óleo sobre tela - obra de Fátima Kelbert (imagem do Google) |
"Somos, de fato, postos à prova todos os dias, desde as mínimas coisas até as mais difíceis decisões. E laboriosas situações também.
Estamos diante das escolhas antes mesmo de abrir os olhos e mesmo depois de fechá-los.
Se sonhamos, ou temos pesadelos, será por consequência dos tipos de pensamentos que alimentamos um dia inteiro? E quiçá uma vida inteira?"
Samara Bassi
Era do alto daquele
prédio que ele via as manhãs nascendo ou o dia se esvaindo. Estações do ano iam
e vinham, ora com suas folhas amareladas sendo sopradas pelo vento, ora com
novas folhas brotando dos galhos das árvores para, em tempos vindouros,
tornarem a amarelar.
Assim o tempo passava,
e ele ficava por lá, no alto daquele prédio. Mas não era louco, nem tanto
desistira de viver uma vida comum, junto aos seus. Apenas gostava de observar a
movimentação alucinada daquela alcateia humana, que em seus momentos mais calmos,
eram capazes de se engolir uns aos outros.
No que se transformara
aquele local tão tranquilo a que ele tanto se acostumara em seus bons tempos de
criança? Onde estava o prazer de dizer “bom dia” a um conhecido qualquer e que
sequer se sabia o nome? Perdera-se a educação, ou era o mundo que estava
apressado em demasia? Ou seriam os frutos amargos de uma árvore chamada
Progresso?
Carroças e coches
viraram automóveis de luxo, e a comunicação já quase vinha embutida na
orelha das pessoas. Elas, agora, pareciam falar sozinhas, e isso sim era estranho. Mas, tudo bem. Cada um com sua pressa ou sua
loucura. E ele não estranharia se, em pouco tempo, as pessoas começassem a voar
sem asas. Ah! Como seria bom. Ele próprio trataria de comprar algum aparelho
para isso, só para chegar bem perto das nuvens mais altas e de lá, fazer xixi mirando
o mundo lá embaixo. Daria risada por saber que muitos iriam pensar que se
trataria de chuva ácida.
―Como são bobos!
―comentou baixinho e soltando uma risada de canto de boca.
Voltou os olhos para uma tela branca a sua frente. Durante dias tentou captar algo para preencher de
cor aquele pano já sujo pela fumaça. Sem se esperar, algumas gotas de chuva
molharam a tela, e nesse instante ele reparou algo inusitado. A água da chuva reagiu com
os resquícios de poeira e poluição que estavam na tela, formando um borrão
estranho. “Uma mulher”, pensou ele.
―Uma linda e delicada
fêmea em minha tela! Vejam só.
Foi então que sentou
em seu pequeno banco, dando vazão a tudo o que brotava de seu olhos e mãos.
Quanto mais chovia, mais borrava e mais ele se entusiasmava. Aquela parecia
ser, definitivamente, sua melhor obra. Sim, era agora uma mulher, e era tão
bela que ele, em sua empolgação, esqueceu até da chuva.
Curitiba antiga - 1952 (imagem do Google) |
Aquela foi sua
obra-prima, nascida do cotidiano de muitos que, com seu progresso, propiciavam a fumaça que reagiu com a chuva e se fez tinta. De resto, o talento dele deu conta. Foi uma
obra sem precedentes, pintada num único traço. Mas foi somente para seus olhos.
O que ele não se deu conta, é que a chuva, mesmo ajudando a criar, logo depois
tratou de lavar aquela tela.
O preço da criação, no
entanto, foi mais alto do que parecia. A pneumonia, causada pela chuva fria,
por muito pouco não o fez arcar com a morte. Com alguma sorte, muitos cuidados e também com os
remédios da modernidade, conseguiu voltar ao alto daquele prédio tempos depois.
O banco, a murada de
onde ele observava o cotidiano, e também a tela no cavalete. Tudo estava ali.
Sentou e,
pacientemente, esperou novamente pela chuva. Ela destruíra sua melhor criação,
mas também fora responsável pela breve existência dela. Por que, então, não
tentar novamente?
Por via das dúvidas,
deixou um guarda-chuva disposto ao seu lado. Aprendera a lição.
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Um agradecimento
Quero agradecer, de todo o coração, ao gesto maravilhoso de Samara Bassi, que gentilmente tem me cedido o direito de citá-la (fragmentos de seus comentários aos meus textos) em minhas crônicas e contos.
Poder compartilhar daquilo que ela escreve ou pensa é um prazer único.
Mais de Samara Bassi aqui: Uma canção pra você viver mais
Marcio Rutes
(Marcio JR)
De fato, o tempo não perdoa ninguém e os passos já calejados de sincronia com tempos modernos nos confundem tanto que, quanto mais amadurecemos e progredimos, mais aparentamos regredir e voltar à primitividade instintiva do lobos, dos leões, das garras desenfreadas postas diante de nós.
ResponderExcluirAtropelamos e nos (mal)tratamos como presas sempre à ponto de uma colisão de carne nos dentes.
Há hoje, uma forma infinita de interação, de comunicação e simultaneamente, tanta solidão esbanjando festa e veneno nos olhos baixos, nos leitos que a face cria, nas expressões quase que envidraçadas.
Contraditório isso, não?
Porém, ainda que haja solidão, é a partir dela e diria mais, a partir dos momentos dessa solitude acontecida que parimos as nossas mais íntimas criações. Que seja somente para os meus, os teus, os nossos olhos. Que seja ainda, para olhos nenhuns.
Cada um sabe das formas e dos riscos e o que cada um vem a simbolizar.
A chuva é água que tanto dilui como derrama dores, cores, que forma aquarela. Espalha ou atrapalha.
As lições, trazemos pelo caminho, naquela malinha pequena, mas sempre pesada e não que ela precise lesionar os passos, o ponto de equilíbrio, o caminho, os sonhos.
Não é a moldura que mais conta pontos, mas o que nela se carrega.
A bagagem mais importante não se carrega nas mãos, mas nos olhos e no coração.
E a proteção dos nossos sonhos/obras, não está no tempo, mas na forma de exposição à ele.
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Meu querido, que delícia de leitura e um tanto quanto reflexiva, como sempre. Uma leitura que nos acolhe e nos enternece em cada pedacinho de dentro. Um exalar de perfume próprio e brilho. Uma pintura única e magnífica, sem dúvida.
Homenageada e feliz me sinto em fazer parte desse seu trabalho, desse seu presente que é justamente isso para OS MEUS OLHOS.
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Agora, mudando um tiquinho de assunto, me perdoe, mas eu não poooossoooo sair daqui sem te fazer uam pergunta:
"só para chegar bem perto das nuvens mais altas e de lá, fazer xixi mirando o mundo lá embaixo."
E agora, SOMENTE PARA OS NOSSOS OLHOS: MDPDVNQ, N?
rsrsrs
Beijo na alma, Marcitoooooooo
Sam.
;P
Dizem que sentimentos delirantes são a sombra de uma alma doente... prefiro olhar com amor para tudo que, borrado, lavado e elevado, um dia, foi...
ResponderExcluirLindo, Marcio.
Sempre te ler gera pensar, e sentir - profundos.
Bjos
Meu velho amigo Marcio,
ResponderExcluirapós tentativas sem sucesso, tive finalmente que mudar o endereço do seu blog "...de prosa pro vento" para poder dar aqui à praia desse atual "Crônicas de areia". Perdoe esse lado meu algo desajeitado, são achaques da idade...
Primeiramente quero agradecer-lhe o gentil comentário que me deixou, com referência ao vindouro CD de poemas da nossa colega Flávia Côrtes. Penso que pelos próximos dias atenderei seu pedido e adicionarei mais um poema da Flávia em meu finado blog.
Por sinal, este andou sendo meio ingerenciado esses últimos dias por pessoas que desconheço. Por isso, fui forçado a fechá-lo. De agora em diante ele está aberto apenas aos leitores de quem possuo os endereços e-mail (espero que você não tenha mudado o seu), ou seja, os bons e velhos amigos que, com suas visitas, deram sempre um brilho estelar às minhas letrinhas de alumínio.
Finalmente, gostaria de parabenizá-lo por esta sua admirável crônica, plena dessa mescla de algo nostálgico, algo romântico, e de algo perspicaz que tanto cativa o leitor e é característica de seu estilo. Segundo o título, imaginei se tratar de uma crônica ligada a uma história de espionagem, de serviço secreto ("for your eyes only"). Porém, deparo-me aqui com um texto (como tantos outros seus) impregnado de um doce lirismo de reminiscências que, eu diria, quase que apaixonadas,. Todavia o texto se reveste também de um elemento mágico, inesperado, às vezes: os borrões da chuva na aquarela sobre o cavalete, a conformação da fantasia, desfeita, a esperança de poder ainda rever a imagem....
Suas crônicas, meu irmão, têm esse poder de transportar o leitor para um mundo de conto de fadas, embora falando de coisas da nossa vida real. É a marca dos grandes escritores, dos grandes cronistas. O que faz com que seus textos sejam, para mim, um instante de poesia e de paz, um momento de trégua no cotidiano da movimentação alucinada da nossa alcatéia humana.
Tenha um bom fim de semana, querido amigo, muita saúde e um forte abraço do
André