domingo, 13 de agosto de 2023

TEMPOS MODERNOS – CHOQUE CULTURAL

 

São Paulo/Capital - imagem coletada no Google
―Mas, pai! Eles precisam ficar, necessariamente, aqui em casa?

―E que mal há nisso, Helô? ―o pai retrucou, armando uma expressão de espanto. ―Nosso apartamento é enorme, com quartos sobrando, e eles ficarão apenas uma semana.

―Afinal, por que essa visita assim, tão repentina?

―O primo está procurando propriedades por aqui para investir o dinheiro dele, que não é pouco. É claro que eu quero faturar alguma coisa com isso, pois sou corretor, e um dinheiro a mais é sempre bom. Não custa nada mimá-los um pouco. Sem contar que eles são do interior e raramente viajam para grandes centros. Ficariam perdidos numa metrópole como São Paulo, e poderiam até cair nas tramoias dos pilantras que existem por aqui e que estão apenas esperando por vítimas fáceis.

―Eles cheiram a bosta de vaca, papai! E tem mais. Como fica nossa privacidade?

―Pode parar com essas atitudes e com esse pensamento preconceituoso, filha! Eles são do interior sim, mas não são Neandertais. A educação deles é outra, claro, com valores diferentes dos nossos. O que você julga importante, para eles pode não ter serventia alguma. A cultura deles é outra também, mas isso é bom. Vejo pelo lado positivo. Você poderá levar seus primos para passear num shopping. Tenho certeza de que eles nunca entraram em nenhum. Você poderá apresentá-los para seus amigos...

­―O queeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeê? Never, dad! Never! Como vou apresentar eles para meus amigos? Vai ser um mico só! Imagine eu falando “esses são meus primos Cajuíno, Perestróica e Solstício”. Tem dó, papai! Isso lá é nome de gente?

―Equinócio, filha! O nome do seu primo é Equinócio, e não solstício! ―o pai desanimou, baixando os ombros. ―Sei que são nomes, digamos, diferentes, mas isso não é problema nosso, não é? Cabe a nós tratá-los com respeito e educação, independente de como são seus nomes.

―Mas, pai... Perestróica? De onde seus primos acharam esses nomes? Equinócio? Cajuíno? Se esses são os nomes dos filhos, imagina o nome que eles dão para os animais de estimação!

―Isso vai ser mais difícil do que eu imaginei. Deus meu, dai-me paciência.

Repentinamente, pai e filha notaram a presença de mais alguém na sala, que passou por eles e se jogou no sofá para poder esticar as pernas. Os dois cruzaram o olhar e permaneceram algum tempo calados, até que aquele novo personagem tomou a palavra.

―O que foi, sogrão? Fiz algo errado? E você, meu amorzim? Por que levantou tão cedo hoje? Não quis ficar mais um tempinho nos braços da tua “momôzinha”? Aliás, Helô, quero que você vá comigo lá naquele tatuador da Praça da República. Ele recebeu uns piercings da hora, meu amor. To pensando num de seio pra você e num vaginal pra mim. Putz, vai ser dá hora! Que tú acha, sogrão? Fala aí, véi (velho)!

Pai e filha se olharam novamente e suspiraram. A filha arregalou os olhos e mirou o pai, como se questionasse algo, e sem ter o que fazer, o pai desanimou de vez.

―É! Acho que você tem razão, Helô! Não será uma semana fácil.

Léo, o pai de Helô, reconsiderou o convite que havia feito ao primo, e tratou de tentar remediar aquela situação desconfortável em que se metera. Telefonou para o primo no mesmo dia, mas foi em vão. Inventou uma história qualquer, porém, notou que o primo não estava compreendendo o motivo, e optou por deixar que o destino seguisse seu curso. Além do que, as perspectivas de uma boa comissão com a indicação de imóveis para o parente serviriam para consertar tudo após o vendaval que se moldava para a semana. Então, que viessem o primo e sua família.

E o dia chegou. Chegou até antes do que o previsto.

Léo abriu a porta do apartamento e viu sua filha ao celular, com aspecto de preocupação. Esperou que ela desligasse o aparelho e foi até ela, questionando-a.

―O que foi, minha filha?

―O que foi? Eu digo o que foi! Aconteceu que seus primos, por um erro de data ou sabe-se lá por que, resolveram chegar um dia antes. Ligaram pra cá, e você não estava. Os empregados tentaram te localizar, mas teu celular da Vivo tava tão morto que não deu pra dar sequer um Oi, é Claro! Eu tava na faculdade, sem poder dar atenção. Então, a momô resolveu ir buscá-los! Foi isso que aconteceu!

―O quê? ―o pai esmoreceu, deixando o corpo cair no sofá. ―A Necona foi buscar os primos? Danou-se!

―Paieeeeeeeeeeê! Quer parar de chamar minha namorada de Necona! Neca. Chama ela de Neca. Mas o pior é que o senhor tá certo! Danou-se!

Tanto Léo quanto sua filha ficaram apreensivos. Neca sequer conhecia os parentes da família que estavam chegando, e diante da criação interiorana a que eles foram submetidos por uma vida inteira, era quase óbvio que um choque cultural catastrófico estava para acontecer, principalmente pelo modo muito extrovertido com o qual Neca tratava as pessoas.

As tentativas de contato por telefone entre Helô e Neca foram muitas, mas não surtiram efeito. As horas passavam e, assim, aumentava ainda mais a tensão sentida por pai e filha. Até que, sem aguentar mais a espera, Léo tomou uma decisão.

―Não aguento mais essa demora. Vou atrás deles.

―Mas, pai! E aonde você vai procurá-los?

Helô interrompeu bruscamente o que falava e olhou para a porta. Um barulho de chaves, seguido de algumas gargalhadas do lado de fora do apartamento, fez com que pai e filha se entreolhassem. E não demorou para que Neca e os primos de Léo entrassem, com todos na maior alegria.

Sem entender o que estava acontecendo, Helô questionou ao pai apenas com um olhar, o qual foi retribuído com um questionamento de olhos ainda mais arregalados.

―Primo Oscar... que bom vê-lo! ―Léo levantou a mão para um cumprimento, meio sem saber o que dizer. ―Que bom que vocês chegaram bem... e inteiros!

―Ara, sô! ―Oscar olhou com certo espanto para Léo. ―E prú quê havéra di nóis num chegá intêro? A tar da Canecona aí é boa de boléia. Sem contá que cos desvio que ela feiz, já conhecêmo metade da cidade.

―Canecona? ―agora era a vez de Helô arregalar os olhos, assustada. ―Que Canecona?

―Ué! Essa... esse... essa... ―Oscar começou a responder, mas ficou em dúvida sobre como definir ou se dirigir a Neca. ―Cumé que te chamo, Canecona? De sinhô ou de sinhá?

―Véi, na boa? ―Neca respondeu, se jogando no sofá. ―Lá no interior vocês chamam como? Se eu não me sentir desrespeitada, pode me chamar como você quiser.

―Intão tá bão! ―Oscar retomou a palavra. ―Foi essa moça que oceis mandáro pra modo de buscar nóis no aeroporto que falô ansim. Ela se apresentô como Manuela, mas disse pra chamar de Caneca ou Canecona. Modéstia parte, gosto de coisa grande, intão, chamo de Canecona.

―Ai, Deus! Me dá uma canecona de paciência. ―Helô olhou para o alto, suplicando.

Ao olhar novamente para a namorada, Helô viu que ela se divertia com a situação, e a reprovou imediatamente, mordendo os lábios inferiores. Neca sabia que a namorada, ao fazer tal coisa, tentava demonstrar irritação, mas pouco ligou e continuou rindo com tudo aquilo que ouvia.

Alguns minutos foram necessários para que os cumprimentos e apresentações fossem feitos e, em seguida, cada um foi levado para um quarto. O apartamento era enorme, e depois de todos acomodados, Léo chamou o primo para um canto, ainda mostrando preocupação.

―Está tudo bem, Oscar? A Neca não assustou vocês?

fogão a lenha - imagem coletada no Google
―Óia, primo! Nóis é do interior, mais ao contrário do que oceis aqui da capitar pensa, nóis não é burro não. Diz pra mim! Ocê acha que lá donde nóis veio num tem gay? E tem mais. Nóis tem tevelisão. Nóis tem computador. Nóis tem tabléte. Nóis tem Iphone e aipim. Nóis já viajô pra muita cidade maior du que São Paulo. E essa tar de homossechualidade não é segredo pra nóis não. Intão, sê ocê pensa que nóis ia tratar mal só porque ela é ansim, julgou tudo errado. É mior ocê rever esses conceito teu sobre nóis lá da roça.

―É... bom... quer dizer... nem sei o que pensar!

Léo empalideceu. Jamais pensou escutar tudo aquilo do primo. Naquele instante, percebeu que, mesmo sendo alguém com excelente formação e com mente aberta para muita coisa, ainda empregava certo preconceito com relação a alguns assuntos até triviais. Desculpou-se e tentou retomar a conversa.

―Que bom que vocês se deram bem. Mas, me diga! E o que você achou do que viu nesse passeio que a Neca proporcionou?

―Ah! Mais é muito carro e ônibus pra tudo lado. Num vi um pé de gaviróva nos quintar. Num vi um passarinho que não fosse urubú avoando. É muita gente apressada. Inté tá parecendo quando eu e a Aleluia tivêmo em Nova Iorque, lá nos estêites.

―Vocês foram para Nova Iorque? Tá brincando comigo!

―Ara! Mais e não? Nóis, na verdade, só dêmo uma passadinha por lá, pois a gente tava indo pra Canecaticute. Nóis queria ver um leilão numa feira de maquinário que ia ter lá. E como tinha tempo de sobra, dêmo uma paradinha na tar Nova Iorque.

―Caneca... o quê? ―Léo esboçou um sorriso. ―Não seria Connecticut?

―E não foi o que falei? Canecaticute. Mais lá é frio por dimais da conta. Meus pé gelaram na butina. E falano nisso, primo. Num tem um móia-guela pra me oferecer?

―Móia-guela? Que diabos seria um “móia-guela”, primo?

―Uma purinha. Oceis num tóma nada pra arrefestelá antes das refeição?

―Ahhh! Uma cachacinha? É claro. Venha. Vamos lá para a sala de refeições. O jantar já deve estar quase pronto. Assim, podemos conversar melhor à mesa.

E assim, aquela primeira noite passou, sem maiores alardes. Após o jantar, todos se recolheram, e no dia seguinte, já cedo, Léo tratou de mostrar alguns imóveis para o primo.

Tudo parecia correr bem, com Oscar se mostrando muito interessado pelo potencial empresarial da cidade. Não gostava muito do movimento intenso que via pelas ruas do centro, mas seu tino comercial indicava boas possibilidades de lucro nos imóveis que Léo havia selecionado.

O dia passou rápido, até que no fim da tarde, os dois retornaram para o apartamento de Léo. Lá, uma surpresa. Aleluia, esposa de Oscar, assumira o comando da cozinha, e estava preparando o jantar.

―Ora, pai. E eu ia fazer o que? Ela insistiu, dizendo que queria ser útil. O pior é que a Neca ficou colocando pilha. Até levou a dona Aleluia ao mercado. Agora, deu nisso.

―Tenta ficar tranquila, filha. O primo ficou muito interessado em quatro imóveis. Vou tentar apressar o máximo que eu puder toda essa transação. Por isso eu te rogo. Não vai querer surtar!

―Não? E se eu te contar que a Neca tá arrastando a asa pra cima da Perestróica?

―Não entendi. Me explica isso, Helô!

―É bem isso que você escutou, papai! Eu conheço bem o olhar safado da Neca. Foi com esse mesmo olhar que ela me conquistou. Tenho certeza de que a Neca tá interessada na perestróica da Perestróica.

―O queeeeeeee? Do que você tá falando, filha? Perestróica da Perestróica? Dá pra falar a minha língua?

―Ah! Deixa pra lá. O senhor só tá interessado é no dinheiro do seu primo. No mais, quer é ver o circo pegar fogo, que eu sei!

Helô cerrou os olhos e deu as costas para o pai, saindo em seguida para o corredor. Léo, ainda sem entender, foi atrás dela, mas parou assim que passou pela sala. Lá, em uma conversa muito animada, estavam Oscar, Neca, Cajuíno, Equinócio e, claro, Perestróica.

―Se acomode cum a gente, primo. A Canecona tá fazeno nóis quase se mijar de rir.

―Claro, primo. Claro. Mas, do que vocês estão falando, afinal?

―Óia, primo! Fiquei surpreso! Num é que a Canecona também é chegada num butiá!

―Me dá água na boca só de pensar num butiá bem rechonchudo, sogrão!

―O queeeeeeeeeeee? ―Léo estava sentando quando foi surpreendido pelos comentários de Oscar e Neca. ―Como assim? Butiá de quem? E como você pode gostar do butiá de alguém, Neca, se você não tem... é... não tem pint... ―ele calou por instantes, tentando medir as palavras que estavam a beira de pular de sua boca. ―Ah! Você sabe o que eu estou tentando dizer! E essas intimidades não são assunto pra se discutir assim, diante dos filhos do primo, não é?

―Uai? Vai me dizer que ocê num é chegado em comer um butiá, primo? Eu sempre digo e arrepito. Foi o butiá da minha mulher que deu a riqueza que nóis tem. Se não fosse pelo butiá de Aleluia, nóis tava capinando roça seca inté os primórdio do dia de hoje! Aleluia!

―Aleluia! Aleluia! ―Neca e os filhos de Oscar gritaram em coro, seguindo o agradecimento de Oscar.

―Chamaram ieu? ―Aleluia veio até a porta da sala, mas logo viu que o grito de “aleluia” fora em outro sentindo. ―Oxe. Ocêis inda vão gastá meu nome. Vô vortá lá pras panela, isso sim!

―Primo, mas que falta de educação é essa? Falar desse modo grosseiro de Aleluia?

Léo parecia aturdido. Não sabia como se comportar diante daquilo que Oscar falava, ou melhor, daquilo que ele achava que tinha escutado, pois pensava, nitidamente, que o assunto havia tomado ares chulos ou obscenamente pornográficos.

―Ara, primo. Que é isso? Num to sendo grossero coisa nenhuma. Aleluia tá lá na cozinha. Falo dela sempre com respeito e admiração. Ocê é que parece num gostar muito de butiá. Se é que já comeu arguma veiz um bão dum butiá bem do maduro e vertendo caldinho. Intão, se é ansim, dâmo um jeito rapidinho. Quer comer o butiá da Aleluia?

A face de Léo enrubesceu, e ele, mesmo com a boca aberta, pouco conseguia falar. Balbuciava algo, mas seus pensamentos estavam completamente perdidos.

―Não acredito no que estou ouvindo! ―Léo finalmente comentou, tentando ordenar seu raciocínio. ― Que pouca vergonha é essa? Você sai por aí, oferecendo o butiá de sua mulher assim, sem um pingo de compostura? Que descaramento é esse?

―Não, primo! Não é “compostura” que fala. Nóis faiz em compota. Compotaaaa. E eu ofereço mesmo. Mais ela não dá pra quarquer um não. Prá maioria nóis vende. Sinão, como nóis ia ganhar dinheiro? Minha mulher vende o butiá dela, e junto, vai o leite da Perestróica.

Numa poltrona ao lado, Neca ria desmedidamente. Ela sabia que Oscar estava falando do fruto do butiazeiro, que é uma palmeira muito conhecida, e não daquele “butiá” que Léo estava imaginando.

―Cajuíno, moleque da moléstia! Vá lá com sua mãe e traga o butiá dela pro primo dar uma provada.

―Pode parar! Isso já está passando dos limites! ―Léo tentou argumentar, quase desesperado.

Cacho de Butiá - imagem coletada no Google
Cajuíno saiu da sala, mas voltou rapidamente. Trazia nas mãos alguns frutos pequenos e arredondados, completamente alaranjados. Léo, quando viu aquilo, corou de vergonha.

―Então... esse é o butiá de Aleluia?

―Ara! E quar butiá o primo tava pensando que era? ―Oscar arregalou os olhos e deu uma gargalhada. ―Nóis vive da prantação das parmera de butiá. É lógico que agora nóis tem fazenda de gado, fazenda de prantação de soja, e umas par de otras fazenda, que nem me alembro dereito quantas são. Mais nóis comecêmo ganhá dinheiro com o butiá das terra seca da herança da Aleluia, e mais adespois cás vaquinha de leite que comprêmo pra Perestróica. Pensei que o primo já era sabedor dessas coisas!

Neca continuava rindo sem parar. Léo olhava incrédulo para o primo, e com muita vergonha, colocou um daqueles frutos na boca, mordendo e chupando em seguida. Sua tensão era tanta, que sequer reparou no caroço que o fruto possuía, como se fosse um coco em miniatura, e engoliu tudo, quase se engasgando.

­―Eita, sogrão! ―Neca foi até ele, em socorro, e deu alguns tapas em suas costas, até que ele pareceu engolir aquilo. ―Entrar, o caroço entrou! Agora, quero ver sair!

Pouco depois, com os ânimos e risadas mais calmos, Aleluia chamou para o jantar. E foi nessa hora, com todos à mesa, que o assunto anterior ganhou proporções maiores. Mais precisamente no que dizia respeito ao caroço do butiá que Léo engolira.

―Parece piada, papai! ―Helô comentou, soltando um sorriso. ―Até eu sei que o tal butiá tem caroço. E agora?

―Já falei isso pra ele, momô! ―Neca esticou um olhar irônico para o lado de Léo e, sem dó, soltou um comentário sarcástico. ―Entrar, entrou. Sair é outra história. Pior é que pato não peida. Senão, até saia fácil.

―Como é? ―Léo quase se engasgou novamente com um pedaço de carne que levara à boca.

―Eu adiscordo! ―Oscar arrematou taxativo, olhando para Neca. ―Pato peida sim! Purque num havéra de peidar? Num é, Aleluia?

―Acho que não, meu véio. Num alembro de ter escuitado ninhum pato peidá inté hoje.

―Mais como é que não, Aleluia? E o Qüenca? Vivia peidando pra tudo lado! Era o Equinócio chegar perto, o Qüenca saia correno e se encostava na parede, peidando feito um louco.

―Ara, paiê! Num fica falano minhas intimidade. Mi deu inté vregonha agora! ―Equinócio, que sentara ao lado de Neca, baixou a cabeça, completamente corado.

―Gente, que é isso? ―Léo tentou retomar a palavra. ―Vocês estão malucos? Isso aqui é uma refeição! Merece respeito.

―Oxe, primo! Mais quem é que tá desrespeitano? Só constestei a Canecona. Ela é quem falô que pato não peida. Eu afirmo que o pato lá do Equinócio, o Qüenca, peida sim! Peida e depois se borra todo!

―Mas isso não é conversa que se tenha numa refeição! E além do que, não se fala que alguém “peida”! Se for necessário fazer menção a isso, então diga que alguém “flatula”.

―Óie, ocê tá doidinho, primo! Pato não flutua. No máximo, ele pode avoar, mas não flutuar. Só se for na água, daí sim. Acho que essa tar de tevelisão tá te fazendo mar pros noronho.

―É isso mesmo, sogrão! ―Neca, rindo novamente, continuou provocando. ―Tudo começou com você engolindo alguma coisa maior do que o buraco de saída que você tem. Agora, aguenta, véi!

imagem coletada no Google
―Isso tudo já tá passando dos limites do razoável! Vamos mudar de assunto? Vocês se importam?

―Arre! Intão tá! Vamos comer em silêncio. ―Oscar determinou, meio sem entender as atitudes de Léo. ―Mas intão me diga, primo! Tá boa a bóia da Aleluia?

―Ah! Sim. Quanto a isso, não há duvida! Uma delícia. Gostinho de comida do interior, com um sabor sem igual. Diferente de tudo o que temos por aqui. E por falar nisso, Aleluia, o que é essa carne ensopada que você preparou? Está sensacional!

―Óie, primo. Num achei os grediente que to acostumada, mais a Canecona me deu uma ajuda lá no açougue.

Léo abriu um sorriso mas, ao olhar para Neca, cerrou os lábios. No prato da moça não havia nada além de algumas folhas de alface e um pouco de arroz. E isso fez com que uma ponta de desconfiança brotasse instantaneamente, tanto em Léo quanto em Helô.

―É...! Do que, necessariamente, é feito esse seu ensopado, dona Aleluia? ―Helô perguntou, temendo pela resposta.

―Nada de muito especiar. Nóis dêmo foi é muita sorte de encontrar uns bago de boi da miór qualidade.  Nunca vi lá no sítio argum touro com bola tão grande ansim. E pra completar e dar sabor, um bucho de porco e bastante banha que eu merma derreti dos toicinho que troxêmo lá do sítio.

―Ai!

Esse “ai”, dito em conjunto por pai e filha, foi a única coisa ouvida por todos antes que ambos saíssem correndo para o banheiro. Oscar e Aleluia, sem entender, olharam para Neca e viram a moça balançar a cabeça e sorrir fartamente.

―Hehe! Bom, agora eu imagino que ele vai descobrir se pato peida ou não. ―Neca comentou e, em seguida, elevou o tom de voz, para ser ouvida por todos que estavam naquele apartamento. ― Força no butiááááááá, sogrão!


Marcio Rutes



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15 comentários:

  1. Avisa o primo Oscar que ele não vai mesmo encontrar um pé de gariróva no quintal porque aqui em Sampa já nem deve ter mais quintal!
    Refletir sobre os meus preconceitos com essa leveza, foi o principal que me fisgou nessa história. A gente dá por certo, ou melhor, eu, falo por mim. Dei por certo as situações, mas que maravilhoso um primo Oscar para me sacudir e fazer ver além.
    Acho que receber um hóspede assim... abala as estruturas!
    Excelente leitura fiz aqui. Obrigada por isso Márcio!
    Abraço.

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    1. rsrs. Abala as estruturas? Você que dizer que derruba o prédio inteiro, né?
      Oi, Ana. Eu tinha uma série, lá pelos idos de 2015, que retratava esses "choques culturais" e os tempos modernos, e essa crônica veio de lá. Eu lembro que, na época, muitas pessoas se assustavam especificamente quando eu retratava um encontro interiorano com o meio citadino. Parece que existe uma resistência do meio urbano em entender que o interior tem tudo o que nós temos, e eles são tão antenados quanto nós. Pena que esse blog antigo virou fumaça, pois os comentários que eu recebia chegavam a render crônicas, de tanta bizarrice que eu lia.
      Ana, grande abraço e uma linda semana pra ti, menina.

      Marcio

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  2. Nesse mundinho digital o choque cultural já quase não existe mais, viu como a turma do Oscar entendia bem sobre o que rola na cidade ,já os da cidade estavam perdididinhos, eu demorei para saber o que seria o 'butiá da Aleluia' . risos .
    Quase parava tudo para consutar o sr,google , quando vi as frutas, o coquinho tipo babaçu (ou melhor parecido), cheio de fiapos que conhecia desde a infância., no interior . Gostei tanto dessas visitas, Márcio, amo esse pessoal do interior - aquela simplicidade sem vergonha de ser quem é entende ? sem os milindres da cidade .
    Já a comidinha não ia aguentar não , amigo .Ia pedir socorro !!
    Uma leitura prazerosa,Márcio e claro que há esse contraste dos dois mundos, vejo-como o das plantações e do pomar e os que comem sem nem sequer de onde veio. E a conversa é mesmo um caso à parte. risos.
    Gostei muito, que venha mais e mais... deixando abraços .

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    1. Bom, com esse jantar, te juro... iria procurar a primeira lanchonete e ficaria por lá, até os "primos" irem embora. Affff...
      Oi, Lis.
      O problema do "butiá" vai mais longe do que aquilo que você entendeu. Por aqui, o "butiá" é associado a uma parte do corpo humano, que não posso falar abertamente por aqui, mas é o........ deixa pra lááááá. E o tal do coitado do Léo estava associando a fruta a essa parte do corpo. Putz... deixa eu calar minha boca. rsrs.
      Mas juro que essa foi a última citação do "Butiá de Aleluia" que aparece por aqui. hehe.
      Lis, grande abraço e linda semana pra ti.

      Marcio

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    2. Rindo desse retorno, Márcio. Sim , entendi tudinho sobre o tal 'butiá' que o Léo insinuava_ para de achar que sou ingênua risos. Aí você vai lá e me confunde dizendo _ 'é butiá,moça' enfim de verdade verdadeira é coquinho ou não é ? risos Boa noite,amigo

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    3. Oi, menina ingenua... rsrs. Bate neu não... Já chega a Tais aí no coment de baixo querendo expulsar meu primo.
      Liiiiis. O coquinho que você conhece não tem nada a haver (é assim que inscrinhéve?) com o butiá! Assim que meu pézim de butiá der fruto, te mando alguns, e tenho certeza que você vai adorar.
      Agora, tem um detalhe! Povo tá me provocando, e tudo por causa da linguagem... intão tá mir de bão... vô apiorá a coisa! Num sei se se aprocederá no pórximamente, mais vô aproxegá um inda piór! rsrsrs.
      Cêis que aprocure o tar dotôr! Dotôr Gugooul! rsrsrs.
      Bjs, minha amiga. Fui!

      Marcio

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  3. rssssssssss, eu fiz a primeira leitura ontem de noite. E não dá de aguentar esse teu primo, Márcio! Mas toda a vida fico com a Helô, me coloquei no lugar dela e no teu, é difícil um hóspede dessa qualidade, desse QI maravilhoso, meu amigo, e essa tua linguagem é um 'código de informática!'
    Aliás, já li uma outra história tua com uma linguagem parecida, essa piorou
    muito! E que nomes lindos do Cajuíno, Perestróica e Solstício!

    “― Óia, primo! Nóis é do interior, mais ao contrário do que oceis aqui da capitar pensa, nóis não é burro não. Diz pra mim! Ocê acha que lá donde nóis veio num tem gay? E tem mais. Nóis tem tevelisão. Nóis tem computador. Nóis tem tabléte.”

    O tal de Butiá...’cruiz-credu’ rs
    A canecona…!! Vixe.
    Uai, Márcio, que família horrorosa tu foste inventar, rssss!
    Agora, o mais marcante foi esse diálogo com teu primo do outro mundo, e esse código secreto que, aliás, é a tua especialidade.
    Muito, muito bom, querido amigo! Aplaudo essa tua veia genial para colocar aqui o maior choque cultural que vi na minha vida. Foi difícil ler coisas e coisas do priminho… que coisa! Exige tradutor. Acho que desisti de hóspedes. Jamais!
    Um humor que foi na mosca! Se escrevi algo errado, fica por conta do teu primo!
    Uma ótima semana, vai aí pensando noutra...
    Abração daqui do Sul, ou sur? rss sei lá.

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    1. Si ocê acha qui essa tá cuma linguage dificir, eu tengo otras pior ainda, dona sinhá. Pensa num caboclim lá das quebrada di Sorocaba, no Sum Parlo, dando nó nas carriégua dos passante!
      Mais adetarde nóis acunversa....rsrs!
      Oi, Tais! Não tá tão "adificir ansim", né? Pensa em alguém que em Campinas/SP precisou conviver com gaúchos, paulistanos, nordestinos, manauaras, bolivianos, gregos, hindús, e tantos outros... Aquilo foi uma escola. Tempos difíceis, mas deliciosos. Espera que vem coisa pior. Só espera. rsrs.
      Grande abraço, minha querida amiga. Soube algo do Sant'Anna? To preocupado.
      Linda semana pra ti, menina.

      Marcio

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    2. kkkk... esqueci!
      Gostou da "Canecona"? kkkk...
      Achei que ninguém iria falar dela. Tadinha da Manuela! E quer saber? A Manuzinha existe de verdade. E a cada vez que escrevo dela, quase apanho! Mas, vale a pena!
      Abraços sulistas desta Curitiba chuvosa procêis aí mais do sul, menina. Fui.

      Marcio

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  4. Marcio,
    Bravíssimo!
    Ri a valer enquanto lia,
    mas vou rir mais çorque vou reler
    com certeza.
    Muito rico seu texto
    em todos os aspectos.
    Que seja uma volta
    muito bem aproveitada
    por nós,
    seus leitores.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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    1. Olá, Catia.

      Realmente, essa família dos primos é de amargar... rsrs. Nesse período sabático ao qual me obriguei, rendeu bastante, tantos em textos prontos quanto em idéias. Bom, o que eu mais tinha era tempo!!!
      Minha amiga, estou até envergonhado. Não consigo publicar comentários em alguns blogs, e o seu é um deles. O do Toninho é outro que vive me dando problemas. Tanto que acabei de publicar uma fábula, e nela, ao final, deixo um pedido de desculpara para os donos desses blogs. O pior é que o blogger não resolve nada, só piora as coisas.
      Um lindo fim de semana pra ti e um grande abraço, menina.

      Marcio

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  5. Olá, amigo Márcio, quando comecei a ler esta história imediatamente passei a fazer parte dela como personagem invisível. Ali estava eu no apartamento com Léo e Helô ouvindo a discussão deles, em que a filha se negava a receber os parentes do interior. Ali estava eu já em meio a todo o pessoal, os donos da casa com a Necona e o resto do pessoal. Assim participei da história e por isso posso dizer que tudo correu muito bem, com o pessoal da capital e o pessoal do interior. Com estes contrastes me diverti muito e aprendi que na lavoura ninguém passa por bobo, pois tem TV, celular e tablet.
    Estava muito bom meu convívio com essa gente.
    Parabéns, amigo Márcio pela excelente história.
    Uma boa semana, muita paz e alegria!
    Grande abraço

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    1. Transito muito entre esses dois meios culturais, pois muitos parentes de meu pai moram no interior de S. Catarina, e já me habituei a esses contrastes, meu bom amigo Pedro.
      E o engraçado é que somos nós, do meio urbano, que nos assustamos com essas diferenças culturais. Para eles, do meio rural, é tudo mais simples. É claro que eles não entendem algumas coisas que fazemos, e sequer se propõe a admitir algumas coisas, mas nós é que pasmamos com mais veemência.
      E no restante, brincar com esse assunto e fazer comédia é a coisa mais fácil do mundo, pois muitas situações que acontecem no mundo real, em relação a isso, já são cômicas por natureza.

      Pedro, um grande abraço pra ti e família, e um excelente fim de semana para vocês.

      Marcio

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  6. Hahahahahahahaah Salve grande Márcio !
    Que delicia de ler essa crônica. Traz um o choque cultural, quebrando a ideia de que todos que moram na cidade são mais evoluídos, daqueles que moram no campo. A naturalidade como você inseriu a Neca, as variações linguísticas, entre tantas coisas interessantes, fazem o leitor rir do inicio ao fim. Mais uma vez, meus dignos parabéns e obrigado pelos comentários. Vou lapidar esse lado cronista/contista em mim.

    Abração, excelente final de semana !
    Dan

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    1. Olá, Dan.
      Para muitos, a comédia é um desafio, mas para mim, mesmo pensando desse jeito, ela é natural. Quando escrevi meu primeiro texto cômico, que ainda guardo comigo a sete chaves, me surpreendi. Foi fácil. Talvez seja uma questão de percepção, de observação, de recolhimento do material farto que está disponível bem diante de nossos olhos, e que sequer nos damos conta. O fato é que adoro "colocar fogo no parquinho". Todos têm um lado cômico. O problema é que a maioria negligencia, ou até mesmo sufoca, esse lado.
      Já quanto à Neca, essa foi uma parte bastante delicada. Eu precisava entrar com ela para uma "afronta" cultural que o texto pedia, mas nos dias atuais, há que se ter muito cuidado com o que falamos e escrevemos, pois na menor má interpretação por parte de quem lê, os problemas aparecem. Pensei muito em como colocá-la, mas, no fim das contas, resolvi apenas retratá-la, isso porque ela existe, é minha amiga, e ela é realmente assim. Ou seja, só fotografei e revelei o que é real. Ou quase, pois a Neca verdadeira é muito mais esparramada (mas que isso fique apenas entre nós... rsrs.).
      Dan, espero que você volte sempre por aqui. Adorei sua presença.

      Marcio

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