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Ela, ainda meninota,
era dona de uma pirraça gostosa, de um sacudir de ombros que era de atormentar
o pobre do pai.
―Essa “muleca” vai me
dar trabalho! ―resmungava o pai sempre que via a menina sumir pelo prado
afora.
E assim ela cresceu,
cheia de energia e vontade de conhecer gente nova. Sempre que podia, corria
para a cidadezinha e ficava por lá, lendo as revistas usadas que o velho turco
vendia no armazém. Era um deslumbramento único que florescia nos olhos quando
ela parava em alguma foto da cidade grande. Coração batia forte. Na manhã
seguinte, lá estava ela naquela cerca, conversando mesmo que distante com os
sinuelos. Eles não entendiam nada, por certo, mas ela falava mesmo assim.
Sonhava acordada enquanto falava. Quem sabe até vivesse aquele sonho ali mesmo,
fazendo voar pelos campos cada pedacinho daquelas fotos da revista que ela trazia na memória.
Ela nunca teve medo de
sonhar, muito menos de esconder ou de se render ao destino. Seu mundo, aquele
que existia dentro dela, era maior do que aquele prado habitado pelo gado e
pelos pássaros brancos. Ela queria, e iria, conhecer o que existia além das
planícies. Queria, ao menos uma vez na vida, fazer parte de uma daquelas
fotografias que ela sempre via lá no armazém do velho turco.
O tempo passou e ela
cresceu. Já não cabia mais naquele lugar.
―Tá. Eu te mando pra
cidade, pra você estudar. ―o pai concordava, mesmo a contragosto. ―Mas eu sei, essa
menina arteira vai correr o mundo, e a saudade da poeira vermelha vai trazer
ela de volta.
Os dias esticaram para
ela. A ansiedade tomava seus instantes e sequer os sinuelos ela voltou a
visitar. Comprou cada revista velha que o turco vendia, e praticamente decorou
as palavras. Até que chegou o dia da partida. Mas mal sabia ela que o apito do
trem seria o som que a acompanharia por quase 4 anos de seus futuros sonhos.
Demorou um pouco, mas
lá estava ela, cercada pelos altos edifícios e por aquele corre-corre das
pessoas apressadas. De nada adiantava ela falar “bom dia”, pois a única coisa
que ela recebia em troca era um olhar desconfiado. Durante a noite não tinha
pio de coruja, e no lugar das estrelas o que rebatia em sua janela era a luz
daquela lâmpada irritante que ficava no poste da rua. Até o cheiro da cidade
era outro. Um cheiro enjoado, de óleo queimado e fumaça. Como aquelas pessoas
conseguiam passar o tempo todo com aquele cheiro no nariz?
O olhar arteiro da
menina foi se perdendo pelo gris daquelas paredes tristes que rodeavam sua
face. O balançar dos ombros agora era apenas um jeito de desviar desse ou
daquele que quase trombava com ela naquela pressa urbana. E o que um dia fora
um sonho recheado de magia, hoje é somente uma semente de ilusão que fez brotar
uma saudade sem igual.
No quarto em que ela
dormia, existia um cantinho onde ela cultivava um pedaço de seu passado. Lá,
nesse canto, estavam as revistas que ela comprara do velho turco, aquelas
mesmas que estampavam as fotos que despertaram tantos sonhos. Uma melancolia
sem igual brotava dela a cada virar de páginas. O cheiro da revista velha fazia
ela passear no tempo, e voltar para aquela cerca onde tanto tempo passou mirando o requebrar dos sinuelos. Hoje ela lembra que
sequer foi lá para se despedir do gado e do mato molhado.
Em certa feita, o
velho pai foi para a cidade. Queria ver a filha, e também tudo aquilo que ela
contava nas cartas que enviava. Parecia tudo tão bonito no papel, descrito por
ela quase em poesia, que ele chegava a pensar que a menina jamais voltaria para suas
raízes. E assim ele se preparou para ouvi-la dizer que por lá ficaria.
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O pai não se conformou
ao vê-la magra e pálida. O que haviam feito com sua menina arteira? Onde estava
tudo aquilo que ela escrevia nas cartas? Todo aquele glamour da cidade grande?
Seria tua mentira? O que ele via, de verdade, era uma tristeza sem tamanho
tomando os olhos de sua filha.
Com um único toque das
mãos no rosto do pai, ela fez um pedido velado, e que sequer precisou ser
entendido para ser acatado. Voltaram no primeiro trem da manhã seguinte. E no
cumprimento de um presságio, as boas-vindas foram dadas justamente por uma
nuvem de poeira vermelha.
Os ombros da menina
retomaram aos poucos aquele requebrar. O pai pensa que ela faz isso de tanto
olhar os sinuelos, mas não liga mais para tal coisa. Ela voltou para a cidade logo
depois disso. Precisava terminar os estudos, mas retornou rapidinho para a
cidade pequena. Virou professora, e tem uma pequena escola lá ao lado do prado,
pertinho dos sinuelos.
Por vezes, ela repara
alguma meninota olhando revistas antigas e suspirando sobre aquelas fotos. Mas
ela não fala nada. Sabe que em alguns momentos precisamos quase perder para
reparar o valor que pequenas coisas podem ter.
Ficam lá, ela e as
crianças, entretidos na lousa e nos cadernos. Até que o apito do trem avisa que é
quase hora do almoço. A correria é tanta, que ela mal consegue se despedir de
todas as crianças. E o trem se vai, levando gente embora para correr atrás de
sonhos novos ou já um tanto batidos.
Mas é preciso voltar, sem se revoltar com as voltas e andanças que toda vida dá. Só nos encontramos ou nos perdemos de vez em algo quando esse algo é 100% vivenciado, ainda que dolorido e pesado em ombros de menina, seja arteira, seja moleca, seja "mulherca".
ResponderExcluirCada história é ditada com nossos pontos de vista próprios, com nossos sentimentos, como nossa maneira de ser e de estar no mundo. É ainda uma lembrança bem guardada, às vezes aguada em redemoinhos que vertem essas manhãs e deixam a tez amanhecida de branco, branco de papel que ainda não foi escrito... mas sabe da história que contará... pra quem parar pra ler.
Toda ida é uma vinda desesperada de se sentir de voltar pro lar. Partidas ainda que seja, voltas sem idas, são cárceres privados, no fundo dos olhos e coração.
Mas o bonito e válido disso tudo é que toda história tem um cheiro, toda saudade tem um meio de nunca ser esquecida, tão pouco descolorida das capas de revistas... vistas da nossa vida. Reviradas em lembranças (e)ternas e contadas sempre de um jeito pueril, com outros olhos, para outras palavras.
Lindo, lindo e Djavan, um arraso!
AMO
Beijo na alma,
Sam.