segunda-feira, 18 de março de 2013

FADA DAS MANHÃS (uma fábula dos dias atuais)



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Mariana acordou naquela manhã de abril. Como todos os dias, pensou ser sua última manhã. E novamente não foi.

A fumaça das chaminés ardeu em seus olhos assim que abriu as janelas. Lá fora, mesmo ainda muito cedo, já via as pessoas um tanto desesperadas por suas caronas e conduções. Olhou por alguns instantes para o céu e irritou-se com a poluição.

―Isso não acaba nunca? ­―pensou ela, ao mirar o céu cor de chumbo, exatamente igual ao da boca da noite anterior.

Mariana era uma mulher sofrida. Desistira de viver fazia algum tempo, aos poucos, deixando que seu peito se entregasse aquele marasmo em que sua existência entrara. Culpa dela ou de uma sociedade que cobrava demais e dava de menos? Isso já não fazia diferença, e então, como em cada manhã, arrumou-se e saiu para a rua, já imaginando o empurra-empurra na estação de trem.

Como num ritual, seu caminho até a estação foi regado por suas introjeções e introspecções. O balanço, como sempre, foi negativo.

­―Deus, como eu gostaria de fazer o dia das pessoas mais feliz. Quem dera eu pudesse fazer a manhã de alguém ser diferente, sorridente.

Assim ela caminhou como fazia em cada manhã.

Já na primeira esquina, encontrou Pedro, um mulatinho tristonho e que morava na rua. Dia após dia ele estava lá, solitário e com um aspecto esfomeado. E ela, sempre que passava, jogava uma moeda para ele, mas sempre dizendo:

―Ei, Pedro. Esquece do meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?

De lá, ela partia para a rua principal. No meio daquele amontoado de gente, ela se esquivava, desviava, e chegava até a floricultura. Lá ela encontrava “seu” Chang, chinês já idoso e que mal falava o português. Ele era dono de uma cara amarrada, mas no fundo era uma ótima pessoa. Não passava de alguém que cansara de trabalhar, porém, não poderia parar pois sustentava uma parte de sua família que ainda morava na China. Ninguém ligava para isso, ou sequer sabia, mas Mariana... ah! Mariana descobrira isso através de uma amiga, e todas as manhãs passava por lá para comprar uma rosa e perguntar dos parentes do velho Chang. Aprendera até algumas palavras em chinês, para melhorar a comunicação. Seu Chang, mesmo carrancudo, acabava sempre despontando um sorriso para ela.

E a rosa que Mariana comprava do velho Chang? Essa rosa tinha endereço certo. Um desvio aqui, outro ali, um ou dois becos apertados, e lá estava o asilo. Vários senhores e senhoras ficavam naquele portão em cada manhã, olhando o movimento louco de todos aqueles apressados, apertados pelas calçadas. Quando enxergavam Mariana se aproximando, todos se ouriçavam, quase tropeçando uns nos outros. Logo, um deles corria e puxava algum outro paciente, carregando-o essa até o portão. Mas, para que isso?

A resposta era simples. A mãe de Mariana terminara seus dias ali, exatamente naquele asilo, e Mariana, mesmo diante do escasso tempo, jamais se furtara de suas visitas matinais. Seu dinheiro também não era muito, então ela comprava a rasa do velho Chang e presenteava alguém do asilo, uma pessoa por dia, e para deixar ainda mais feliz àqueles pacientes do tempo, recitava alguns versos, ora de sua autoria, ora de algum poeta que ela lia na noite anterior. Em seguida, partia para seu emprego.

Depois do trem vinha o ônibus, sempre lotado. Ieda era a trocadora (ou cobradora, como alguns chamam), mulher frágil e castigada pela vida. Mariana, mesmo sabendo que precisaria se espremer para descer, ficava lá pela catraca, unicamente para escutar as histórias de Ieda. Não raramente, o ponto de descida ficava para trás, e lá ia Mariana correndo para a portaria da empresa.

Seu Galvão, homem sério e trabalhador, era o porteiro. Mariana soube que ele estava com problemas financeiros e de saúde na família, e que mal tinha o que comer. Ovos, pão e café. Era o que ela trazia na sacola a tiracolo. Não era muito, mas se ela pudesse, assim continuaria trazendo todos os dias. Quem sabe nem fosse por isso que seu Galvão se alegrasse tanto ao vê-la pela manhã, mas sim pelo sorriso que ela sempre deixava ao passar por aquela portaria. E assim que ela virava as costas, o porteiro dividia aquela refeição que ela deixava. Um tanto para ele e outro para levar para a esposa adoentada.

No caminho até seu departamento, ainda passava pelas copeiras, arrumadeiras, outros funcionários que ela sequer conhecia, mas sempre mantendo aquele sorriso no rosto. Até que chegava a sua mesa. Lá, ela desmontava, exausta. A rotina era sempre a mesma. Não demorava e Helena, uma das sócias da empresa, logo vinha até ela.

­―Atrasada novamente, não é? O que você pensa da vida? Acha que trabalhar aqui é algum divertimento? Ainda vou te despedir por todos esses atrasos. E tire esse sorriso do rosto. Sorrir não vai fazer a empresa ser melhor, e muito menos irá melhorar a vida de ninguém. Essas pessoas precisam de dinheiro e de trabalho.

Assim, Mariana passava seu dia. Queria ela, ao menos uma vez, fazer a manhã de alguém mais feliz. Isso era tudo o que ela queria.

Numa certa manhã, o dia amanheceu, mas Mariana não. Ela estava lá, estendida na cama e com os olhos fechados. O céu cor de chumbo trovejou e choveu, e Pedro foi o primeiro a sentir sua falta. Ficou no meio da chuva, olhando para o caminho por onde ela sempre vinha. Fome? Não. Sentiu falta dela lhe cobrando um sorriso.

O velho Chang, que já havia até embrulhado a rosa, também foi para o meio da rua, e lá ficou, esquecendo até dos clientes. No asilo, uma tristeza enorme tomava cada um daqueles que ainda conseguiam ir até o portão. Ieda, o trocadora do ônibus, sentiu-se mal, subitamente, e sequer apareceu para trabalhar.

Seu Galvão. Ah! Aquele homem era pura agonia. Corria para a portaria, ia até o portão, telefonava para a residência de Mariana, e nada. Estava quase enfartando. Algo estava errado. Ele sabia disso. Até as copeiras e arrumadeiras da empresa sentiam algo estranho no ar.

Mas Helena, a sócia da empresa, essa logo reagiu.

­―Alguém mande uma ordem para o departamento de pessoal. Quero “essazinha” demitida hoje mesmo. Quem ela pensa que é? Detesto pessoas que não têm nada a oferecer.

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E aqui termina a história de Mariana, uma mulher que desejava apenas modificar a manhã de alguém. Sonhava em transformar os dias das pessoas em momentos felizes.

O dia passou triste para todos, e na manhã seguinte, Pedro, o garoto que vivia na rua, sentiu uma lufada de vento roçar seu pescoço. Ele parou e, estranhamente, pensou ter escutado alguém sussurrar:

―Ei, Pedro. Esquece do meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?

Pedro virou rapidamente o pescoço e parou, perplexo. Diante dele, um anjo em forma de mulher, ou melhor, com o semblante de Mariana, olhava ternamente para ele. Desapareceu rapidamente, como se virasse fumaça e se misturasse com o chumbo das nuvens do céu. Mas era Mariana, ele sabia que sim.


Marcio JR
(Marcio Rutes)


4 comentários:

  1. Que lindo, Marcio! São, realmente, os detalhes que fazem toda a diferença.
    Adorei!

    Beijos.

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  2. Que riqueza de texto maninho.
    É uma grande alegria poder te ler outra vez. É que daqui das tuas palavras brotam emoção ternura e lição de vida.
    Mariana só queria mesmo manter a esperança na vida daquelas pessoas que cuidava.
    Me emocionei, amei te ler.

    Beijo e Feliz Páscoa.

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  3. ゚・*:.。. .。.:*・゚・*:.。. .。.:*・゚・*

    Feliz Páscoa!

    beijos,chica

    ゚・*:.。. .。.:*・゚・*:.。. .。.:*・゚・

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  4. Acabei agora de ler e me encantar,Márcio! Sempre maravilhosa tuas palavras e contos! Saudades ! abração,tudo de bom,chica

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