Cobra cipó (Chironius sp) - imagem do Google |
―Não, Aretha! A resposta é não, e pronto!
O pai, que
interrompera a reunião com alguns fornecedores para atender a filha ao
telefone, começava a dar mostras de impaciência.
―Existe uma coisa
chamada responsabilidade, minha filha. Não estou interessado se seu namorado
pertence ao Green Peace, ao WWF, ao Green Card ou ao CPF, FMI, CNI, ou seja lá
qual sigla de ONG ambiental que ele tenha resolvido entrar agora. O que sei é
do compromisso que assumimos quando tomamos nossas atitudes. Então, se ele resolveu
surrupiar animais para, com isso, protegê-los, terá que dar jeito de
se virar com as consequências desses atos, sejam eles legais ou não. Ele foi suficientemente capaz de cometer tal coisa, pois que seja capaz de se virar com as implicações. E nem por brincadeira ele vai
guardar animais roubados lá no nosso apartamento.
―Mas, mas, mas...
Ítalo, por favor! ―a filha implorava, chamando o pai pelo nome, o que fazia com
que ele se irritasse ainda mais.
―Olha. Tudo bem você
querer ser independente aos 16 anos de idade. Claro, pode ser. Não sou nenhum
troglodita que vive no passado. Você é inteligente e capaz. Mas antes de querer
arbitrar sua vida, arranje um emprego. Eu te emancipo se assim você achar que
precisa. Porém, enquanto estiver dependendo do meu dinheiro, ou do dinheiro da
sua mãe, vai respeitar nossas regras. E não vai ser me chamando pelo meu nome,
ao invés de pai, que você vai me amansar.
―Tááááá... mas pai, é
só um animalzinho indefeso, que...
―Não! Você sabe que
sou alérgico a pelo de animais.
―Não é animal de pelo,
pai!
―Piorou. Emplumados
fazem sua mãe ter taquicardia. Não, e pronto!
―Também não tem penas,
pai Ítaloooooooooooooooo!
―Escamas? Tá de brincadeira! Nem
você suporta cheiro de peixe. Desista. Em casa nós conversamos. É uma boa hora
para eu, você, sua mãe e seu irmão começarmos a evoluir certos assuntos.
Beijos.
Ítalo desligou o
telefone e voltou para a reunião. Era uma fase difícil, por certo. O filho mais
novo, com 13 anos, mal saia de casa. Era um alucinado por vídeo game. E a
filha, essa achava que deveria salvar todos os animais mundo, desde que não
precisasse abrir mão da roupa de grife, dos sapatos caros, do celular ultra-moderno
e, obviamente, pudesse fazer isso lá de dentro da academia de ginástica. Ah!
Sim. Baratas, ratos, morcegos, urubus, hienas, minhocas e alguns outros animais
um tanto mais “nojentos” estavam fora de sua lista. Eram feios, medonhos, ou
davam um certo asco. O bom, mesmo, era salvar um urso bem fofinho, ou quem sabe
um cachorrinho perdido, mas ali na esquina, para não precisar ir muito longe,
não é?
Já em casa, Ítalo estranhou
a ausência da filha. Mas, é claro, ela deveria ter armado um mau humor sem fim.
Sempre que ela era contrariada, o mundo desabava. E essa situação tendia a
perdurar por semanas, ou até que ela precisasse de um adiantamento da mesada.
―Meu amor. A Aretha
não chegou ainda?
―Nem sei, Ítalo. ―a
esposa respondeu, sentando-se ao lado dele, exausta. ―Aquele pessoal da clínica
me deixou quase maluca. Te juro que se eu pudesse voltar no tempo, faria faculdade
de biologia e iria estudar bichos preguiça. Enfermagem dá um estresse sem
tamanho, e ser dona de clínica ainda por cima... aííí, to morta.
―E o Júnior?
―Bom... esse nem
precisa olhar pra saber onde está, não é? Lá no quarto, com o vídeo game. E eu
to preocupada. Será que essa geração vai saber evoluir normalmente, como nós
fizemos?
―Em que sentido, meu
dengo?
―Ah! Sei lá! Tem coisa
que é natural na criançada. Masturbação, por exemplo. Tenho certeza de que você
aprendeu sozinho.
―Nem se preocupe. Já,
já alguém lança um jogo pra isso. Porrinha a distância. Sabe, eu poderia ficar
rico com isso. Até que você me deu uma boa ideia.
Os dois caíram na
gargalhada, mas pararam quando repararam que Aretha entrara em casa. A menina,
apressada, passou por eles e sequer deu atenção. Foi para o corredor e
trancou-se no quarto. Um pouco depois, enquanto os outros estavam à mesa, ela
saiu do quarto e foi para a área de serviço, ou melhor, para a outra porta de
saída do apartamento, e recolheu uma caixa de papelão. Então, cuidando para não
ser vista, esgueirou-se novamente pelo corredor e, alguns minutos depois,
retornou e juntou-se aos demais.
―Pai, eu...
―Agora não, filha.
Estive conversando com sua mãe, e chegamos a conclusão de que devemos procurar
te entender mais. Deixa pra gente conversar melhor sobre isso depois da
refeição, tá bom?
―Então você vai deixar
eu trazer o bichinho aqui pra casa?
―Não. Não vou. Mas te
prometo que a gente vai achar a melhor solução pra isso. Sei que é importante
pra você. Mas não vai ter lugar pra nenhum bicho aqui no apartamento.
A menina suspirou e
deu de ombros. Talvez a situação não estivesse assim, tão ruim, afinal o pai
entendera que ela precisava ser ouvida vez ou outra. E por fim, o “bichinho” já
estava muito bem escondido lá no banheiro do fim do corredor, acomodado naquela
caixa de papelão, num cantinho atrás do armário.
“Ninguém usa aquele banheiro
mesmo.” ―a menina pensou, enquanto arrumava seu prato.
Depois da refeição, a
família se reuniu na sala para uma longa discussão. E por incrível que possa
parecer, os filhos participaram ativamente da conversa, fosse reclamando ou
dando palpites ou tentando mostrar soluções. Algumas extremamente estapafúrdias
e completamente fora da realidade, mas já era alguma coisa. E assim foi, até
que todos resolveram abandonar a sala. Cada filho foi para seu quarto, e o
casal alojou-se na sacada. Ficaram por ali durante pouco mais de uma hora, mas
o cansaço da esposa fez com que a paquera sucumbisse.
―Amor! Tenho mesmo que
tomar esse dito remédio? Vou levantar umas dez vezes durante a noite para ir ao
banheiro.
―Tem sim, Ítalo. E não
discuta. Mas faça o favor de usar o banheiro do corredor. Não quero que a
defesa civil interdite nosso banheiro pela bomba química que você deixa a cada
vez que usa esse remédio.
―Hehe... Pode deixar!
Tudo corria
tranquilamente, até que lá pelo meio da madrugada o filho abriu a porta do
quarto dos pais e deitou-se, pedindo um abraço para a mãe. Ele não parecia
assustado, mas mesmo assim, a mãe perguntou o que estava acontecendo.
―Sei lá, manhê! To
jogando um game de Aliens. Daí, quando fui ao banheiro, lembrei que a lâmpada
lá do meu quarto não ilumina nada e fiquei com medo. Usei o banheiro do
corredor, e tenho certeza de que meu passarinho tava me olhando. E tava
parecendo com um Alien. To com medo daquele jogo ter transformado meu
passarinho em ET, manhê!
―Tá vendo só! São
esses jogos. Você joga demais, meu amorzim! Cansei de falar para o Ítalo parar
de comprar todo esse veneno virtual. Mas vamos dormir. Teu passarinho não vai
virar ET não. Mamãe te protege.
A mãe sequer terminou
de falar e o menino já havia dormido. Ela, um pouco estressada ainda, começou a
fechar os olhos para tentar dormir, mas desistiu assim que notou que o marido
se mexia demasiadamente. Possivelmente ele levantaria, ainda sonolento, para ir
ao banheiro. E foi exatamente o que aconteceu.
―No banheiro do
corredoooooor! ―ela falou firmemente, sabendo que ele ainda dormia.
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Ítalo saiu do quarto e
levou, aproximadamente, uns 20 minutos para retornar. Quando deitou ao lado da
mulher, chamou-a e, sussurrando, fez uma pergunta que a deixou espantada.
―Meu dengo! Você acha
que, nessa idade em que estou, ainda preciso fazer cirurgia de fimose?
―O que? Tá maluco? Por
que tá me perguntando isso?
―Ué! Você é a
enfermeira. Eu sou apenas um analista de mercado, e não entendo nada dessas
coisas.
―Tá, entendi. Mas por
que tá tocando nesse assunto nessa hora? E é claro que você não precisa de
cirurgia alguma.
―É que tive a nítida
impressão, logo depois de me sentar no vaso sanitário, de que meu pinto mostrou
língua pra mim.
―Kkkkkkkkk. Meu
querido, me diz! Você não andou tomando nenhum chazinho de cogumelo, não é? E
nem tem jogado vídeo game com o Junior, claro! Vai dormir, vai.
Lá pelas cinco horas da manhã, foi a vez da
esposa acordar para ir ao banheiro. Calçou os chinelos e, ao tentar abrir a
porta, viu que a mesma estava trancada. Quando voltou o olhar para a cama, viu
que o filho não estava lá.
―Eu não acredito. O
Junior resolveu se trancar no meu banheiro. E vai ficar por aí um tempão. Bom,
vou lá no corredor. Espero que o fudum tenha passado.
Minutos depois, o
marido acordou abruptamente. Alguém parecia berrar, pedindo por socorro.
―Que droga é essa? Meu
amor, você escutou alguém gritar? Meu amor... ué, cadê ela?
Novo grito, e Ítalo
percebeu que era sua esposa quem gritava. Ele nem pensou no que fazer. Levantou
rapidamente e partiu em busca da origem daquele escândalo. E quando chegou ao
corredor, reparou que os berros partiam do banheiro. Em instantes, tanto a
filha quando o filho se juntaram ao pai.
―Que tá pegando, paiê?
A mãe tá sendo abstraída por algum Alien?
―Abduzida, Junior!
Abduzida. E não tem Alien nenhum aí dentro do nosso banheiro.
Os gritos silenciaram
por instantes, mas logo voltaram com toda a intensidade. Ítalo tomou distância
e chutou a porta, fazendo-a abrir e bater na parede, mas quando ele foi entrar,
a porta voltou e acertou seu nariz, arrancando um filete de sangue.
―Aaaaaiiiii! Essa
doeu. ―ele reclamou, mas entrou no banheiro e procurou pela esposa.
Ela estava sentada no
vaso sanitário, pálida e olhando para o meio das pernas. Ítalo correu os olhos
pelo ambiente e, sem ver nada de anormal, sossegou um pouco.
―O que tá acontecendo,
meu amor?
―É... é... é que minha
perereca mostrou língua pra mim!
―O queeeee? Tá maluca?
―E tem mais... ela
tinha dois olhos... e um nariz... socorrooooooooooooo.
Aretha empalideceu.
Lentamente, ela se desviou do pai e foi para a parte de trás do banheiro,
justamente onde havia deixado a caixa de papelão. E desanimou ao ver que a
caixa estava aberta.
―Genteeeee. Pai,
mãe... não se assustem. ―a filha falou calmamente, deixando o pai curioso
―Não se assustar? Não
se assustar com o que, minha filha?
―Bom, é que... sabe
aquele bichinho que você não queria que eu trouxesse pra cá? Pois é, eu
precisei trazer!
―Você me desobedeceu?
―Que bicho? ―a mãe
perguntou, parando com os gritos.
―Cadê esse bicho,
Aretha? ―o pai tomou a palavra, mostrando irritação.
―Tava alí, naquela
caixa de papelão. Mas, agora, acho que ele tá dentro do vaso sanitário.
―E que bicho é esse,
afinal? ―a mãe relutou, mas acabou perguntando.
―Nada de mais, mamãe.
Só uma cobrinha... coisa mínima.
―Uma cobra, minha
filha? ―o pai estufou o peito e colocou as mãos na cintura. ―Eu não te falei
que não queria bichos aqui em casa? E você, ainda assim, traz um pra cá? Pior
ainda... uma cobra?
―Não dá nada, pai.
Bichinho mansinho.
―Mansinho? E se essa
cobra pica alguém? Vem cá pra sala, que a gente precisa conversar.
―Paaaaaaaaareeeeeem!
―a mãe berrou, chamando a atenção dos demais. ―Enquanto vocês ficam com essa
porcaria de discussão, eu to aqui, com uma cobra se esfregando na minha bunda!
O que eu faço? Dá pra alguém me falar? E se ela resolve se assustar e entrar na
toca?
―Manhê, ela não vai
fazer isso! Fica calma!
―Ficar calma? Não é na
tua toca que ela vai se esconder, né!
―E o que nós fazemos,
amore?
―Como, “o que nós
fazemos”, Ítalo? Você não é o homem da casa? Tira esse bicho daqui. E
depressa!
―Eu tenho uma ideia
melhor. Já volto.
―Ítalooooooooooooo!
Volta aqui, seu traste.
A esposa berrou, mas
de pouco adiantou. Então, como o marido fugira, a responsável por aquilo tudo,
Aretha, é quem deveria resolver a situação.
―Espera, manhê. Vou
ligar pro meu namorado pra ver o que eu faço.
Aretha sequer esperou
pela reação da mãe. Tratou de sair rapidamente do banheiro, mas não foi
sozinha. O filho também agiu de forma rápida e correu, e assim, a mãe ficou lá, sozinha.
Algum tempo depois,
aproximadamente meia-hora, o marido voltou, acompanhado pelo porteiro e pelo
síndico do prédio. Quando entraram no banheiro, encontraram a mulher cantando
uma cantiga de ninar. Ela, ao vê-los, tomou o maior susto.
―O que esses dois
estão fazendo aqui, Ítalo?
―Fui buscar ajuda,
amore! Eu não vou colocar a mão numa cobra. Nem pensar nessa hipótese.
―Ah! Tá! Como se já
não fosse o suficiente eu aqui, com uma cobra gelada se esfregando na minha
perseguida, agora você quer me constranger com o prédio inteiro. Some com esse
povo daqui. Pode deixar que to me entendendo com a cobra. To cantando pra ela
dormir. E trata de pensar em alguma coisa, pois não sei até quando eu aguento.
To quase me borrando, e acho que ela não vai gostar muito do cheiro.
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Ítalo não sabia o que
fazer. Pensou, pensou, até que resolveu ligar para os bombeiros. No entanto,
como o sinal de celular no Brasil é muito ruim, a atendente não entendeu
patavinas do que estava acontecendo.
―Repita, senhor! Por
favor!
―Repetir de novo,
moça? Minha mulher está desmoronando. Tá ardendo de raiva. Dá pra mandar logo
uma equipe?
―Desmoronando?
Ardendo? Ok, senhor, agora eu acho que entendi. Prédio em chamas com risco de
desmoronamento. Estou acionando as equipes. Aguarde no local e, por favor,
mantenha a calma.
Em menos de quinze
minutos, quatro caminhões dos bombeiros e vários jornalistas estavam no local.
Ítalo, desesperado, tentava explicar tudo, e mal reparou que um fotógrafo
passou por ele e foi para o banheiro, filmando tudo o que acontecia. No dia
seguinte, a foto do bombeiro resgatando a cobra, por entre as pernas da mulher,
estava na primeira página da maioria dos jornais da cidade. E o bafafá correu
solto.
―Que mico, Ítalo! Que
mico! Vou esfolar você e, claro, a Aretha! Nem vou pra clínica. Imagina minhas clientes, minhas funcionárias e mais aquele mundo de gente lá de perto? Como se não bastasse, aquela praga de fotógrafo me pegou de pernas abertas bem numa época que to sem tempo pra me depilar. Ai, que raiva! Eu vou te
capar, seu traste. Pra que chamar os bombeiros?
―Tá reclamando do que?
Eu passei por covarde, já me ligaram várias vezes tirando o maior sarro, e a
polícia ambiental ainda tá me chamando pra esclarecer tudo isso. Pra completar, o
dono verdadeiro da cobra quer me processar, alegando que a cobra saiu
traumatizada por tudo que ouviu, viu e cheirou. Onde eu arranjo um psicólogo
para cobras?
Marcio Rutes
não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.
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