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O coro feminino soou ensaiado e automático. No arco da grande porta de madeira maciça e entalhada, três moças, de vestido branco e rodado, sorriam e esticavam as mãos, em sinal de respeito.
O quarto era muito grande, perfeito para compôr um daqueles cenários retratados por Graciliano Ramos, ou algum outro autor, quando escreviam sobre a “casa grande” das fazendas do nosso agreste. Os móveis, proporcionais ao quarto e de madeira grossa e antiga, eram caros e dignos de um antiquário, e a situação tranquila em que aquele casal vivia não se refletia naquele momento, um tanto inusitado para àquela hora da manhã. O casal, dono do lugar, iria a um compromisso, e o atraso já era grande.
―Deus qui abençôe ocêis, mininas. Agora, chispa daqui, qui eu i a madinha tamo si compondo.
―Arre, Natalino! —uma voz feminina ressoou, vinda do interior do cômodo. —Num seja ansim, um véio ranheta! As minina só qué pidí abênça, hómi!
―Antuérpia, minha fia! —Natalino respondeu, demonstrando calma. —Sí tudo os nossos afiado vinhé pidí abênça, nóis só vai pru compromisso quando ele tivé acabado. I vê sí arruma logo arguma coisa pra vistí, qui já tá tarde. Afinar, cadê Cajuíno, esse fio da muléstia, qui mandei ele perpará a caminhonete, e inté agora ele não retornô?
―Larga mão de tanta casmurrice cum nosso bisneto. O minino logo vórta! Agora, mi ajuda a iscoiê logo arguma coisa pra eu me arrumá! Num quero ir disarrumada. As minina do clube vão arrepará!
―Mininas? —Natalino soltou uma sonora gargalhada. —Aquelas lá amassaram o pão prá Santa Ceia, muié! I adispois, vinheram pra cá co tar do Cabrar! I si apressa, sinão te largo aqui.
―Pra ocêis, hómi, é fácir! Só trocá as peça di baxo, que as di cima é tudo iguar!
―As peça di baxo? Percisava trocá? Bão... acho que o compromisso num é ansim, tão importante! Mas, Antuépia, num inrola! Faiz qui nem as muié da cidade grande, i vai cum pretim básico. Aquele ali tá bão!
A mulher olhou para o enorme guarda-roupa e, depois, novamente para o marido, fazendo cara de desentendimento. O marido, impaciente, foi até o móvel e pegou por conta a peça de vestuário, jogando-a nas mãos da esposa.
―Mas, Natalino! Num posso ir cum esse!
―Arre, muié? Amódiquê num pode? Tão fresquinho e charmoso!
―Pruquê essa é minha mortalha! É especiar pru dia que eu se for! Num vai ficá de bom tom si eu aparecê lá no compromisso cum ela, seu abestado! Pódi inté ser pecado!
―Num querdito! Intão, vai cum aquela carça branca, qui tá mais pra isquerda!
―A quar? Essa?
―Não, muié...! Na otra isquerda. Eita, sua lésa!
―Eu? Lésa? Ocê é que é um tanço! Isso num é carça, é a tua cirola (ceroula)!
―Ah! Sei lá, muié! Ocê cumprica dimais! I otra coisa! Que qui é essas coisa isquisita aí nessa gaveta?
―Seu lerdo das ideia! São minhas carcinha!
Natalino pegou uma das peças e levantou, virou, olhou, e arrematou.
―Carcinha? Dá pra vistí a vaca mimosa e sobra espaço ainda. Isso é carçola, muié! Lona di circo!
―Dá isso aqui! ―ela arrancou a peça de vestuário da mão do marido e jogou na gaveta, irritada e bufando. ―Num recramo das tua cuéca, pra saco rendido e estendido, que ocê usa, ou recramo? I ocê? Vai di terno i sandáia? Num vai por as butina?
―Qui nada! O zóio de pexe tá mi incomodando. Vô cás sandáia sim. I si arguém arrepará, eu...
―Ocê num vai fazê é nada! I trata di carçá as butina, qui to ficando arretada!
―Eita, muié braba! Mais é mió num atentá! Da úrtima veiz, ela quase me corta no facão as minha parte baxa! Num sei pru quê num mi casei cá fia do Zé das Cabra! Era mais mansa!
―Pruquê eu tinha dente i ela não! Foi pur isso, seu abestado!
Repentinamente, a porta abriu e chamou a atenção de Natalino.
―Abênça, padim.
―Mais num querdito! —Natalino se assustou e se virou, armando uma expressão nada agradável. —Que ocê qué, seu peste? E chispe daqui, que a madinha tá desprivinida! Ninguém dá inducação presses muleque?
―Dexa o Ariovardo, Natalino! É bão minino!
―Dexo nada! Esse, cada veiz qui mi vê, se ispicha todo, mais é só pra tentá ganhá arguma coisa! Conheço bem quem me cerca! E si ele num tem o qui fazê, qui vá percura Cajuíno, aquele fio da muléstia!
A mulher fingiu que não escutou o que o marido falara, e continuou revirando o guarda-roupa. Ela, nitidamente, perdia a paciência, até que notou um vestido lustroso e todo cheio de decorações brilhantes. Pegou-o e mostrou ao marido, que entre um deboche e outro, alfinetou a esposa.
―Antuérpia, nem as quenga da Maria Gorda usa um despudoramento desses. Daonde ocê arranjô isso, muié?
―Foi a Matirda, tua irmã, qui mi vendeu. Era o vistido dela í na domingueira do Padre Bastião. Num tá alembrado?
Natalino mordeu os lábios e calou. Remoeu, remoeu, e até abriu a boca para retrucar, mas preferiu não provocar mais. E assim ficou, vendo a esposa derrubar para a cama todos os intermináveis cabides que estavam dentro daquele guarda-roupa. Uma hora depois, a mulher estava pronta. Ou quase.
―Muié de Deus! Que qui é isso? —Natalino comentou, assustado e arregalando os olhos.
―Arre! Num tenho quase ropa ninhuma! Intão, improvisei!
―Vistido vremeio, cum chapéu redondo e essa raposa no pescoço? Ocê endoidô?
―Raposa? Raposa nada... isso é chique. E chama istóla (estóla).
―Tá um calor de dar invéja nu capeta, muié! Pra quê isso?
―Pare de me avechá, Natalino! Ocê num intende o qui vai ni nóis, muié! Num tem um pingo di querência!
Ela baixou a cabeça e, propositalmente, soltou alguns soluços. Natalino deu de ombros, como se soubesse que havia sido vencido, e concordou. Por mais que tentasse argumentar, de pouco adiantaria. Além disso, o atraso fazia com que ele, um homem orgulhoso de ser cumpridor de seus compromissos, ardesse em pressa.
―Tá, tá! —Natalino concordou, baixando a cabeça e mordendo, novamente, os lábios. — Intão, vamo imbora, qui devem di tá só isperando nossa chegada pra dar início nas festividade do compromisso.
―Nem pensar! Farta a borsa, os sapato e, craro, o principar! A maquilage!
Natalino desceu para a sala principal e soltou o corpo para sentar em algum lugar. Por muito pouco, não erra a poltrona. Antuérpia, que o seguira até o andar de baixo, reclamando e maldizendo o marido, se voltou para as escadas e subiu, sem pressa nenhuma, como se fizesse mais birra a cada contestação que escutava. Nesse instante, o bisneto entrou pela porta principal e olhou para Natalino, esperando uma bronca pela demora, mas não escutou um pio que fosse.
Ao olhar para a bisavó subindo as escadas, o rapaz entendeu o motivo de Natalino estar ali, largado naquela poltrona. Era sempre a mesma coisa. A cada vez que iam para um encontro social, era assim. Então, sentou-se ao lado do bisavô e, sem ter o que fazer, calou e esperou.
Uma hora depois, Antuérpia apontava novamente pelas escadas, e ao chegar ao andar de baixo, deixou tanto Natalino quanto o bisneto de queixos caídos. O rapaz foi o primeiro a ter alguma reação.
―Vó du céu! A sinhora tá mais parecida cum pinherinho di natar!
―Cala a boca, Cajuíno! —Natalino retrucou, rispidamente. —Sinão, essa peste vai querê acrescê mais arguma coisa, i o compromisso num vai isperá nóis! Vamo logo!
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―Oceis são dois animar! I ainda mi fizeram borrar a maquilage qui tanto mi deu trabaio!
―Ara, vó! Isso é maquilage? Pensei qui era minhas tinta da iscóla. I do jeito qui tá, inté parece aquelas muié lá do carnavar carióca qui passa na tv. A módiquê isso, vó?
―As minina vão tudo num chiquê só! Só eu qui vô ansim, tudo disarrumada e distroçada no compromisso!
Natalino, que dirigia apressado, rangia os dentes e reclamava acintosamente.
―Nunca mais, Antuérpia! Nunca mais te
aviso quando convidarem nóis prum velório!
Marcio Rutes
rssssssssssssss, mas que loucura esse diálogo, essa linguagem muitíssimo
ResponderExcluirfiel que eu jamais conseguiria imitar! Fui lendo devagar para curtir bem cada
palavra divertida, que eu invejo de nunca ter conseguido imitar. E as roupas,
as calcinhas da madame, o desentendimento deles, Natalino e Antuérpia se metendo um na modinha do outro? Quanta criatividade, amigo!!
Mas que deu trabalho um conto escrito assim, ah deu!! E não só as roupas,
mas o enredo, essa linguagem que existe sim, de vez em quando escuto uns horrores destes por aí! E também os tenho na minha memória. E tudo isso
para irem a um velório!!!
Márcio, sempre vou aplaudi-lo em sua criatividade, nesses seus contos tão
bem retratados! Não sei se conseguirei dormir essa noite, fiquei muito confusa
com esse casal meio turbinado das ideias... rssss
Deixo um abraço ao Natalino e à sua magnífica esposa, mulher de uma personalidade sem tamanho! Deve ter feito sucesso no velório! Queria estar presente.
Um grande abraço e uma ótima semana!
Sucesso sempre!
A linguagem é tudo. Portanto, Marcio nos coloca diante de uma bela estética. Sem ela, adeus atmosfera tão verossímil para retratar essa realidade... E a ironia. Trata-se um velório, meus caros. E o mote é exibição, e não o velório. As pessoas vestem-se para que as outras as vejam, parece nos perguntar nas entrelinhas o narrador. Natalino e Antuérpia. Era preciso nomes incomuns que pululam na casa grande. E para retratar a cena, nada mais adequado que o discurso direto, tornando a realidade mais palpável, mais sedutora para os propósitos da transfiguração da realidade. Ou o criador nos dá de bandeja a arte imitando a vida, pois o desdobramento fica por conta da imaginação do leitor. Se Antuérpia estava assim trajada é de imaginar-se que o velório era uma festa de cores e de exibicionistas de todos os matizes. Por certo, o defunto ria a bandeiras despregadas com um olho aberto e outro fechado para que os convivas não desconfiassem que aquela urna era apenas um pretexto.
ResponderExcluirMuito boa a narrativa.
Um abraço,