quinta-feira, 1 de setembro de 2022

SOMENTE MAIS UM NATAL

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A correria era intensa. Pessoas amontoavam-se por todos os cantos, desesperadas e divergindo sobre o que quer que estivesse sendo discutido, olhado, comprado ou disputado. Anarquia. Caos. Véspera de Natal.

Era uma grande cidade, com todos os benefícios que ela trazia, mas também com todos os problemas e mazelas que qualquer metrópole possui. Todos poderiam ter quase tudo, desde que possuíssem formas e meios para comprar. Alguns ostentavam riquezas, posses que outros apenas sonhavam, enquanto um considerável número de pessoas invejava e desejava essas mesmas posses. As lojas estavam abarrotadas de clientes, e pela rua o que mais se via eram pacotes de presentes correndo de um lado para o outro, nas mãos dos apressados habitantes daquele lugar.

Num cantinho, um menino observava a tudo, acuado e temeroso. Seu nome? Cezar. Mas era o Tiquinho, apelido que ganhou nas ruas por ser mirrado, pequeno, um verdadeiro “tico” de gente. Tiquinho, como qualquer outro menino de rua, tinha sua história. E a dele era triste, por certo. Seus pais, que eram pessoas boas e bem de vida, sofreram um acidente há alguns anos, e morreram enquanto ele ainda era apenas um recém nascido. Órfão, sua tutela temporária foi dada a alguns parentes, mas o destino fez das suas, e esses tutores mostraram bem o que queriam: apenas seus bens. Ele, como único filho, era uma pequena mina de dinheiro fácil, e sem sequer conhecer a vida, na flor da idade terminou largado nas ruas e abandonado à própria sorte.

Aprendeu desde cedo a viver sozinho, a brigar para poder se alimentar e não morrer de frio nas madrugadas, ou a não ser vítima das violências urbanas. Roubava sim, mas para sustentar o corpo. Sequer sabia ler e escrever, e muito menos imaginava que possuía direitos como ser humano que era. Seus direitos, para ele, eram regidos pela lei, mas não a mesma lei que assiste a um cidadão comum. Tiquinho seguia a lei da sobrevivência. A lei das ruas.

Tiquinho tinha dois sonhos. Um deles, que acompanhava-o desde muito tempo, era o de ter um mundo amarelo. Sim, ele queria um mundo amarelo, da cor do sol nascente. O outro sonho? Saber se seus pais estavam realmente mortos. E se não estavam mortos, queria saber deles, se estavam bem e, ainda, se sentiam saudades dele. Não tinha ódio em seu coração, mas sentia-se só, abandonado. E uma das coisas que mais martirizava seu coração era justamente o fato de não entender essa condição de abandono que ele e tantos outros carregam.

Era engraçado reparar as pessoas falando desse “tal Natal”, ou do “tal Jesus Cristo”. Ele nem sabia dessas coisas, fosse Natal ou Jesus Cristo, e o único intento que o movia era o pensamento de que precisava se alimentar. Algumas latas de lixo, ao lado de um restaurante, eram seu alvo rotineiro, mas outros flagelados urbanos também miravam aquele “banquete”. Viu, então, que precisaria esperar, pois os outros eram maiores e mais fortes e ele, pequenino como era, possivelmente seria espancado e enxotado. Tratou de sentar e torcer para que algo restasse.

Via as pessoas passando ao seu lado, puxando crianças iguais a ele pelas mãos. Essas crianças pareciam estranhas, pois viviam sorrindo. Por que faziam isso? Será que elas tinham algo que ele não tinha? Porém, isso pouco importava. A tarde já chegava ao fim, e com isso, a fome apertava. Deitou em algumas folhas de papelão e fechou os olhos, esperando pela noite e pela chance de comer. E como fazia todas as noites, chorou.

Acordou assustado. Era tarde demais, já quase madrugada, e ele perdera a hora. Mas, quem sabe ainda existisse algo lá naqueles latões de lixo para comer? Correu e não viu mais ninguém, o que era um mau sinal. Nada. Tudo acabado.

Sentou-se ao meio-fio, triste e com fome, e sentiu uma amargura enorme. A noite passaria lentamente, ele sabia, e o estômago reclamaria em alto e bom som. Não sabia qual era a pior dor, se da fome ou da sensação de abandono. Uma dor mutila o corpo enquanto a outra dilacera a esperança. Afinou os ouvidos e escutou passos de alguém, o que fez com que ele se agitasse e pulasse rapidamente para se esconder. A rua ensina isso, a desconfiar de tudo.

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―Tiquinho. ―alguém chamou. ―Sei que está aí! Vamos, menino. Eu vi você revirando o lixo. Deve estar com fome. Aparece.

Era seu Tião, o vigia do restaurante. Todos respeitavam muito aquele homem. Era austero, por certo, mas não era alguém ruim. A profissão exigia que ele mantivesse a ordem, e nem sempre tal fato era bem recebido por todos. Quando Tiquinho olhou o que o vigia trazia nas mãos, quase desmaiou. Era um grande e suculento sanduíche.

―Menino. Sei que está em algum canto! Vou deixar este sanduíche aqui no chão. Era meu jantar. Não tenho muito, mas sei que você precisa mais do que eu!

Seu Tião deixou o sanduíche por ali mesmo e se afastou. Mas ficou olhando, escondido. Não demorou para que o menino passasse por ali como uma flecha. Pegou o sanduíche e correu o que pode, e nem era por medo do vigia, mas sim de que algum outro habitante das ruas tomasse dele.

O menino sequer olhou para trás e parou perto de um parque. Uma árvore serviu de camuflagem e ele sentou, completamente arfante. Ao abrir a boca para comer, viu algo estranho. Era um homem, barbudo e muito sujo, sentado logo adiante. Tiquinho pensou em correr, mas ao invés disso, foi até aquele homem.

―Menino. To com fome. Me dá esse sanduíche?

Tiquinho era arredio, esguio e desconfiado, e escondeu o sanduíche rapidamente. Mas reparou noutra coisa. O homem estendeu as mãos, formando uma concha, e implorou por comida. As mãos dele estavam feridas, como se sangrassem. O menino não pensou muito. Jogou a comida nas mãos daquele mendigo e correu com medo. Só parou quando chegou novamente perto das lixeiras do restaurante.

E agora? A fome era terrível, e dificilmente seu Tião lhe daria outro sanduíche. Não havia mais ninguém por ali, e mesmo que alguém passasse naquele lugar, sequer pararia para escutá-lo ou alimentá-lo. Foi então que em seu desespero, notou um grande latão de lixo mais para o fim do beco. Foi até lá e o escalou com alguma dificuldade, e a única coisa que passava em sua mente era o desejo de que algum resto de comida existisse no fundo daquela lixeira. O cheiro era insuportável, o que fez com que uma tontura forte o tomasse. Seus olhos fixaram-se em algo branco, e quando sua mão estava para alcançar aquilo, ele escorregou definitivamente para dentro e por ali ficou, aparentemente desmaiado.

Seu Tião saia para a ronda no mesmo instante em que o menino caia para dentro do latão, e viu o que aconteceu. Correu até lá e, rapidamente, tentou retirar o menino, mas desanimou. Tomou sua pulsação e não sentiu nada, sequer um batimento.

―Menino de Deus. Que aconteceu? Vou ligar pra ambulância.

Passava pouco da meia-noite, e Tiquinho estava ali, morto exatamente na madrugada de Natal.

Uma luz branca se fez, e do meio dela, Tiquinho apareceu. Ele, sem entender o que estava acontecendo, caminhou lentamente. Seus olhos curiosos corriam por todos os cantos, como se buscassem elementos conhecidos, mas quanto mais ele andava, mais ele se dava conta de que aquilo tudo não era normal. Um pouco mais adiante, uma porta chamou sua atenção. Tudo naquele lugar era branco, mas aquela porta não. Ela era amarela. Tiquinho foi até ela e, sem medo, abriu de forma abrupta. O que viu ao passar pela porta quase o fez cair de costas.

Um campo enorme, a perder de vista, apareceu diante de seus olhos. E o melhor. Ele era totalmente amarelo, coberto por flores. Mas não eram quaisquer flores. Eram girassóis. O menino esqueceu o medo e a desconfiança e correu para dentro daquele campo. Ainda estava sem entender, mas algo o deixava igual àquelas crianças que vira no dia anterior. Ele estava sorrindo. A fome? Estranho, ele não sentia fome.

Ah! Aquilo era fantástico.

Correu tanto, e sequer canseira ele tinha. Correu mais, e mais, até que parou e se ajoelhou. Um casal jovem, um pouco mais adiante, o esperava. E ele sabia, tinha certeza, eram seus pais. Correu novamente. Não. Ele não correu. Ele voou. Sim, voou. Ele conseguia voar. Não sabia como, mas conseguia.

Eram eles sim. Era o cheiro deles. Era a energia deles. E ele os abraçou. Chorou, mas chorou tanto, que sequer conseguia olhá-los... até que sentiu sono. Lutou para não dormir, não queria, pois o que tanto desejou estava ali, diante dele. Então, por que o sono?

―Filho. ―a mulher falou ternamente. ―Ainda não é o seu momento. Você deve voltar. Um dia estaremos juntos. Nós te amamos. Agora vai.

E Tiquinho adormeceu de vez.

Alguns homens conversavam enquanto seu Tião esbravejava.

―Como vocês são desumanos! Coitado do menino! Só porque é um mendigo, vocês pensam que podem atender desse jeito? Se fosse o filho de um rico, vocês teriam chegado antes, com toda certeza.

Seu Tião reclamava com os atendentes da ambulância, que sequer queriam verificar se o menino morrera ou não. Estava transtornado. Alguns minutos depois, ainda muito irritado, foi até onde o corpo do menino estava, abaixando-se para fazer uma oração por ele. Ao se ajoelhar, tomou o maior susto. Do nada, Tiquinho abriu os olhos.

­―Onde eles estão? Cadê meus pais? Cadê o campo amarelo?

Ninguém entendeu nada. Para todos, o menino havia morrido, mas ele estava ali, acordado e fazendo perguntas totalmente desencontradas.

Alguns minutos foram necessários para que Tiquinho fosse examinado, isso depois que seu Tião exigiu, com toda sua autoridade, que os para-médicos o atendessem. Depois, com tudo já resolvido, seu Tião olhou para o menino e viu nos olhos dele algo diferente. Havia uma luz, amarela e radiante, que parecia brotar dali.

―Menino, você me deixou muito triste. Pensei que você tinha morrido bem ali, e justo hoje, na noite de Natal!

Seu Tião era um homem muito honesto e trabalhador. Morava com sua esposa, já de meia idade assim como ele, e mais ninguém. Quis o destino que sua esposa fosse infértil, e seu maior sonho era ter um filho. No entanto, a justiça sempre negou seus pedidos de adoção. Mas aquilo ia acabar, pensou ele. “Em alguns momentos, temos que agir como manda nosso coração!”, ele pensou. Após isso rebater em sua cabeça, ele se abaixou diante do menino e falou calmamente.

―Quer ser meu filho? Quer ir morar lá em casa? ―seu Tião falava e deixava uma pequena lágrima escorrer, dando mais força àquelas palavras. ―Vamos? Depois ajeitamos a papelada e o que for necessário.

O que aconteceu depois fez seu Tião chorar ainda mais. Tiquinho quase pulou em seus braços, e o abraçou fortemente.

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Do outro lado da rua, um homem barbudo e todo maltrapilho estava parado, observando-os. Nas mãos, além de algumas feridas que sangravam, trazia também um sanduíche. Era somente um mendigo, claro, se não fosse o fato de que seus pés descalços não tocavam o chão. Eles flutuavam. Seu Tião olhou para aquele homem e pensou que era sua imaginação pregando alguma peça. Esfregou os olhos e balançou a cabeça, e quando olhou novamente para o outro lado da rua, não viu mais ninguém.

O tempo passou e Tiquinho, agora homem feito, já deu vários netos a seu Tião. Ele e a família vivem numa pequena chácara, onde plantam e colhem girassóis. Ganhou seu “mundo amarelo” e tem agora uma família. Seus pais? Ele sabe, tem certeza, de que um dia os re-encontrará. Se ele está feliz? Sim, por certo. Ele sabe que milagres acontecem sim, principalmente quando vamos além de apenas acreditar. Precisamos nos doar e fazer da bondade algo que comande nossos corações. Deus vive em cada um de nós, e Ele está só esperando uma chance para mostrar o quanto é possível realizar nossos sonhos. Por vezes sofremos, mas quando isto acontecer, que olhemos para o lado, pois sempre encontraremos pessoas sofrendo ainda mais.


Marcio Rutes


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Um comentário:

  1. Marcio, percorreu vários caminhos em seu conto. Trouxe-nos a realidade do abandono, os sonhos de uma criança, a solidariedade, anjos da vida e um final feliz. Tudo possível através da esperança e da certeza de que existe um Deus de bondade. Gostei muito. Abraço.

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