…continuação.
image by Google |
―Seja menos dramático, gato! ―o homem pediu,
sem alterar a calma.
―Menos dramático? Isso tudo foi culpa desse cão-sauro das cavernas. E dessa... dessa... dessa invasora de mundos mágicos! Vou comunicar a diretoria, os investidores e os patrocinadores de que o Natal vai ser cancelado e pronto!
―Cancelado? Como
assim? ―Dorinha perguntou, um tanto assustada. ―E vocês do mundo mágico? Vão
ficar sem Natal?
―Engana-se, menina
arteira! ―o gato retrucou. ―O Papai Noel faz parte do mundo mágico sim, mas é o Natal do seu mundo, lá na Terra, que vai deixar de existir! Porque se o velho Noel não tiver ajuda lá na fábrica dele,
não vai poder distribuir presentes no seu mundinho. E é tudo culpa sua!
Dorinha baixou a
cabeça e entristeceu. Não conseguia entender como seus atos, que jamais tiveram
a intenção de atrapalhar ninguém, puderam causar tantos transtornos. E agora, até o Natal
corria o risco de não existir. Aquele gato cheio de empáfia continuava em seu
falatório, correndo por todos os cantos e fazendo com que todos achassem que
ele próprio fora a vítima daquela situação trágica.
Luzia, a vendedora de
fósforos, aproximou-se e abraçou a nova amiga, confortando-a. Jujubão,
pressentindo que algo não ia bem, aninhou-se aos pés das meninas, mas foi Hans
quem conseguiu pensar rapidamente em algo.
―Mocinha, até parece
que você ainda não se deu conta dos poderes mágicos que possui! ―Hans falou
mansamente, abaixando-se para enxugar as lágrimas da menina.
―Eu? Poderes mágicos? ―Dorinha
falou, entre soluços. ―Tenho isso não, seu moço! Como disse o gato, sou apenas
uma encrenqueira e que só causa problemas pra vocês!
―Você ainda não sabe
quem sou eu, não é? ―Hans tornou a falar calmamente.
―Desculpa, mas não
conheço o senhor. É alguém importante?
―Talvez eu seja sim,
ou talvez não. Muitos não sabem quem eu sou, enquanto alguns outros conhecem um pouquinho das minhas criações.
―Criações? ―Dorinha e
Luzia perguntaram juntas, arregalando um pouco os olhos.
―Sim, criações. Uma
delas você conhece bem, a pequena vendedora de fósforos, que tão
graciosamente você batizou de Luzia, e que está te abraçando agora. E talvez
você também conheça a Polegarzinha, o Patinho Feio, o Soldadinho de Chumbo e a
Pequena Sereia.
―Mas... mas... mas...
então, o senhor é o Anderson? ―Dorinha arregalou ainda mais os olhos, agora
nitidamente surpresa. ―Aquele que meu pai sempre fala que escreveu tanta coisa
bonita?
―Mais ou menos. É
quase isso! ―Hans abriu um grande sorriso ao reparar que Dorinha errara seu
sobrenome. ―Hans Christian Andersen, aos seus serviços, senhorita.
Hans fez uma
reverência em cumprimento, algo jamais visto por Dorinha, mas que encantou as
duas meninas. Dorinha não sabia o que dizer, pois escutara tantas vezes seu pai
falar do tal Andersen, e agora ele estava ali, diante dela. Já a vendedora de
fósforos sentiu algo mágico fluir por todo seu corpo. Era como se encontrasse,
pela primeira vez, seu próprio pai. E um sorriso largo aflorou na face cheia de
lágrimas daquela menina.
―Por que estão
chorando? Será que falei algo errado?
―É que não sabemos o
que fazer, seu Hans! ―Dorinha balbuciou, enquanto Luzia apenas mantinha os
olhos vidrados naquele homem. ―Esse gato estropiado não pára de falar, e tá me deixando
maluquinha. Não quero ficar sem Natal. Nem quero ser a culpada pelo Papai Noel
não poder fazer o trabalho dele!
―Mas, então, deseje
que tudo se ajeite.
―Como assim, seu Hans?
Não sei fazer isso! Não tenho esse poder!
―A força da imaginação
de uma criança pode tudo, minha querida! ―Hans mantinha o tom de voz suave, e
olhando sempre nos olhos das meninas. ―Fui muito pobre, e quem mais me
incentivou foi meu pai, mas ele morreu cedo, quando eu tinha onze anos, que é
mais ou menos a idade da nossa pequena vendedora de fósforos.
Luzia olhava e chorava, como se escutasse a própria história.
―Meu pai foi um simples sapateiro que adorava ler, e dele, me restaram em herança alguns pares de sapatos que foram gastando com o
tempo, e um par de chinelos adultos. ―Hans continuou em sua narrativa, ainda falando
mansamente. ―Minha mãe era lavadeira, e depois que meu pai morreu, ela quase não conseguia sustentar eu e meus
irmãos. Certo dia, andando pela cidade, me roubaram um dos pés daquele par de
chinelos, e para mim foi um duro golpe. Uma das poucas coisas que meu pai deixara.
Quando cheguei em casa, estava muito frio, e minha mãe mandou-me acender o
fogo. Foi então que, ao acender um fósforo, tenho certeza de que vi meu pai na
chama que se fez.
―Que triste! ―Dorinha
comentou, olhando fixamente para Hans.
Luzia já não sabia se
escutava o que Hans falava ou se chorava, mas não se continha. E o homem, por
sua vez, colocou-se de joelhos diante das duas. Ele baixou a cabeça, e quando
ergueu-a novamente, deixou a mostra algumas lágrimas.
―E o que aconteceu,
seu Hans? ―afoitas, as palavras saíram apressadas da boca de Dorinha.
―Aconteceu que...
―Hans fez uma pausa, tomou fôlego, e continuou. ―...aconteceu que, nessa hora,
eu vi que por mais triste que eu pudesse me sentir naquele instante, meu pai
estava lá, olhando por mim. E algum tempo depois, para nunca mais esquecer desse
momento tão mágico, eu escrevi o conto da pequena vendedora de fósforos. Eu juro que não
era para ser triste. Eu juro que não era essa a intenção. É um pedaço da minha
vida. E sabe, minha querida, a vendedora de fósforos não tinha nome porque
talvez fosse eu mesmo que estivesse ali. É um pedaço de mim mesmo que vive
nessa menina que hoje você batizou tão belamente.
Luzia não conteve mais
a emoção e deu um salto, abraçando–se ao pescoço de Hans. A emoção foi tanta,
que não teve ser vivente naquele lugar que não se calou diante da cena. Até o
gato, que naquela altura já falava até com as formigas para tentar justificar o
não acontecimento do Natal, emudeceu.
O céu, rajado de
nuvens cor de pêssego, escureceu, e um véu de estrelas foi surgindo e baixando
para o mundo mágico. Pareciam pingentes, penduricalhos presos em varais
encantados e que choviam alegria por todos os cantos.
Dorinha olhava para
cima e sorria, enquanto Jujubão latia e saltava, como se tentasse abocanhar uma
daquelas estrelas. Ao olhar novamente para Hans e Luzia, Dorinha tomou o maior
susto. Ambos, abraçados, começavam a tornar-se uma só pessoa. Era como se
estivessem revestidos por uma luz púrpura, que vertia de cada poro de seus
corpos. Uma estrela, a maior de todas, aproximou-se e parou bem acima deles,
iluminando tudo e pulsando como um sol que acabou de nascer. Aos poucos, a
intensidade da luz diminuiu, até que tudo voltou ao normal. E diante de
Dorinha, onde estavam Hans e Luzia, apareceu uma mulher alta e muito bela.
―O que aconteceu? Cadê
o Hans?
A mulher mirou
ternamente a menina. Seu olhar era um misto entre a curiosidade e carência da
vendedora de fósforos e do ar polido, charmoso e educado de Hans. Assim, ela ficou
por alguns instantes, até que se aproximou de Dorinha e beijou-lhe o rosto,
apontando em seguida para cima, para onde uma luz dourada riscava o céu.
―Sempre que uma
estrela desce, é porque uma alma está subindo para o céu¹.
―Eu não to entendendo.
―Dorinha olhava para aquela luz, mas pouco compreendia o que estava
acontecendo. ―E quem é você? Cadê a Luzia? E o Hans?
―Hans está lá, cumprindo
seu destino. Está subindo para o céu. ―A mulher falou ternamente, exatamente
como Hans fazia, ao falar com Dorinha. ―E Luzia está aqui, diante de você. Sou eu, libertada pelo seu poder mágico, minha querida!
―Ah! Explica. Eu não
to entendendo!
―Dorinha! É simples.
Hans sempre se sentiu preso ao conto que ele próprio escreveu. Algo ficou pela
metade. Quem sabe um bloqueio, ou medo de não ser entendido? Ele me criou para
espantar esse medo. E ele jamais teve coragem de contar isso pra alguém. Acabou
preso aqui, e isso por conta dessa dívida que ele tinha com ele próprio. Ele
precisava que alguém de coração puro entendesse esse desejo dele, de contar a
todos o que ele próprio não conseguia. Então, foi preciso que alguém de bom
coração, e apaixonada pela magia que existe em cada um, viesse aqui e fizesse
isso por ele.
―Mas, e o que ele não
conseguia contar a ninguém? E por que eu?
A Pequena Vendedora de Fósforos - image by Google |
―Hans talvez tivesse medo de que o condenassem pela alma infantil que ele sempre teve. Ele jamais chorou, mesmo tendo vontade. Você foi a primeira a ver uma lágrima escorrer de seus olhos. Essa lágrima, a dele próprio, é que faltava ser contada. E por que você? Porque
você foi escolhida pela vida para contar a todos o quanto é belo acreditar no
impossível. Você foi a eleita para mostrar que tudo está ao alcance daqueles
que não abandonam a si próprios. Você foi tocada pela estrela ao nascer. A
mesma estrela que levou Hans para o céu que ele tanto acreditou e onde irá
encontrar com o pai dele. Um dia, iremos para lá também. Mas temos nossas
missões aqui. A minha é encantar as crianças e não deixar o sonho da magia
morrer, e a sua...
―A minha? ―Dorinha
arregalou ainda mais os olhos, fitando Luzia com muita empolgação. ―Diz, Luzia!
Qual é minha missão?
―Minha querida! A sua
missão é ser criança. Hans era exatamente como você. Ele foi uma eterna
criança. E quando me criou, muitos achavam que ele estava ficando louco por
acreditar em contos infantis. Ninguém sabia da necessidade que ele tinha em
acreditar em tudo isso que está aqui, diante de você. Era o que mantinha ele em
pé, a crença no mundo mágico. Aqui, Sacis e Fadas convivem com lobos e Pequenos
Polegares. Sereias e Astronautas andam livremente por desertos se assim as
pessoas quiserem. Tomates são do tamanho de melancias, enquanto estrelas cabem
no seu bolso. E acredite, já não são muitas as crianças que andam por aqui, fazendo
com que nós continuemos existindo.
Dorinha calou-se. Não
entendia muito bem o que Luzia falava, mas talvez nem precisasse. Ela
simplesmente acreditava na magia. Repentinamente, um grunhido de Jujubão chamou
sua atenção, e ao olhar para o lado, viu uma infinidade de personagens de todos
os contos que ela conhecia ali, sentados quietos e escutando o que Luzia
falava. Cada um deles chorava silenciosamente, mas não deixavam que isso
atrapalhasse o sorriso que carregavam em homenagem a Dorinha. E quem mais chorava e sorria era, justamente, o Gato de Cheshire.
―Sou somente um gato velho
e quase desacreditado. ―comentou o gato, soluçando. ―E sou, realmente, o gato
da Alice. Sou somente mais um que está aqui, precisando desse carinho que você
sempre deu pra nós, menina.
―Não entendo mais
nada! E o Natal? Eu não tinha estragado ele?
―Estragado? ―o gato
perguntou, soltando uma risada um tanto cafajeste. ―Minha menina, que tolice! Essa
foi minha melhor atuação! Pense em quantas pessoas nós tocamos com esse conto
que encenamos agora? Samaras, Andrés e tantos outros riram e se entristeceram
com nossa atuação! Papai Noel é meu compadre, e já deve ter partido com os 3
porquinhos para distribuir os presentes.
―Mas... mas... mas...
Dorinha não conseguiu
terminar o que começara a falar. Um brilho intenso tomou seu olhar, o que fez
com que ela sentisse muito sono. Seu cachorro deitou a seus pés, e quando a
menina se deu conta, estava em sua cama, com seu pai cantando alegremente na
porta do quarto.
―Minha querida! É Natal!
Você não vai abrir seus presentes que estão lá na árvore?
Ao levantar da cama, a
menina causou certo espanto no pai. Ela andava e, por onde pisava, deixava um
rastro brilhante, que desaparecia rapidamente. Ela desceu aos pulos para o
andar de baixo, e quando chegou onde estava a árvore de Natal, viu a mãe
acendendo um fósforo, para completar a fileira de velas que rodeava o pequeno
presépio que o pai montava a cada Natal. Da chama da vela, uma pequena estrela
brotou e faiscou pelo ambiente, mas a mãe sequer deu atenção.
Jujubão latiu e pulou,
como se tentasse pegar algo no ar, e o pai, que acabara de descer o último
degrau da escada, pensou ter visto um vagalume, que acabou pousando
justamente na estrela que estava no alto da árvore de Natal.
―Minha querida, os vagalumes ainda estão invadindo nossa casa.
Dorinha olhou para
Jujubão e sorriu. Vagalume? Claro que sim. Seria um nome muito mais fácil para
chamar aquele gato danado. Afinal, Cheshire era difícil demais para a menina pronunciar. Instantes depois, um par de olhos e um
sorriso tomaram todo o ambiente, deixando tudo escuro. Sem entender nada, o pai
e a mãe ficaram assustados quando viram alguns fósforos acesos descendo
lentamente pelo ar.
Era um agradecimento,
de Hans e Luzia, pela crença que aquelas pessoas insistiam em ter na magia que
habita em cada um de nós.
Marcio Rutes
não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.
nota:
¹ "Sempre que uma estrela desce, é porque uma alma está subindo para o
céu.". ― frase extraída do conto original (A Pequena Vendedora de Fósforos), de
Hans Christian Andersen.
Saiba mais:
Conto: A Pequena
Vendedora de Fósforos – clique aqui
Autor: Hans Christian Andersen – clique aqui
Mas, mas, mas... cancelar o natal por causa de um cão-sauro, um resmungo do gato dramático??? Ahhhhh, só poderia ser coisa do Rutes!!!! hehe Nééé Marcitoooooooooo?!
ResponderExcluirô Má, tadinha da Dorinha. Ela nem apronta tanto assim e tá colocando a culpa nela?
Mas como sempre cada história nos enche os olhos e o coração de surpresas, aqui não foi diferente.b A magia se faz e aqui se fez muito maior, apesar de todas as adversidades que o cenário abrigava.
Essa sua criação, meu querido, foi a mais bonita, mais encantadora das três. Foi a que mais me ofertou pensamentos longos e reflexivos diante de tanta coisa que me ocorre na vida.
Quantas vezes não despertamos para nossos sonhos e acreditamos piamente neles, não importa a idade que temos?
Quantas vezes não desistimos num meio de caminho por pedras pequenas demais sob nossos pés e de alguma forma, mesmo assim lá, na frente, buscamos um caminho, um continuar e, diante das poucas forças, acreditamos ainda que nossa magia não pode nunca ser em vão.
Você, meu querido, construiu de uma forma maravilhosa cada pedacinho dessa história e que, nessa época do ano, trouxe aos meus olhos um amadurecimento ímpar, uma comoção, sim, reflexo da sua, da sua sensibilidade que aqui encontrei.
Eu, nunca, NUNCAAAA vi ninguém criar dessa forma como você faz. Já te disse mil vezes e mil vezes vou repetir: sua sensibilidade, sua habilidade de deixar fluir, de misturar e assim SIMMMMM, surpreender com elementos que já existem, é fantástica.
Você é capaz de surpreender os próprios elementos, até. De surpreender as próprias personagens que já compõem uma história com novidades que V.O.C.Ê. manipula, da forma com que V.O.C.Ê. entrelaça. Sou apaixonada por esse seu dom. É um dom sim, porque é único, tem a sua marca, a sua essência. E a sua magia.
Onde já se viu? trazer contos clássicos, autores consagrados para suas historias e fazer simplesmente isso: M.A.R.A.V.I.L.H.A.R.!
Poxa, a polegarzinha, a pequena sereia e tantos outros citados aqui fizeram parte da minha infância e mesmo que citados ou transformados como a menina dos fósforos, me trouxe a magia de volta. O querer bem a vida da gente.
Hans ganhou papel de contador de histórias e para um olhar mais atento, poderia até ser a Luzia, que em sua generosidade, você nomeou. E na passagem em que a Luzia se viu, vamos dizer assim, de frente com seu "pai".
Imagine essa menina de repente, que não sabia quem era, o que fazia no mundo, saber que veio de alguém. Alguém que teve tempo para pensar nela, para esboça-la, para criá-la e trazer ao mundo de certa forma. Esse sentimento de "casa", meu amor, balança por dentro, viu?! E me balançou. Me lacrimejou os olhos, me emocionou.
Esse ar de renascimento, de possibilidades, de cuidar da criança que existe em nós, de acreditar nas mudanças, principalmente as internas, é o que mais levo dessa história, muito além de um final feliz para nossa linda vendedora de fósforos. Carregamos a Luz. Porque a luz, ninguém há de apagar, não a luz da gente, a nossa própria luz e diante de todas as dificuldades, ela sempre haverá de brilhar... só é preciso a brecha, pra tudo acontecer ;)
Parabénsssssssssss meu amorrrr.
E como disse, essa história seria a melhor história em quadrinhos, o melhor livro infantil que poderia existir. Pra mim já é.
É só questão de tornar palpável.
Te amooooooooooooooooooooooo.
E que o Natal tenha sido iluminado mesmo, para todos nós, diante desse (re)encontro com nossas origens.
Beijo na alma, com brilho de estrela que renasce no céu.
Sam.