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Mariana acordou naquela manhã de abril. Como todos os dias, pensou ser sua última manhã. E novamente não foi.
A fumaça das chaminés
ardeu em seus olhos assim que abriu as janelas. Lá fora, mesmo ainda
muito cedo, já via as pessoas um tanto desesperadas por suas caronas e
conduções. Olhou por alguns instantes para o céu e irritou-se com a poluição.
―Isso não acaba nunca?
―pensou ela, ao mirar o céu cor de chumbo, exatamente igual ao da boca da
noite anterior.
Mariana era uma mulher
sofrida. Desistira de viver fazia algum tempo, aos poucos, deixando que seu
peito se entregasse aquele marasmo em que sua existência entrara. Culpa dela ou
de uma sociedade que cobrava demais e dava de menos? Isso já não fazia
diferença, e então, como em cada manhã, arrumou-se e saiu para a rua, já
imaginando o empurra-empurra na estação de trem.
Como num ritual, seu
caminho até a estação foi regado por suas introjeções e introspecções. O
balanço, como sempre, foi negativo.
―Deus, como eu
gostaria de fazer o dia das pessoas mais feliz. Quem dera eu pudesse fazer a manhã de
alguém ser diferente, sorridente.
Assim ela caminhou
como fazia em cada manhã.
Já na primeira
esquina, encontrou Pedro, um mulatinho tristonho e que morava na rua. Dia após
dia ele estava lá, solitário e com um aspecto esfomeado. E ela, sempre que
passava, jogava uma moeda para ele, mas sempre dizendo:
―Ei, Pedro. Esquece do
meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?
De lá, ela partia para
a rua principal. No meio daquele amontoado de gente, ela se esquivava,
desviava, e chegava até a floricultura. Lá ela encontrava “seu” Chang, chinês
já idoso e que mal falava o português. Ele era dono de uma cara amarrada, mas no fundo era
uma ótima pessoa. Não passava de alguém que cansara de trabalhar, porém, não poderia
parar pois sustentava uma parte de sua família que ainda morava na China. Ninguém
ligava para isso, ou sequer sabia, mas Mariana... ah! Mariana descobrira isso
através de uma amiga, e todas as manhãs passava por lá para comprar uma rosa e
perguntar dos parentes do velho Chang. Aprendera até algumas palavras em
chinês, para melhorar a comunicação. Seu Chang, mesmo carrancudo, acabava
sempre despontando um sorriso para ela.
E a rosa que Mariana
comprava do velho Chang? Essa rosa tinha endereço certo. Um desvio aqui, outro
ali, um ou dois becos apertados, e lá estava o asilo. Vários senhores e
senhoras ficavam naquele portão em cada manhã, olhando o movimento louco de todos aqueles apressados, apertados pelas calçadas. Quando
enxergavam Mariana se aproximando, todos se ouriçavam, quase tropeçando uns nos
outros. Logo, um deles corria e puxava algum outro paciente, carregando-o essa até o portão. Mas, para que isso?
A resposta era
simples. A mãe de Mariana terminara seus dias ali, exatamente naquele asilo, e
Mariana, mesmo diante do escasso tempo, jamais se furtara de suas visitas matinais.
Seu dinheiro também não era muito, então ela comprava a rasa do velho Chang e
presenteava alguém do asilo, uma pessoa por dia, e para deixar ainda mais feliz
àqueles pacientes do tempo, recitava alguns versos, ora de sua autoria, ora de
algum poeta que ela lia na noite anterior. Em seguida, partia para seu emprego.
Depois do trem vinha o
ônibus, sempre lotado. Ieda era a trocadora (ou cobradora, como alguns chamam),
mulher frágil e castigada pela vida. Mariana, mesmo sabendo que precisaria se
espremer para descer, ficava lá pela catraca, unicamente para escutar as
histórias de Ieda. Não raramente, o ponto de descida ficava para trás, e lá ia
Mariana correndo para a portaria da empresa.
Seu Galvão, homem
sério e trabalhador, era o porteiro. Mariana soube que ele estava com problemas
financeiros e de saúde na família, e que mal tinha o que comer. Ovos, pão e café. Era o que ela
trazia na sacola a tiracolo. Não era muito, mas se ela pudesse, assim continuaria
trazendo todos os dias. Quem sabe nem fosse por isso que seu Galvão se
alegrasse tanto ao vê-la pela manhã, mas sim pelo sorriso que ela sempre
deixava ao passar por aquela portaria. E assim que ela virava as costas, o
porteiro dividia aquela refeição que ela deixava. Um tanto para ele e outro
para levar para a esposa adoentada.
No caminho até seu
departamento, ainda passava pelas copeiras, arrumadeiras, outros funcionários
que ela sequer conhecia, mas sempre mantendo aquele sorriso no rosto. Até que
chegava a sua mesa. Lá, ela desmontava, exausta. A rotina era sempre a mesma. Não demorava
e Helena, uma das sócias da empresa, logo vinha até ela.
―Atrasada novamente,
não é? O que você pensa da vida? Acha que trabalhar aqui é algum divertimento?
Ainda vou te despedir por todos esses atrasos. E tire esse sorriso do rosto.
Sorrir não vai fazer a empresa ser melhor, e muito menos irá melhorar a vida de ninguém. Essas pessoas precisam de dinheiro e de trabalho.
Assim, Mariana passava
seu dia. Queria ela, ao menos uma vez, fazer a manhã de alguém mais feliz. Isso
era tudo o que ela queria.
Numa certa manhã, o
dia amanheceu, mas Mariana não. Ela estava lá, estendida na cama e com os olhos
fechados. O céu cor de chumbo trovejou e choveu, e Pedro foi o primeiro a
sentir sua falta. Ficou no meio da chuva, olhando para o caminho por onde ela
sempre vinha. Fome? Não. Sentiu falta dela lhe cobrando um sorriso.
O velho Chang, que já
havia até embrulhado a rosa, também foi para o meio da rua, e lá ficou,
esquecendo até dos clientes. No asilo, uma tristeza enorme tomava cada um
daqueles que ainda conseguiam ir até o portão. Ieda, o trocadora do ônibus,
sentiu-se mal, subitamente, e sequer apareceu para trabalhar.
Seu Galvão. Ah! Aquele
homem era pura agonia. Corria para a portaria, ia até o portão, telefonava para
a residência de Mariana, e nada. Estava quase enfartando. Algo estava errado.
Ele sabia disso. Até as copeiras e arrumadeiras da empresa sentiam algo
estranho no ar.
Mas Helena, a sócia da
empresa, essa logo reagiu.
―Alguém mande uma
ordem para o departamento de pessoal. Quero “essazinha” demitida hoje mesmo. Quem
ela pensa que é? Detesto pessoas que não têm nada a oferecer.
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E aqui termina a
história de Mariana, uma mulher que desejava apenas modificar a manhã de
alguém. Sonhava em transformar os dias das pessoas em momentos felizes.
O dia passou triste para todos, e na manhã seguinte,
Pedro, o garoto que vivia na rua, sentiu uma lufada de vento roçar seu
pescoço. Ele parou e, estranhamente, pensou ter escutado alguém sussurrar:
―Ei, Pedro. Esquece do
meu sorriso não. Quer me deixar tristonha também?
Marcio JR
(Marcio Rutes)
Que lindo, Marcio! São, realmente, os detalhes que fazem toda a diferença.
ResponderExcluirAdorei!
Beijos.
Que riqueza de texto maninho.
ResponderExcluirÉ uma grande alegria poder te ler outra vez. É que daqui das tuas palavras brotam emoção ternura e lição de vida.
Mariana só queria mesmo manter a esperança na vida daquelas pessoas que cuidava.
Me emocionei, amei te ler.
Beijo e Feliz Páscoa.
゚・*:.。. .。.:*・゚・*:.。. .。.:*・゚・*
ResponderExcluirFeliz Páscoa!
beijos,chica
゚・*:.。. .。.:*・゚・*:.。. .。.:*・゚・
Acabei agora de ler e me encantar,Márcio! Sempre maravilhosa tuas palavras e contos! Saudades ! abração,tudo de bom,chica
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