terça-feira, 10 de julho de 2012

CHICO CONTENTE – PESCARIA MATUTA

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Piracicaba, início da primavera de 1931.

A pescaria de beira de rio era uma das distrações prediletas dos habitantes de Piracicaba lá do início do século passado. Alguns chegavam a viajar dias e noites no lombo de uma mula com o único intuito de chegar a algum ponto ainda inexplorado por outros pescadores ou, então, por acharem que tal lugar era “milagroso” e a pescaria seria mais farta.

Como é sabido, as pescarias sempre foram cercadas de histórias sem pé nem cabeça e, também, de alguma mística. Não existe pescador que não invente alguma “engenharia” para atrair o peixe, como novas iscas ou equipamentos que sequer ele próprio sabe manejar direito, ou ainda o aprimoramento de técnicas antigas e que, se melhoradas, podem surtir bom efeito. Existem também aqueles que são supersticiosos e levam ao extremo algumas manias. Se alguma artimanha surtiu resultado em algum momento, repetem aquilo em todas as pescarias futuras, mesmo que nunca mais consigam bons resultados. Rezas, mandingas, crença na sorte ou azar, fazes da lua, cuspir no rio, pescar com um pé calçado e outro descalço, jogar cachaça no rio, enfim, tudo faz parte da crendice popular e pode enfeitar uma pescaria.

E foi justamente a cachaça, ou o consumo excessivo dela, a preocupação daquela primeira pescaria de primavera.

Padre Mirto reparara que o abuso no consumo de pinga era sempre um problema com as pescarias que Chico Contente, Zé das Porca, Anésio, cabo Bento e, claro, ele próprio realizavam. Pensando nisso, passou o inverno inteiro tentando convencer àqueles pescadores a não beber ou, sequer, levar a dita bebida para a beira do pesqueiro. No entanto, sempre que ele vinha com um bom argumento para frear aos amigos, eles retornavam com uma dezena de outros para convencer ao padre do contrário. Ele, esperto que era, usou da melhor arma que dispunha. Jurou excomungar ao dono do armazém caso ele vendesse ou fornecesse a bebida para aquela pescaria.

—Arre, padre Mirto. Pescaria sem pinga? —Anésio, o dono do armazém, suplicava. —Inté u sinhô vai lumbrigá tudinho. Tem piedade!

—Anésio, meu filho. Já morreu gente por bebedeira nas barrancas do rio. E vocês bebem demais. Alguém tem que por um fim nesses abusos. E eu to apelando pra todos os santos, já que apelar pra consciência de vocês não tem jeito!

—Mais sem pinga anem u São Sardinha vai mi acumpanhá. U disgramado só mi atendi si eu infiá ele di cabeça na pinga cum gaviróva. —o dono do armazém insistia, choramingando.

—Ah! mas que inferno! Isso é coisa que se faça com o Santo? Vocês são uns inconsequentes. Vão arder no inferno se continuarem com essas maluquices. E que santo é esse, afinal? Não conheço nenhum São Sardinha.

—É u Santo Antonho. Mais nu meio dus pescadô, nóis chama ele pelo apilido qui u Chico Contente deu quano pegô aquela carpa di dois rabo. Diz ele qui u póprio santo soprô nas oreia dele esse apilido i dissi pra invocá quano quisesse pescá pexe grande. I tem mais, padre. Num vem di lorota, qui já vi u sinhô fazê das sua tumém. Si num tem vivente oiando, u sinhô, antis di ponhá a minhoca nu anzor, isfrega ela no...

—Ahhhhhhhhhh! Calado. Infâmia. Te excomungo agora mesmo. E essa história do Chico é lorota. Onde já se viu o Santo Antonio vir conversar justo com ele na pescaria? E peixe de dois rabos? Só podia ser coisa do Chico. Pior é que vocês acreditam nesse traste.

Enquanto o padre e o dono do armazém conversavam, os outros integrantes do grupo chegaram, faltando apenas o Chico Contente. Quinze minutos depois, algumas mulas levantaram poeira numa estradinha, e se aproximaram rapidamente. Todos olharam e notaram que era o Chico, que prometera tanto o transporte quanto os equipamentos para a pescaria.

—Árre! Já num era sem tempo! —Zé das Porca olhava e tentava contar o número de mulas que o amigo conduzia. —Mais, padre Mirto! A módiquê u Chico tá vino cum tanta mula? Pelas minha conta, tem duas a mais. Será qui u peste acunvidô mais gente?

Chico parou diante do armazém e, antes mesmo dele pisar o chão, o padre já indagava sobre as mulas a mais.

—Oh! Chico! Dá pra explicar essas mulas a mais? E por que tanto embornal nelas, vivente de Deus?

—Bãos dia pru sinhô tumém, seu padre! U sinhô passa bão?

—Não me enrola, que vindo de você, só pode estar aprontando! —o padre coçou o queixo, antevendo algo que não gostou.

—Puis óie, seu padre. Nessas di cá, as mula maior di grande, vai nóis amuntado. Nessa di cá, nus imborná, tem uns garrafão di pinga, e...

—Epa! Pode parar! —o padre cortou bruscamente o que o Chico falava, nitidamente repreendendo o matuto. —Não falei que nessa pescaria não teria pinga? Tá querendo ser excomungado?

—Óie, padre! Matute cumigo. —Chico olhou mansamente para o padre, mas daquele jeito malandro que todos conheciam bem. —Nóis vai nas barranca du Biguá, i tudo nóis sabemo qui lá tem cascaver, urutú-cruzero, corar i surucucú. Vai qui nóis dá di frente cum bicho armado?

Cobra Coral - image by Google
—Você tá de truta comigo. Que lá tem cobra, eu sei. Mas o que isso tem com relação a toda essa pinga que você tá carregando na mula?

—Mais qui tonto é um sinhô? Cum tudo u respeito, padre Mirto. Si a cobra pica, daonde qui tá um remédio pra isfregação? Nem implastro de foia gorda tem naquele rio! I adimais, si a danada pica um di nóis, tem qui cortá u efeito du veneno, i um gole di pinga pódi ajudá. I a dor da murdida? A pinga pódi amainá as dor si for tomado uns gole. I si dé febre no vivente? A pinga vai ajudá nus efeito di quentura. E além disso...

—Tá! Tá bom! Você me convenceu. —padre Mirto entregou os pontos, se dando por vencido. —Mas e a outra mula? Por que todos esses embornais pendurados nela? Não vai me dizer que é mais pinga?

—Nada, padre. —Chico olhou para os outros pescadores e cuspiu do lado, quase acertando o pé de seu Anésio, que estava próximo. —Nessis imborná tá as cobra. Vai que nóis num acha ninhuma pra módi mordê nóis.


Marcio JR


6 comentários:

  1. Adoro causos e os teus, muito legais e divertidos. Tu criatividade é grande!!Vale ler e fica a dica para os próximos que citaste...abração, quase saindo em férias!chica

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  2. Fantastico meu amigo,não sabia desta série deste matuto,vou sim conhece-las,pois como sabe sou lá do oco do pau das Gerais e nóis adora um causo.Lembro que pequeno nas pescarias de lá,tinha uma crença que na primeira isca a ser colocada no anzol,deveria partir a minhoca com os dentes para dar mais sorte,kkk.
    Gostei amigo.
    Um terno abraço de paz e luz e vamos juntos.
    Boa semana para todos nós com alegria.

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  3. Amiga como você eu nunca vou esquecer porque esse tipo de amiga
    o lugar dela é no coração e tudo que está no coração para mim é eterno, inesquecível!

    Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos,
    não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos.
    Miguel Unamuno;
    Tive que ficar ausente por 3 Dias recuperando
    das fortes dores que ando sentindo.
    Agora aos poucos tentarei visitar todas minhas lindas amizades.
    Ficarei feliz e tremendamente agradecida se puder adquirir um livro meu
    talves nunca saberá o quanto você estará me ajudando.
    Mais certamente verá o quanto ,Deus vai te abençoar.
    Em breve vou postar a data da Bienal no meu blog será uma alegria imensa receber você
    em SP.
    Creia a vida é breve demais para deixarmos para amanhã aquilo ,
    que imaginamos não poder fazer hoje.
    Obrigada de todo coração por
    me amar da forma que sou,
    Beijos no coração e na sua alma,Evanir.

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  4. Piracicaba. Terra do meu finado amigo Daniel Monge, poeta bissexto. Bela cidade, conheci bem. Além de uma pizza deliciosa chamada Portuguesa, é a terra do famoso Salto (que os naturais pronunciam "Sáirrto") e do tradicional restaurante defronte a ele, onde eu degustei um dos melhores dourados na brasa de minha vida. Piracicaba, palco dessa saborosa crônica com que tu nos presenteias aqui, meu amigo Marcio, trouxe-me saudades...

    Pescador não fica de treta, fica de "truta!" *rs ê jibóia! meu irmão, eu nunca pesquei um só peixe em toda minha vida, me acreditas? nem uma só piaba. Uma tilápia que fosse. Nada. Mas o que já ouvi de história de pescador… e todas sem o menor exagêro, é claro. De peixe de dois rabos, tainha de metro e meio, pescador que não sabia nadar e foi empurrado até a praia por um bôto que ele conhecia, peixe que tinha um relógio Rolex no ventre, tubarão-martelo pescado num açude, e até mesmo de sereia que conseguiu escapar das redes de uma tarrafa eu ouvi contar. Barbaridade, sô!

    Mas essa tua crônica, meu irmão (não é prá me gabar *rs) me fez dar boas risadas com as expressões e com as cenas que me vieram às idéias. Retratastes bem os tipos, a linguagem e o desfecho, típicos do pescador capiau que, cá entre nós, pode ser até iletrado, mas burro não é. Posso afirmar. E posso te dizer mais ainda: eu te juro que sim. Juro. Por São Sardinha!

    Como sempre, meu querido Márcio, é um prazer vir aqui, é certo encontrar e me deliciar com uma prosa muito agradável, saborosa. Parabéns pelo texto, meu irmão, e continua inspirado!

    Um forte abraço,

    André

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  5. hahahaahhahahahh... muito bom, MArcio! Fiquei aqui, matutando com o matuto! Gostei demais... Minha avó, hoje já bem velhinha, foi uma pescadora e tanto(no meio de tantos "homi", lá estava ela). Ela era uma mulher danada de trabalhadeira. A vida não foi fácil pra ela, mas a danada deu um jeito de conseguir vencer. Lembro quando eu era criança, passava as férias no vilarejo onde ela morava, que ficava na beira do Rio das Mortes(MT) e ficava escutando as conversas de pescadores que ela e outros contavam na roda. Eu, moleca que era, acreditava em tudo o que eles diziam!rss Bons tempos! Deu saudade.

    Sobre seu comentário sobre o tema da blogagem coletiva, Espiritualidade, só posso dizer que achei o máximo! Vc conseguiu descrever de uma forma fantástica muito do que eu sinto tbem. O último parágrafo foi uma coisa bela... juro que deu até um nó na garganta aqui. Sou assim mesmo, meio bobona, sensível por demais, às vezes! rs

    bjks JoicySorciere => CLIQUE => Blog Umas e outras...

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  6. Tá, mas quero saber o seguinte...
    Afinal, as tais minhocas, eram esfregadas aonde?! rsss

    Adorei, Marcinho!!! Bjitos

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