sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

SOMENTE PARA SEUS OLHOS

óleo sobre tela - obra de Fátima Kelbert (imagem do Google)

Era do alto daquele prédio que ele via as manhãs nascendo ou o dia se esvaindo. Estações do ano iam e vinham, ora com suas folhas amareladas sendo sopradas pelo vento, ora com novas folhas brotando dos galhos das árvores para, em tempos vindouros, tornarem a amarelar.

Assim o tempo passava, e ele ficava por lá, no alto daquele prédio. Mas não era louco, nem tanto desistira de viver uma vida comum, junto aos seus. Apenas gostava de observar a movimentação alucinada daquela alcateia humana, que em seus momentos mais calmos, eram capazes de se engolir uns aos outros.

No que se transformara aquele local tão tranquilo a que ele tanto se acostumara em seus bons tempos de criança? Onde estava o prazer de dizer “bom dia” a um conhecido qualquer e que sequer se sabia o nome? Perdera-se a educação, ou era o mundo que estava apressado em demasia? Ou seriam os frutos amargos de uma árvore chamada Progresso?

Carroças e coches viraram automóveis de luxo, e a comunicação já quase vinha embutida na orelha das pessoas. Elas, agora, pareciam falar sozinhas, e isso sim era estranho. Mas, tudo bem. Cada um com sua pressa ou sua loucura. E ele não estranharia se, em pouco tempo, as pessoas começassem a voar sem asas. Ah! Como seria bom. Ele próprio trataria de comprar algum aparelho para isso, só para chegar bem perto das nuvens mais altas e de lá fazer xixi mirando o mundo lá embaixo. Daria risada por saber que muitos iriam pensar que se trataria de chuva ácida.

―Como são bobos! ―comentou baixinho e soltando uma risada de canto de boca.

Voltou os olhos para uma tela branca, presa a um cavalete, a sua frente. Durante dias tentou captar algo para preencher de cor aquele pano já sujo pela fumaça. Sem se esperar, algumas gotas de chuva molharam a tela, e nesse instante ele reparou algo inusitado. A água da chuva reagiu com os resquícios de poeira e poluição que estavam na tela, formando um borrão estranho. “Uma mulher”, pensou ele.

―Uma linda e delicada mulher em minha tela! Vejam só!

Foi então que sentou em seu pequeno banco, dando vazão a tudo o que brotava de seus olhos e mãos. Quanto mais chovia, mais borrava e mais ele se entusiasmava. Aquela parecia ser, definitivamente, sua melhor obra. Sim, era agora uma mulher, e era tão bela que ele, em sua empolgação, esqueceu até da chuva. 

Curitiba antiga - 1952 - Av Luiz Xavier, Centro (imagem do Google)
Aquela foi sua obra-prima, nascida do cotidiano de muitos que, com seu progresso, propiciavam a fumaça que reagiu com a chuva e se fez tinta. De resto, seu talento deu conta. Foi uma obra sem precedentes, pintada em um único traço. Mas foi somente para seus olhos. O que ele não se deu conta, é que a chuva, mesmo ajudando a criar, logo depois tratou de lavar aquela tela.

O preço da criação, no entanto, foi mais alto do que parecia. A pneumonia, causada pela chuva fria, por muito pouco não o fez arcar com a morte. Com alguma sorte, muitos cuidados e também com os remédios da modernidade, conseguiu voltar ao alto daquele prédio tempos depois.

O banco, a murada de onde ele observava o cotidiano, e também a tela no cavalete. Tudo estava ali.

Sentou e, pacientemente, esperou novamente pela chuva. Ela destruíra sua melhor criação, mas também fora responsável pela breve existência dela. Por que, então, não tentar novamente?


Por via das dúvidas, deixou um guarda-chuva disposto ao seu lado. Aprendera a lição.





Marcio Rutes





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7 comentários:

  1. Olá, Márcio, quanta criatividade, maravilha! Fui lendo seu texto e pensando também sobre a evolução das coisas, da criação, das pessoas, dos anos, dos séculos que vieram transformando as nossas vidas trazendo coisas mais fáceis. A época de nossas avós, de nossas mães, tudo evoluindo até chegarmos ao nosso tempo da informática, da Internet e que em segundos estamos nos comunicando com o outro lado do mundo. Que coisa fantástica! Pensei sim em tudo isso, para dar com a outra parte do texto.
    Os frutos amargos do progresso, não permitem mais um Bom Dia, ainda acontece, sim, mas no interior do país onde as pessoas são mais civilizadas, não nas metrópoles! Os coches, as carroças não vemos mais, viraram carros de luxo, os vestidos de outrora... onde foram parar? Não, tudo evoluiu! Evoluiu? Isso chamamos de evolução, pois é. Viajei com esse seu texto, até onde minha mente alcança. Não duvido se em breve não voaremos, aliás, já andam falando em carros voadores! Mas não entraria nem amarrada. Um mundo que não faço questão.
    Gostei muito da parte da criação pictórica, que bela narrativa, visualizei a pintura, a chuva transformando os borrões, apagando e formando outras coisas na tela já suja pela fumaça. Muito linda essa parte, Márcio. E a espera por mais chuva a traçar novas ilusões na tela branca me deixou curiosa!
    Levanto da cadeira do PC para lhe aplaudir!
    Um Feliz Ano de 2023, com muita saúde, paz e esperança de um mundo melhor.
    E novas criações, muitas! Grande abraço, amigo.

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  2. Olá Márcio, que delícia ler seu texto!
    Foi tão gostoso que li duas vezes, pode crer...
    Seu texto me deu uma vontade de observar minha cidade de um lugar alto, é mais: ver a chuva
    Muito bom...
    Te desejo um feliz 2023 , que esse ano que começa te dê muita saúde e paz para você e sua família.
    Um grande abraço

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  3. Oi Márcio, quando eu crescer eu adoraria escrever, nem que seja um pouquinho, como você... Entretanto, com a leitura deste grandioso texto de hoje, (Somente para os seus olhos) percebi que é impossível, pois você tem o dom de nos fazer enxergar, com palavras e versos, a própria vida delineada lá fora...É poético!!!

    Fiquei encantada e curiosa com o que aconteceria com o quadro, se a imagem retratada pela poeira preta do progresso em conjunto com os pingos originais de água da chuva , se transformariam em uma obra de arte, o que de fato aconteceu...
    Mas tudo o que é belo e lindo dura pouco, a própria chuva voltou e lavou a tela deixando-a branquinha e o resultado drástico da pneumonia ao artista, não foi nada agradável.

    Posso dizer que em comparação com o mundo real, aqui da varanda da minha casa, daria para deixar a chuva pintar uma tela, pois a poeira preta de minério que vem pelo ar da VALE do Rio Doce, está cada vez mais intensa. Muitos sofrem com asma aqui em Vitória em razão deste "progresso" que não pode ser contido e é devidamente "mascarado" pela própria empresa.
    Mas graças a Deus meu pai está se recuperando bem, amanhã, dia 04, o levarei para mais uma radiografia e em seguida ao médico que dará um novo parecer! Se Deus quiser tudo ficará bem!!

    Agradeço imensamente sua companhia no final de 2022 amigo, já disse e repito que foi um grande presente para mim, que já estava desestimulada em prosseguir com os blogs naquela período complexo, mas você apareceu e me deu ânimo novo, um sopro de luz e de vida!! OBRIGADA!! Um feliz 2023!!!!!

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  4. Olá Márcio, Vim retribuir sua visita no meu blog, então você encontrou minha casa nova e gostou, que legal Márcio, realmente eu caprichei não é verdade? kk
    Também achei que ficou show, com sete anos e tema novo, amei.
    Sua casa também não fica atrás é linda, e o nome tbm, gostei muito de Crônicas de areia. Fabuloso. Volta lá no meu blog que agora sim vais achar uma nova postagem,
    abraços e ótima quarta-feira.

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  5. A vida é como uma tela em branco onde, a cada amanhecer fazemos a nossa pintura; gostariamos que nela conseguissemos colocar toda a nossa arte, nem que fosse só uns simples rabiscos, todos coloridos, com as cores do arco-iris; não é assim que acontece e muitas vezes, quando a noite chega, olhamos o que desenhámos e tudo é escuridão; nem sempre é falta de jeito ou de vontade, mas é, sim, o que a vida nos permitiu fazer. Costuma-se dizer que temos o poder de escolha, que as decisões são sempre nossas, mas não creio nisso, pois a vida empurra-nos para a frente por caminhos que não escolhemos. Sabes, Marcio, nasci e vivi numa aldeia até ir para o Brasil e o teu texto fez-me voltar àqueles tempos onde as pessoas andavam mais devagar, diziam bom dia ou boa tarde sempre que se cruzavam com alguém, entravam nas casas dos vizinhos, sempre de portas abertas, como se à familia pertencessem; as crianças corriam livres pelos caminhos ou pelos campos, felizes, apesar das dificuldades financeiras. Não havia telemóveis, poucos tinham telefone fixo e os automóveis podiam contar-se pelos dedos, como se costuma dizer; eram tempos de pouca abundância, mas , quando havia o suficiente, as pessoas não se queixavam. Hoje mudou tudo e já não reconheço a minha aldeia. As portas trancam-se, as crianças ficam dentro de casa e as pessoas isolam-se mais: como nas cidades, também as gentes de lá querem ter tudo o que o dinheiro pode comprar e trabalham sem descanso, numa correria igual à que vejo na cidade onde agora vivo. Não posso dizer que todo este progresso tem sido mau , Amigo......na minha aldeia, hoje, não há gente com fome, não há pessoas sem telefone e, principalmente não morrem crianças à nascença, nem adultos com pneumonia. Se não fosse o progresso, não estaria a ler este texto maravilhoso e a reflectir sobre os prós e contras da evolução do mundo. O problema, Amigo, é não haver equilibrio , é não sabermos usar o progresso em beneficio da sociedade, é haver ganância e uma ânsia desmesurada pelo poder. O mal do ser humano sempre foi e continuará a ser o amor ao dinheiro, acima de qualquer outra coisa. Amigo, a gradeço -te este belo momento de reflexão e desculpa por ter-me alongado muito. Já deves ter-me encontrado por aí e portanto sabes que " falo " demais. Um beijinho e um ano sereno, com saúde para todos os que te são queridos . Foi bom ter-te conhecido!
    Emilia

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  6. Márcio,
    Estou retornando
    agora a escrever,
    a ler e comentar nos Blogs que
    aprecio.
    Li sua publicação e voltarei
    a ler e somente depois
    comentarei de fato.
    Desejo um 2023 inspirador
    e cheio de esperança.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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  7. Marcio,
    Volto quando já se passaram quinze dias do Ano Novo para reler o conto “Somente para seus olhos”. O que seria do texto literário sem a ambiguidade? Quanto esta figura nos arrasta em cada frase, em cada período, em cada parágrafo. É ela que nos faz buscar os diversos sentidos, as diversas nuances, os diversos olhares, que nos faz interrogar desde os “seus olhos” carregado de sugestão ou de advertência. “Somente para seus olhos”, esteja atento, são eles que depreenderão tudo que aqui se assenta. É do seu ponto de vista que a história se desdobra, o narrador desenrola os fios, quem os ata é o leitor. Não há como nos desprendermos da sua bela narrativa e refletir sobre a metáfora da tela, do olhar do alto como se fosse um Deus, sobre o comportamento humano. Sobre o faz-se e desfaz-se na vida de cada um inesperadamente. Louve-se o domínio da técnica da narrativa. Apenas o essencial está dito. O ponto final é do leitor que pode dispensar o guarda-chuva, ainda que chova. Se tal acontecer é para louvar a fecundidade do seu texto. Bravo!
    Um abraço,

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