terça-feira, 10 de dezembro de 2013

DORINHA E UM CONTO DE NATAL - parte 1

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Frio. Andar por aquelas ruas era um verdadeiro martírio, e Dorinha já se arrependera de não ter trazido luvas e cachecol. Jujubão, seu cachorro, também sentia os reflexos da neve. Mal conseguia manter as patas no chão.

Dorinha andava e olhava assustada para tudo. Jamais vira neve, pois onde nascera, o inverno mal baixava dos 10° C. Mas estava ali, e isso era o que importava para ela. Então, mãos a obra. Precisava procurar pela menina que vendia fósforos.

Um menino passou correndo por Dorinha, e para desviar-se dela, se chocou contra um amontoado de tábuas e deixou cair algo que carregava nas mãos. Apressou-se para levantar e tirar satisfações com a menina, mas desistiu assim que viu os dentes do cachorro que se mantinha vigilante ao lado dela. Jujubão rosnou bravamente, fazendo o menino intimidar-se e desaparecer pela rua lamacenta. E assim que viu o menino desaparecer pela penumbra da noite, o cachorro saiu farejando algo, até que parou e ficou olhando para Dorinha.

―O que você encontrou, Jú? ―a menina se aproximou, abaixando-se para juntar algo. ―É um pé de chinelo adulto. Lembro que o papai falou que a mocinha que vende fósforos usava os chinelos da mãe dela, e que um menino malvado roubou um deles. Será que é este? Vamos tentar a sorte. Vai lá, Jú. Cheira, fareja e vai no rastro.

O cachorro fez o que Dorinha ordenou, mas como o chão estava coberto pela neve e lama, pouco conseguiu. E assim eles andaram, andaram, até que cansaram. O frio aumentava, deixando a mostra alguns flocos de neve bailando pelo ar. Andaram mais um pouco e pensaram em parar, e foi o que fizeram assim que viram um estabelecimento comercial, parecido com um restaurante.

―Fique aqui, Jú! Não vão deixar você entrar! Vou lá dentro tentar comprar alguma coisa pra gente comer e já volto.

Dorinha entrou no estabelecimento, e deixou o cachorro para fora, porém logo retornou. Esquecera ela que aquele não era o mundo real, mas sim o mundo mágico, e ali o dinheiro dela de nada valia. Mas quando chegou novamente onde deixara o cachorro, constatou que ele havia desaparecido.

Tudo parecia mais escuro. Nas fachadas das casas, algumas luzes de lampião clareavam a decoração de Natal, e através das janelas embaçadas, podia-se ver as famílias comemorando e fartando-se com alimentos da época. Parecia tão quente dentro das casas.

Dorinha olhou pela rua, e reparou vários indigentes largados pelos cantos. Alguns dormiam, enquanto outros esmolavam ou reviravam lixeiras. Triste aquela realidade, mesmo vindo do mundo mágico dos contos de fadas.

―Que dó! ―ela murmurou, enquanto procurava pelo cachorro. ―Nunca imaginei que pudesse existir tanta coisa ruim nos contos de fadas.

Repentinamente, o badalar do relógio da igreja marcou meia-noite. Dorinha, que lembrava claramente da história contada pelo pai, desesperou. A vendedora de fósforos deveria estar prestes a morrer, e de nada teria adiantado essa visita ao mundo mágico.

―Jú, cadê você? ­―Dorinha gritava, mas o ar frio castigava a tal ponto, que ela quase não conseguia falar direito.

Andou até onde conseguiu, e encostou-se na parede de um beco. Deixou o corpo escorregar, e quando estava quase sentando na lama, escutou um latido. Era Jujubão, e o latido vinha do fundo do beco. Dorinha levantou rapidamente e correu o quanto pode, mas ao chegar onde estavam seu cachorro e a menina, desanimou.

A vendedora de fósforos estava deitada, abraçada ao cachorro. Jujubão mal se mexia, mas não pelo frio, e sim para manter a menina colada ao seu pelo, tentando mantê-la aquecida. E quando viu Dorinha se aproximando, latiu novamente e lambeu freneticamente o rosto da vendedora de fósforos.

―O que foi, Jú? Por que você está lambendo ela? Ela está...

Dorinha parou de falar e observou. Algumas estrelas, muito pequenas, brotaram do rosto da menina. Era como se fosse um pó dourado, e começaram a flutuar. Um tom amarelado brilhante verteu por todo o corpo da vendedora de fósforos, e do nada, tudo pareceu aquecer.

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―O que está acontecendo, afinal? ―Dorinha perguntou, olhando para o cachorro, que latia de maneira persistente, quase em agonia.

Dorinha, instintivamente, deitou-se sobre a menina e tentou aquecê-la. Era a única coisa que poderia fazer naquele instante. E rezou, rezou muito. Quando abriu os olhos, viu ao chão alguns palitos de fósforo queimados, e ao lado, a caixa vazia. Talvez fosse tarde demais.

Jujubão parou de latir, mas continuou ao lado das meninas, aquecendo-as. Dorinha, sentindo a ação do frio, adormeceu, e também começou a brilhar, deixando brotar de sua face o mesmo pó dourado que nascia da vendedora de fósforos. E assim, a noite passou.

No dia seguinte, um alvoroço se fez naquele beco. Um amontoado de pessoas falava sem parar, e sequer a presença da polícia fez com que eles parassem.

―Duas indigentes e um cachorro. ―um policial comentava com outro, que pelo fardamento, parecia ser seu superior. ―Não suportaram o frio, senhor. Uma pena. Bem na noite de Natal. Vou mandar o rabecão recolhe-las.



continua...


Marcio Rutes

não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.

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Este conto é uma alusão ao original "A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS" de Hans Christian Andersen. O conto original de Andersen foi publicado pela primeira vez em 1845, em dinamarquês, com o título Den Lille Pige med Svovlstikkerne, que significa "A menina com os palitos de fósforo".

Saiba mais: 



2 comentários:

  1. Marcitoooooooooooooooo!, Realmente... comovente. E também... mágico demais.

    Quem já leu este conto e que é um clássico sabe do final triste que ele carrega. Mas aqui, meu querido e embora não tenha tido um final ainda e mal posso esperar pela surpresa, diria mais, pelasssssss surpresassss, você, com sua sensibilidade aguçada e claro, também resgatando ingredientes da lembrança, mostrou o quanto podemos transformar histórias que de certa forma, nos entristecem, nos arrebatam o choro, uma tristeza guardada.

    Essa incrível capacidade e habilidade em fazer fluir seus contos, meu anjo, é de maravilhar.

    Você, de certa forma sempre inova, e principalmente e mais uma vez, juntou criações de forma espetacular. Dessa forma que só você sabe fazer.

    Nossa querida Dorinha e o Jujubão ( que saudadeeeee que eu estava hehe), encaminhando essa história de uma forma que eu sei, que ainda me trará um final bem feliz. (Olha lááá heinnnn, não vai me dar cano rsrsrs)

    Mas, pra que planejar, não é? Às vezes, nem mesmo o autor sabe o seu rumo certo. Ele vem de rompante, e emociona, e cabe no peito da gente como se fosse milimetricamente preparado, lapidado. Ei, o autor sempre sabe caber na gente de forma única.

    "Algumas estrelas, muito pequenas, brotaram do rosto da menina. "
    Essa simples frase, simples (?) construção pode não se destacar tanto em meio a tantos detalhes e fatos fantásticos dessa história, mas só por ela, já poderia ter dito que o texto foi completamente vestido de beleza. Ela traduz uma sensibilidade só sua. E essa magia de sonhar absurdos tão palpáveis.

    Eu me apaixonei por essa construção que, por mais que seja um "tijolo", certamente colaborou para a construção como um todo.

    Showwwwwwwwww! E esse certamente será um dos meus preferidos, viu Marcito?!

    Não aguennnntooooooooooo esperarrrrrrr pelos próximos capítulos, você sabe disso! Mas prometo me comportar (aparentemente) srrs. E olha que isso é apenas o começo, hein.

    Ameiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!
    Beijo na almaaa,
    Sam.

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  2. Sair à rua com neve sem luvas e cachecol é sempre temerário, meu irmão. Mesmo com um cão ao lado. Porém, como diz o ditado, quem nunca comeu mel, quando come se lambuza. E a criança saiu, mesmo assim, pobrezinha....

    Neste saboroso conto de Natal, o clima propício para o argumento já se encontra em todos seus pormenores: a época de Natal, o frio e a neve, as crianças pobres, a caixa de fósforos…

    Todavia, percebo lampejos de genialidade, além dos brilhos fugazes das chamas dos fósforos, essa passagem do que está diante para o que está atrás do espelho, basculando do mundo real para o mundo mágico, e que se torna cada vez mais um traço de estilo em teus belos escritos.

    A frase de Dorinha (Isadora?... Heliodora?… Maria Auxiliadora?…) "Nunca imaginei que pudesse existir tanta coisa ruim nos contos de fadas" só poderia ter sido urdida por um talento assim como o teu, meu querido Marcio. É uma transversal de dimensões.

    Esta breve passagem em teu conto levou-me a muitos e muitos anos atrás, quando ainda no Brasil, em uma sala de cinema, assistindo a um filme cujo nome já se perdeu na minha memória de queijo suíço. A cena, porém, ficou. Indelevelmente marcada. No filme, em uma calçada, vê-se um homem, de costas, andando. De repente, este pára e volta o rosto para a câmera. Súbito, da platéia ouvem-se exclamações de surpresa: "É o Hélio Souto!" ou então "Vejam, o Hélio Souto!…" E poucos segundos depois, o ator (que era mesmo o Hélio Souto) responde à platéia com uma imprecação muito mal-educada (que tu podes bem imaginar, do gênero "Hélio Souto é o…"), e, em seguida, continua a andar, de costas para a câmera, desaparecendo. E não apareceu mais no filme, mesmo porque nem sequer seu nome constava nos créditos do cartaz. A platéia no cinema não sabia se ria ou se continuava de queixo caído, atônita diante de um tal fato insólito, quedou-se boquiaberta, apenas.

    Ao ler a frase citada de Dorinha, fui tomado da mesma estupefação que me tomou naquela tarde perdida no tempo, saída de um filme já esquecido. Mas a imagem me ficou. Isto porque só os cronistas de gênio ( e, no caso, o diretor daquele filme não deixava também de ser um cronista) é podem trabalhar a matéria plástica da imaginação, amoldando-a, retorcendo-a e imprimindo-lhe as formas que lhes dita a genialidade de cada um. E, no quase remate da história, as mesmas luzinhas e pó de estrelas, esse mágico transfigurador que é, também, um outro traço do teu brilhante estilo, meu bom amigo.

    Uma inteligente adaptação (regional, se ouso dizer) de um clássico de Andersen que povoou (e ainda povoa) o imaginário de tantas crianças (e adultos também) desde a sua publicação até hoje. Mais uma vez, Marcio, estou a aplaudir-te com admiração, diante de mais um "clássico" teu. Bravo!!

    Meu forte abraço, querido amigo, muita saúde e inspiração.

    André

    Nota: espero que as temperaturas no teu Natal não estejam tão baixas assim como o da pobre Dorinha. E nem como o meu! :))

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