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Seu Almar nasceu pobre, filho de agricultores, lá no começo do século passado. Família grande, muitos irmãos e um pai que amava música. Cresceu e, onde era a propriedade do pai, um vilarejo grande se formou, tirando um pouco a magia do lugar. Desde cedo se enveredou pela carpintaria, mas a marcenaria era algo natural dentro dele. Ainda criança, aos doze anos de idade, fabricou as ferramentas que lhe faltavam para fazer pequenos artefatos de madeira. Eram utensílios domésticos para a mãe e objetos para auxiliar ao pai na lida da roça. Não viveu disso, não ganhou dinheiro, pois era da carpintaria que se sustentava, mas levou a marcenaria até o fim da vida como um linimento para a alma.
Cada ferramenta que ele fabricava era uma extensão de seus dedos e mãos. Tratava melhor delas do que um pai trata a um filho. Era delas que ele tirava alegria, e ele retribuía a elas com imenso respeito e amor. As ferramentas, fosse da carpintaria ou da marcenaria, eram responsáveis por algo que muito orgulhava àquele homem: jamais deixara de cumprir algo que tratara, fosse um serviço ou qualquer outra coisa. Jurava sempre que levaria isso até o fim da vida.
Das terras do pai, restou um pedaço de chão dobrado para ele, que logo foi tomado pelo vilarejo. Nunca teve posses, mas nem precisava de muito. Tinha sua carpintaria e, também, Mariquinha.
Ah! Mariquinha. A Maria dos cachos negros, como era chamada quando ainda menina. Longos cabelos cacheados e um sorriso sempre tímido nos lábios. A lavoura judiou dela desde criança, e aos quinze anos, se viu sozinha no mundo. Os pais, lavradores, morreram de uma peste, sabe-se lá qual, pois sequer ela lembrava. Seu Alberto, pai de Almar e homem de alma boa, recolheu a moça. "Onde come um, comem dez, e ela não vai ficar no relento", disse ele, com um vozeirão de espantar até cavalo no pasto. Mas era esperto, e logo viu que não teria somente mais uma filha, mas, sim, uma nora.
No entanto, seu Alberto sempre cuidou. A moça casou pura, sem que Almar sequer tivesse beijado a moça antes do casamento. Ao menos assim se crê até hoje. E dona Mariquinha, prendada, fez de seu Almar o homem mais feliz daquele mundo. Tiveram filhos, oito no total, todos muito bem criados e educados. Nunca faltou nada. Nenhum deles há de dizer que o suor de seu Almar deixou algo faltar, seja na mesa das refeições, seja no companheirismo de pai, seja na educação que tiveram.
Mas o tempo não perdoa, voa. Cada um dos filhos, no seu devido momento, casou e foi para a cidade grande. Seu Almar sempre falava que enquanto tivesse dona Mariquinha e a carpintaria, viveria feliz, pois os filhos, mesmo com uma saudade danada de doída, esses ele criou para o mundo. Assim, envelheceu, e também Mariquinha, que mesmo com a pele amarrotada, era vista por seu Almar como “a seda que recobria um coração”. Não importava, para ele, a seda da pele, pois para essa, ele nunca ligou. Mas a seda dos sentimentos de um coração puro, que ele sempre enxergou na companheira, seria eterna.
Então, após os filhos partirem para a vida própria, dona Mariquinha passou a acompanhar seu Almar até a oficina todos os dias. Ele sentava naquela cadeira, a que dava para a janela, e ela ficava diante dele, em outra cadeira. Lá, ela cantarolava e asseava as ferramentas, enquanto ele trabalhava lentamente, conforme as mãos comandavam. Foi assim por vinte anos.
Os filhos vinham vez ou outra, e traziam os netos, mas nenhum se interessou em seguir os passos do avô. Até que um dia, em uma manhã ensolarada, dona Mariquinha não acordou. E seu Almar chorou pela primeira vez na vida.
Os anos seguiram, poucos, até a morte de seu Almar. E dia após dia, ele foi para a carpintaria. Sentava na cadeira e trabalhava. Cantarolava as mesmas canções que dona Mariquinha cantava. E quer saber? Seu Almar conversava. Conversava muito. Conversava com dona Mariquinha. Loucura? Talvez. Para ele, no entanto, era a seda de um coração puro que vinha para descansar os olhos avermelhados pela saudade.
Quem olhava de fora, se entristecia. Via seu Almar lá, sentado e naquela agonia. Na hora de ir para casa, ele terminava o asseio das ferramentas. Não descuidou delas. Arrumava cada uma no lugar e fechava tudo. Ao sair, esperava um pouco e dizia, em pensamento: “Logo estaremos juntos. Assim que Deus quiser, eu irei”.
Em uma tarde de setembro, um cliente muito antigo passou pela oficina de seu Almar. Ele encomendara uma viola de cocho há mais de um ano, mas não tinha pressa. Era uma forma de manter aquele pobre homem ocupado, tendo o que fazer do tempo. E naquele dia, o instrumento estava pronto.
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Seu Almar morreu lá, sentado e chorando! Chorando o amor à vida, aos filhos. Chorou e cantou seu amor pelo trabalho, pela profissão, pelas tão estimadas ferramentas. Mas morreu sorrindo, sabendo que dona Mariquinha só esperava ele terminar aquele serviço contratado para vir buscá-lo. Ela sabia, como todos, do orgulho que ele possuía em jamais ter enganado ninguém. E não seria ali, nem diante de tanta saudade, que ele deixaria de cumprir um trato.
O marceneiro, o carpinteiro, o homem da alma musical não está mais lá, naquela janela. No entanto, muitos que passam por lá juram que escutam, ainda, a velha lixadeira fazendo barulho, uma mulher cantando e um homem amando intensamente a vida e a esposa.
Marcio Rutes
Olá, amigo Márcio, li este teu belíssimo conto junto da Taís, que me disse que leria para mim já que tinha lido antes o seu conto, do qual gostou muito. A história é sem
ResponderExcluirdúvida muito bonita, história de uma vida exemplar de um homem correto e amante
do que fazia, que parecia ter nascido para lidar com a madeira fazendo obras de arte com encantamento, entre as obras, instrumentos musicais que sempre esteve por elas fascinado, juntamente com sua amada dona Mariquinha, que lhe deu filhos, que mais tarde partiram para a cidade grande. Dona Mariquinha faleceu antes e o senhor Almar esperou um lapso de tempo, terminou a viola que lhe haviam encomendado e depois de pronta sentou numa cadeira na sua carpintaria e partiu para junto de dona Mariquinha.
Parabéns, amigo contista, pela magistral criação!
Votos de um bom domingo e de uma ótima semana.
Grande abraço.
Bom dia, Márcio, lemos juntos, eu e Pedro. Mas que história, amigo! O negócio aqui é bem versátil, o post anterior ri muito, e esse é o outro lado da vida. Que homem esse Seu Almar, como amava o que fazia, que lindo, homem íntegro. Estamos atualmente acostumados e só ouvimos falar de políticos, bem que poderiam conhecer essa sua personagem, estariam no lucro! Teríamos outro Brasil. Mas isso é utopia, amigo.
ResponderExcluirDeixou prontinha a viola que haviam encomendado, isso eu nunca havia visto, ou vi e esqueci. E morreu sentado pensando na dona Mariquinha. Coisas muito lindas que não vemos por aqui.
Deixo meus aplausos pra você, que bela criação.
Um bom domingo e uma ótima semana.
Grande abraço!
Marcio, bom dia.
ResponderExcluirPrimeiro quero agradecer aos fantásticos
comentários deixados la no Reflexod'Alma.
Não são simples comentários, são
parte de nossa conversa. Amo isso.
Segundo, como sou Diretora Teatral e
Atriz fiz a leitura em silêncio mas
tendo em mente a sua prosposta.
Foi fantástica a experiência!
Até as pausas eram as dele.
Grata por essa oportunidade.
Bjins de ótimo domingo e
de uma semana suave.
Ainda o aguardo no Espelhando...
um dia quem sabe Vc passa os olhos por lá
e nem precisa comentar.
Com afeto e gratidão
CatiahoAlc.
Muito belo! Tem alma de contador. Amei.
ResponderExcluirAbraços e boa semana!
E então, Marcio, li e reli. "Ando devagar, porque já tive pressa". Sem pressa, como diz a letra da música, bebendo cada palavra da sua magia com ela. Embebido pela sua estética, pela sua linguagem tão bem depurada, sentindo o lirismo que brota de cada momento da sua narrativa, tão bem encadeada. Um conto perfeito. Sem adiposidades. Tudo é essencial para a emoção do leitor. Um conto que se encaixaria como uma luva às teorias de Julio Cortázar.
ResponderExcluirBem que poderíamos nos entreter com o universo semântico do texto para vermos com que propriedade você o usou para nos dar, por associação, uma história de amor à vida, à carpintaria, à marcenaria, a Mariquinha e à palavra empenhada em duplo sentido.
Excelente narrativa, Marcio. Tirei o chapéu!
Um abraço,
Marcio, que lindo, sensível, amável e triste conto
ResponderExcluir.Não que seja triste, mas é que estou bem sensível e me fez refletir em quantos senhores como Almar existem em nosso rico Brasil e nunca conheceremos...
Tirou-me lágrimas a história de vida do "Seu Almar" . Aliás, com o nome tão propício e criativo, advindo da própria alma...Ele apreciava sua arte e era ela que o deixava vivo, trabalhando, se dedicando, aperfeiçoando! A partida da Dona Mariquinha é de cortar o coração...Não sei escrever difícil quanto os seus amigos da literatura acima, mas saiba que eu apenas escrevo o que advém do meu coração... Mas pode ter certeza que o seu conto me emocionou profundamente...
Fico muito grata por mais essa pérola amigo!
Fica bem, linda semana!!