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Saíra da rodovia
principal fazia algum tempo, nem lembrava quanto, e agora transitava por
estradas secundárias. A comida, pouca, pesava no alforje, mas não poderia
abandoná-la. Era seu pouco sustento, e precisaria durar sabe Deus até
quando. Ou até que ele achasse novamente algum lugar onde pudesse repô-la.
Sentou sob uma árvore
e se colocou a lembrar dos últimos acontecimentos. Pouco lhe veio a mente,
talvez por algum bloqueio ou algo assim, e dentro daquilo que lembrava, o que
mais o atemorizava era a imagem do teto de sua pequena casa despencando para
cima dele. Depois disso, ao conseguir sair dos escombros, lembrava do povo
correndo desordenadamente e em pânico. Um lapso insistia em deixar tudo branco,
e a imagem posterior a isso já era a da estrada. Sequer a contagem de dez dias
era precisa, e nem ao menos recordava de ter reunido alimento ou de ter se
despedido de alguém. A única certeza que lhe cabia era a da vontade de jamais
olhar para trás.
Cansara de tanto
trabalhar e de pouco ter. Não que quisesse muito, mas gostaria de poder viver
com dignidade, com menos apertos financeiros. Sim, tinha vícios. Gostava de
aproveitar a tarde de sábado com os amigos em algum bar, e também de fumar seu cigarro,
mas jamais gastou em demasia. Fumava pouco e a bebida nos sábados era mais para
aproveitar aquela conversa e deixar extravasar a canseira do canteiro de obras
que tanto maltratava pela semana inteira, do que para se embebedar. Outros vícios? Não apostava dinheiro,
não era nenhum pervertido, nem existia mais nada que pudesse denegrir seu caráter. Era
honesto e carinhoso. Então, por que tanto castigo? Em tão pouco tempo, no espaço
de três meses, perdeu a mãe para uma doença repentina, a namorada foi embora,
o cachorro (fiel companheiro por mais de uma década) também morreu, e por fim,
sua casa desmoronou. Era demais para ele.
Começava a questionar
se Deus realmente estava perto dele.
Levantou e começou a
caminhar novamente, até que mais adiante, reparou um casal capinando uma
pequena propriedade. Achou estranho, pois não viu nada plantado. Pedras e mais
pedras, de todos os tamanhos. Era o que ele enxergava para todos os lados.
Olhou ao redor e constatou que todo aquele lugar era inóspito, e não servia para o
cultivo de nada.
Aproximou-se da cerca
e observou por mais alguns instantes. Era um casal já idoso, e com algumas
dificuldades para se locomover e trabalhar. A mulher, beirando os setenta anos,
usava um lenço amarrado ao cabelo, e carregava uma expressão sofrida, como se o
sol tivesse castigado sua face por toda uma vida. O homem, parecendo ter a
mesma idade, arrastava uma das pernas e mais se apoiava na enxada do que a
utilizava para a labuta. No entanto, mesmo naquele ritmo lento, o casal não parou um instante
sequer.
Duas horas depois, o
casal de idosos caminhou para a cerca. A mulher amparava o homem pelo braço,
puxando-o com algum cuidado. Quando finalmente se aproximaram, o andarilho
reparou que aquela senhora pouco enxergava, e se esforçava muito para ver onde
pisava.
―Boa tarde. ―o
andarilho cumprimentou, apoiando-se a cerca.
―Boa tarde, meu filho.
Que Deus o abençoe. ―a senhora respondeu, educadamente.
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―Meu filho, isso é o
que nos restou de uma vida inteira. É o nosso recomeço.
O andarilho ficou
espantado com o que ouviu. Recomeço? Naquela idade? Naquele lugar?
―Perdão, mas eu
fiquei sem entender! ―uma expressão aturdida acompanhou as palavras do
andarilho.
A senhora ajudou o
esposo a se sentar e deu-lhe uma pequena garrafa, que parecia ser o único
sustento que eles possuíam naquele instante. Era água. O senhor idoso tomou
aquilo lentamente, em pequenos goles, e devolveu a garrafa para a esposa, que a
ofereceu ao andarilho.
―É difícil achar água
por estas paragens. ―ela esticou o braço com alguma dificuldade. ―Tome,
sirva-se. É o pouco que temos, mas o senhor deve ter sede.
Uma sensação de culpa
tomou a consciência do andarilho. Olhou para aquele casal e a única coisa em
que pensou foi no restante de alimento que ainda sobrava no alforje. Era seu
único sustento, e precisaria conservá-lo, mas a situação que se apresentava
cortou-lhe o coração. Recusou a água, devolvendo a garrafa para a mulher e
retirou tudo o que tinha no alforje. Pulou a cerca e sentou-se, ajudando a
mulher a fazer o mesmo. Ali ficaram por mais de uma hora, conversando e se alimentando
com aquele pouco. A noite começava a se aproximar, e sem que o andarilho
esperasse, a mulher convidou-o para pernoitar na pequena tapera em que
habitavam. Lá, a miséria era ainda maior.
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―Fomos muito bem de
vida, moço. ―as palavras mal tinham força para sair do velho senhor, que
sentado ao lado daquilo que parecia uma cama, escorava-se na parede cheia de
frestas. ―Tivemos fazendas, carros, caminhões. Esbanjamos o que tínhamos. Nosso
único filho estudou na Europa, e quando voltou, trouxe junto uma mulher que só
queria saber de festas caras. Quando nos demos conta, nosso dinheiro havia
sumido. Eles tiraram tudo o que tínhamos. Um tanto eles gastaram, e o outro
eles roubaram mesmo. Perdemos tudo, fomos escorraçados de nossas terras, e
ficamos sem rumo. Nosso filho nos abandonou, e sequer sabemos onde ele mora...
...para não terminarmos a vida num asilo, eu e minha velha fomos trabalhar. Isso mesmo, nunca fomos de nos
entregar facilmente. Todos os amigos viraram as costas quando notaram que não
tínhamos mais nada. Aprendemos a economizar, e com o pouco que ganhávamos,
refizemos a vida...
...depois de alguns anos
de trabalho duro, melhoramos de vida novamente, mas estávamos diferentes. Não
esbanjávamos mais. Cuidávamos daquilo que conquistamos novamente, mas sem
ganância. Tentávamos ajudar a quem precisasse, até que num certo dia, um homem
bateu em nossa porta pedindo abrigo e comida. Ele estava com a mulher e um
filho, e não vimos perigo em acolhê-los...
...na manhã seguinte,
eles nos assaltaram. Eu levei um tiro na perna e minha velha, coitada, foi
jogada contra a parede por aquele homem que alimentamos. Quase ficou cega. Hoje,
eu mal posso andar, mas a guio, enquanto ela, sem ver, me carrega. Escoramo-nos
um ao outro. Mas perdemos tudo novamente.
―E esta terra? O que
fazem aqui? Vocês não vão conseguir transformar isto aqui em algo que forneça
sustento. ―o andarilho interrompeu a conversa, mostrando um tanto de indignação
pelo que escutava. ―O que pretendem aqui? Já são velhos e sem forças!
―Meu filho! ―a mulher
adiantou-se ao marido, tomando-lhe a palavra. ―Não podemos esperar que alguém
faça por nós, e muito menos que caia tudo do céu. Esta terra não tem dono e ninguém a quer. Ela é como nós. Então, nos unimos a ela. Enquanto pudermos
andar e enxergar, vamos trabalhar, vamos viver e vamos agradecer. E quando não
pudermos mais, morreremos, mas sempre sabendo que jamais desistimos. Já
apanhamos da vida, e aprendemos com tudo. Cometeremos outros erros, é claro,
mas não os mesmos.
―Mas, senhora! Aqui
só existem pedras!
―Só existem pedras
para aquele que só quer enxergar pedras, meu filho. ―ela continuou,
calmamente. ―Para nós, existe um belo jardim debaixo das pedras, onde
plantaremos lindas flores. E para o lado de cá da propriedade, as pedras
construirão uma casa confortável para nós. Do outro lado, plantaremos nosso
sustento, e do outro, teremos um lindo tanque com peixes e marrecos.
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O andarilho olhou
ternamente para aquele casal. Era provável que eles jamais conseguissem tal
feito, mas agora ele entendia. Faziam aquilo para manterem-se em pé, vivos. O
sonho os mantinha eretos, dignos de si próprios. E por ali, o andarilho acabou
ficando. Foi acolhido como a um filho. Até que 3 anos depois, o casal partiu
desta vida. O andarilho, que havia ajudado a cultivar um jardim, construiu uma
pequena capela, toda feita daquelas pedras que o casal tanto sofrera para
carregar de um lado para outro, e os enterrou dentro dela, em respeito a tudo
aquilo que ele adquiriu com aqueles que o acolheram. Aprendeu muito com eles. Ganhou sabedoria.
Tempos depois, o
andarilho retornou para a cidade, justamente para o local de onde partira alguns anos antes. Lá estava sua casa, ou os
escombros dela. Tudo estava exatamente igual, como no dia em que virara as costas para aquele lugar.
Nenhum de seus antigos vizinhos se atrevera a retornar para aquela encosta de morro.
Ele, ao chegar, largou o que tinha nas mãos, arregaçou as mangas e começou a
carregar os pedaços de parede de um lado para o outro.
Não demorou e logo
alguém veio até o local, curioso para saber o que ele fazia.
―O que eu pretendo,
carregando essas pedras? Construirei, antes de qualquer coisa, um belo jardim.
Um lindo e perfumado jardim.
Marcio JR
(Marcio Rutes)
Tocante...
ResponderExcluirQue preciosidade.
ResponderExcluirÉ desta forma que tocamos as friezas, plantando um lindo jardim e ofertando sementes.
Amei maninho
Oi, Márcio, bom te reencontrar!!
ResponderExcluirEstava com saudades de teus textos. Bjs
Abri e li do meio pro fim...às vezes faço isso...e, claro, rapidinho subi pro início e me emocionei, até a última palavra!
ResponderExcluirProfundo esse texto disfarçado de "coisa comum"...acontece a toda hora, mas nem sempre a gente vê o que está "escondido" atrás das palavras...das imagens... nos sonhos das pessoas, suas vivências e expectativas... adorei!!!
Boa semana "vizinho"...rs
Bjos