequer acompanhar as letrinhas no computador, que pulavam para lá e para cá sem parar...
    Ainda não estou bem, mas já dá para poder ler, se concentrar e percebi que perdi um lindo conto. Ele já está na parte terceira, mas devagarinho vou tentar ler todos os capítulos, você só precisa de um pouco de paciência comigo...
    Mas nossa, que triste amigo, é tudo muito lindo, escrito maravilhosamente bem, mas tem uma melancolia tão intensa que nem o cãozinho Jujubão conseguiu atenuar. Mas é esse o segredo do talento, do dom da escrita. A grande vantagem é que esse é só o início e milagres sempre acontecem, seja nas fábulas, nos contos ou na vida real.
    Abraços amigo e em breve voltarei para ler a parte 2!
    Ah, e você em notícias do gatinho Farofa? Tomara que sejam boas!
    Linda semana!

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    1. Driiiiiiiiii.... feliz com tua presença, menina.
      Tá tudo meio complicado por aqui. Trabalhando demais.
      Vamos pelo final. Farofa não apareceu mais, se ele se mudou, não quis mais voltar, mas, infelizmente, acho que a história é outra, com um desfecho que me dói em falar, então... bóra mudar de assunto.
      Moça, esse conto está aqui por conta de quatro pessoas, e uma delas é você. Feliz ver você aqui, e tem mais dois capítulos pela frente. rsrs.
      Linda semana pra ti, menina. Bjs.

      Marcio

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