sábado, 3 de dezembro de 2022

RE-ENCONTRANDO AS ORIGENS


O quarto sufocava. Por mais que tentasse fechar os olhos, eles insistiam em permanecer abertos. O sono não vinha, e durante anos ela ficou assim, numa insônia torturante. Lá fora, a lua era convidativa, principalmente quando se juntava com a lufada de ar fresco da madrugada. O luar permitia ver o imenso gramado e as árvores, que mesmo com a penumbra batendo sob suas copas, não pareciam assustadoras como nos filmes de terror. Um pouco mais distante, a ponte e a saudade. O riacho fazia barulho, um barulho corrente e borbulhante. Ela encostou a cabeça na soleira da janela e, aos poucos, adormeceu.
 

Seu corpo transportou a saudade do peito para o gramado, e mesmo dormindo, se viu lá, solta na luz do luar. Descalça, sentiu nos pés a maciez rude da grama recém aparada. Seus pés, de pele fina, sentiram a necessidade de tocar mais vezes o chão, não pela tentativa de engrossar mais a pele, mas sim pela enorme energia contida em seu corpo e que precisava ser descarregada. Suas mãos eram alvas e, estranhamente, pequenas. Ela estava pequena. Ela estava criança, adolescente. Uma linda e tímida adolescente de uns 16 anos de idade. 

Silvos curtos chegaram aos seus ouvidos. Cigarras. No entanto, não eram cigarras da madrugada, e sim daquelas que se escuta durante o dia. Estranhou aquilo, mas pouco importava, pois não passava de um sonho, e ali, naquele devaneio, tudo poderia acontecer. As árvores balançaram, exatamente como ela via acontecer em sua infância, e ela foi até lá, até o lugar onde costumava passar várias horas de seu dia quando mais nova. 

Caminhou lentamente, deixando a grama e o orvalho umedecerem seus sentimentos. A saudade doía muito, a embargava, e ao se aproximar da figueira, sentiu um aperto enorme no coração. Estava ao lado da ponte, e um medo imenso estampou seus olhos. Não queria olhar para o outro lado da ponte, mas precisava, sabia disso. Sabia que suas origens estavam lá, esperando por ela, cobrando pelo esquecimento e pelo abandono. 

Sua natureza pobre nunca a assustou. Cresceu ali e pouco conhecia de outros lugares ou de outras culturas. Era órfã de sentimentos em sua caminhada pela vida, pois tudo o que conheceu e quis estava bem ali, do outro lado daquele riacho, que em outros tempos foi um belo e vívido ribeirão de ilusões. Levantou a cabeça e forçou os olhos. Alguém estava lá, chamando-a para o outro lado. 

Sua mente deu mil voltas. Sentimentos brotaram e a angustiaram. Seria ele? Estaria lá aquele que a fez sonhar e se apaixonar, para depois abandoná-la naquele lugar distante? Aquele mesmo que a entregou à sorte da saudade? Ela o amava, sempre amou, e o que restava agora era o sentimento de falta. Tantos anos esperando sua volta, sua mão, seu sorriso.

A surpresa foi maior do que aquela que ela imaginava. Não era ele, e sim, ela mesma, chamando-a. Sem pestanejar, ela pisou a ponte e caminhou. Estranha sensação. Depois que ele partiu, ela nunca mais cruzou a ponte. Talvez por medo, ou quem sabe uma negação do passado. Mas agora não. Ela caminhava sozinha, sem saber direito o que buscava. 

image by Google
Do outro lado, ela mesma a esperava. Mais adiante, ele repousava sob alguns arbustos, dormindo. Ela ficou parada, admirando-o. Ele estava jovem também. Mas, que loucura era aquela? Por que ele estava ali, dormindo ao relento? O sonho virara pesadelo? 


Remexeu as entranhas da memória e relembrou do dia em que ele se fora. Na noite anterior, teriam um encontro, mas ela se amedrontou diante da timidez e da falta de coragem em assumir seus sentimentos mais íntimos. Ela o amava e desejava, e ele a amava silenciosamente, respeitando-a em seus temores. Naquela noite, justamente naquela em que ela poderia fazê-lo ficar e mudar toda uma história, ela se acovardou e fugiu. Ele dormira ali, exatamente como fazia agora. 

No dia seguinte, ele partiu, juntamente com a família. Partiram para outra vida, para outra existência. Um acidente na rodovia os fez de vítimas, e ninguém sobreviveu. 

Quem sabe se ela suprimisse o medo e o tocasse, ele acordaria e desistiria de partir, mas era somente um sonho, um sonho do qual ela não queria acordar. Um sonho onde ela poderia tê-lo e protegê-lo, nem que somente diante dos olhos e sem tocá-lo. Mas ela o tinha perto.


Estranhamente, depois de vários anos, ela conseguia sonhar novamente. Buscou tanto isso, vê-lo mais um dia, mais um instante, um mero instante.
 

Estava decidida, ficaria ali, naquele mundo novo que se apresentou a ela. Um mundo onde, por mais que a saudade doesse, ela tinha algo que tanto buscava, seu primeiro, único e verdadeiro amor. 

Jamais acordou. Sua vida, agora, está na essência de um amor do qual ela fugiu. Seu semblante, para quem a olha deitada naquela cama, é sereno e terno. Mas, o que ninguém imagina, é que ela se recusa a despertar. Está lá, zelando pelo sono eterno de alguém que ama.



Marcio Rutes



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6 comentários:

  1. Márcio, eu li, fiquei emocionada e também triste... Você sabe como nos envolver com seus escritos...A nossa imaginação é provocada por suas palavras e , neste ínterim, os sentimentos são despertados...
    Mesmo sendo tão jovem, ela não conseguiu conviver com a dor da partida e da perda subsequente e isso a afetou profundamente...
    Por isso que não há lugar para timidez ou esperas...
    As palavras devem ser faladas no momento certo para não provocar arrependimentos posteriores...
    Abraços amigo e parabéns pelo belíssimo texto.
    Maravilhosa semana!

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  2. Olá, Marcio, que belo texto, envolto de uma maneira poética de contar o que muito acontece nos nossos sonhos. Bem, o sonho é o despertar de nosso inconsciente, sem dúvida. Por vezes eu sonho, acordo de madrugada ou de manhã, mas minha luta é para retomar o belo sonho que nos reporta para um outro tempo, para uma outra situação, uma saudade antiga de alguma coisa que nos marcou. Mas os sonhos não retornam, apesar dos meus esforços. E que lástima!
    Esse seu excelente conto é triste, mas belo, é na tristeza que aparecem os mais belos textos, pois vem lá do fundo d'alma, sem oba-oba, com sentimento verdadeiro, por vezes com arrependimento como é o caso dessa sua história comovente, parece que cheia de arrependimentos. Então ela, a protagonista, colocou seus sentimentos já tarde demais. O que poderia ter sido, não foi. Na verdade, muito das nossas vidas são cercadas de arrependimentos. Anos mais tarde, o curso muda, amadurecemos, pensamos, e tomamos decisões, aliás uma das coisas mais difíceis: tomar decisões!
    Um belo texto poético, Marcio! Você explorou muito bem os sentimentos da jovem, o que deu um excelente conto. E parece que se ela o tocasse, ele ali estaria vivo, que coisa... Como o ser humano é complexo, é também o contrário daquele ser que rejeitamos pelos seus defeitos, mas quando sentimos o outro lado, sensível, amoroso, inteiro e verdadeiro, desemboca assim, como no seu conto.
    Aplausos daqui do Sul, Marcio! belíssima história.
    Abraços, uma ótima semana, com muita paz, é o que todos nós precisamos.

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  3. O que conta numa história não é o que se diz, e sim como se diz. E você o disse de forma intensa, e porque não dizer, vigorosa e, ao mesmo tempo lírica. É pelo lirismo (também) que você prende o leitor da primeira à última linha. Porque o que mais há na narrativa é poesia no sonho da protagonista e no drama que ela vive, conflito que a acompanha desde que conheceu o “príncipe” e deixou que a dúvida se instalasse, dificultando-lhe as decisões. Psicanaliticamente, teríamos uma dezena de sessões e, provavelmente, o luto permaneceria ainda por algum tempo, mas se dissiparia aos poucos. Também, no "como" se diz dessa história, há de se levar em conta a verossimilhança, o modo de fazer-nos sentar-se para conhecer até o fim a história, pois é um drama que sai da aldeia para se universalizar. Essa é uma história, daí explicar-se (do meu ponto de vista de leitor) a personagem não ter o nome próprio revelado. Uma bela história. Essa não acabará no divã do analista por se tratar de um "fingimento", da "ficção", sabemos, porém, que muitas dessas histórias quando ali se deitam, levam um tempo para levantar-se tal como a protagonista ficou diante do corpo do amado (em sonho).
    Forte abraço, Márcio!

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  4. Meu caro Márciamigo
    Descobri-te no blogue da Tais Luso de Carvalho (ela e o Pedro são meus grandes Amigos há largos anos através da blogosfera) e resolvi vir até cá. E em boa hora o fiz.
    Sou mais para a Prosa mas também aceito a Poesia – o que num país de poetas é um caso a cair para o “estranho”… Mas creio que não há qualquer mal nisso e aprecio um bom poema tanto quanto uma boa prosa, só que não uso a rima.
    Estes teus textos têm de ser lidos com muita atenção e muito cuidado pois são intensos e profundos. Se tomarmos este por exemplo o domínio do sonho é motivo para nos questionarmos sobre se quando o temos ele reflete uma vivência, uma utopia, uma realidade ou uma construção feita do nada.
    Nunca se pode afirmar – em meu modesto entender que já dura 81 anos mas julgo que ainda estou dentro do “prazo de validade” – que um sonho, como disse Victor Hugo, «é a antecâmara para a morte» porque realmente não é. O sonho para mim é, pelo contrário, uma vivência a um outro nível por vezes (muitas vezes) distante do dia-a-dia em que vamos (sobre)vivendo.
    Desculpa-me o comprimento do cumentário (com o… adoro o humor) mas escrever sempre foi o meu ofício e a minha forma honesta e independente de ganhar a vida. E agora um convite. Já te sigo, portanto, “vinga-te”: vai à http://anossatravessa.blogspot.com segue-me e deixa também um cum… com o. Obrigado.
    Abração
    Henrique

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  5. Olá, Marcio, esta postagem é muito rica pelo somatório dos textos, ou seja, de seu excelente conto e de três ótimos comentários, que no meu sentir souberam interpretar muito bem esta sua criação literária. Quanto aos comentários que referi foram importantes para mim como leitor, tanto como o da Taís, minha cara-metade, sem nenhum favor uma talentosa cronista, como os outros dois, o feito por José Carlos Santana, professor de Literatura da Universidade Federal da Bahia, escritor, poeta e crítico literário; e do Henrique Antunes Ferreira, jornalista da melhor qualidade e escritor português.
    Caro Márcio falei sobre as pessoas acima por conhecê-las há muitos anos e por terem feito seus comentários com grande precisão e sensibilidade, razão pela qual peço licença aos três para subscrevê-los.
    Parabéns a você, Márcio, pela excelente obra.
    Uma boa semana.
    Um grande abraço.

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  6. Olá Marcio, vim retribuir sua maravilhosa visita no meu blog e dizer : seja bem-vindo à Minha Literaturinha!
    Saiba que amei seus comentários, volte sempre meu caro amigo.
    Gostei muito de você ter falado que a alegria é a marca registrada do meu blog, poxa, obrigada, que belo elogio ao meu cantinho!
    Achei o seu muito alegre também, cheio de poesia, de encantamento.
    Esse texto que acabo de ler é cheio de sentimento, é algo além da história narrada, marca um sentimento forte e eterno entre duas pessoas que se separaram.
    Serviu pra mim que um dia perdi um amor muito especial mas Deus me trouxe de volta e estou muito feliz.
    Parabéns e volte sempre a meu cantinho que vou voltar sempre no seu.
    Abraços...

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