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Piracicaba, início da primavera de 1931.
A pescaria de beira de rio era uma das distrações prediletas dos habitantes de Piracicaba lá do início do século passado. Alguns chegavam a viajar dias e noites no lombo de uma mula com o único intuito de chegar a algum ponto ainda inexplorado por outros pescadores ou, então, por acharem que tal lugar era “milagroso” e a pescaria seria mais farta.
Como é sabido, as pescarias sempre foram cercadas de histórias sem pé nem cabeça e, também, de alguma mística. Não existe pescador que não invente alguma “engenharia” para atrair o peixe, como novas iscas ou equipamentos que sequer ele próprio sabe manejar direito, ou ainda o aprimoramento de técnicas antigas e que, se melhoradas, podem surtir bom efeito. Existem também aqueles que são supersticiosos e levam ao extremo algumas manias. Se alguma artimanha surtiu resultado em algum momento, repetem aquilo em todas as pescarias futuras, mesmo que nunca mais consigam bons resultados. Rezas, mandingas, crença na sorte ou azar, fazes da lua, cuspir no rio, pescar com um pé calçado e outro descalço, jogar cachaça no rio, enfim, tudo faz parte da crendice popular e pode enfeitar uma pescaria.
E foi justamente a cachaça, ou o consumo excessivo dela, a preocupação daquela primeira pescaria de primavera.
Padre Mirto reparara que o abuso no consumo de pinga era sempre um problema com as pescarias que Chico Contente, Zé das Porca, Anésio, cabo Bento e, claro, ele próprio realizavam. Pensando nisso, passou o inverno inteiro tentando convencer àqueles pescadores a não beber ou, sequer, levar a dita bebida para a beira do pesqueiro. No entanto, sempre que ele vinha com um bom argumento para frear aos amigos, eles retornavam com uma dezena de outros para convencer ao padre do contrário. Ele, esperto que era, usou da melhor arma que dispunha. Jurou excomungar ao dono do armazém caso ele vendesse ou fornecesse a bebida para aquela pescaria.
—Arre, padre Mirto. Pescaria sem pinga? —Anésio, o dono do armazém, suplicava. —Inté u sinhô vai lumbrigá tudinho. Tem piedade!
—Anésio, meu filho. Já morreu gente por bebedeira nas barrancas do rio. E vocês bebem demais. Alguém tem que por um fim nesses abusos. E eu to apelando pra todos os santos, já que apelar pra consciência de vocês não tem jeito!
—Mais sem pinga anem u São Sardinha vai mi acumpanhá. U disgramado só mi atendi si eu infiá ele di cabeça na pinga cum gaviróva. —o dono do armazém insistia, choramingando.
—Ah! mas que inferno! Isso é coisa que se faça com o Santo? Vocês são uns inconsequentes. Vão arder no inferno se continuarem com essas maluquices. E que santo é esse, afinal? Não conheço nenhum São Sardinha.
—É u Santo Antonho. Mais nu meio dus pescadô, nóis chama ele pelo apilido qui u Chico Contente deu quano pegô aquela carpa di dois rabo. Diz ele qui u póprio santo soprô nas oreia dele esse apilido i dissi pra invocá quano quisesse pescá pexe grande. I tem mais, padre. Num vem di lorota, qui já vi u sinhô fazê das sua tumém. Si num tem vivente oiando, u sinhô, antis di ponhá a minhoca nu anzor, isfrega ela no...
—Ahhhhhhhhhh! Calado. Infâmia. Te excomungo agora mesmo. E essa história do Chico é lorota. Onde já se viu o Santo Antonio vir conversar justo com ele na pescaria? E peixe de dois rabos? Só podia ser coisa do Chico. Pior é que vocês acreditam nesse traste.
Enquanto o padre e o dono do armazém conversavam, os outros integrantes do grupo chegaram, faltando apenas o Chico Contente. Quinze minutos depois, algumas mulas levantaram poeira numa estradinha, e se aproximaram rapidamente. Todos olharam e notaram que era o Chico, que prometera tanto o transporte quanto os equipamentos para a pescaria.
—Árre! Já num era sem tempo! —Zé das Porca olhava e tentava contar o número de mulas que o amigo conduzia. —Mais, padre Mirto! A módiquê u Chico tá vino cum tanta mula? Pelas minha conta, tem duas a mais. Será qui u peste acunvidô mais gente?
Chico parou diante do armazém e, antes mesmo dele pisar o chão, o padre já indagava sobre as mulas a mais.
—Oh! Chico! Dá pra explicar essas mulas a mais? E por que tanto embornal nelas, vivente de Deus?
—Bãos dia pru sinhô tumém, seu padre! U sinhô passa bão?
—Não me enrola, que vindo de você, só pode estar aprontando! —o padre coçou o queixo, antevendo algo que não gostou.
—Puis óie, seu padre. Nessas di cá, as mula maior di grande, vai nóis amuntado. Nessa di cá, nus imborná, tem uns garrafão di pinga, e...
—Epa! Pode parar! —o padre cortou bruscamente o que o Chico falava, nitidamente repreendendo o matuto. —Não falei que nessa pescaria não teria pinga? Tá querendo ser excomungado?
—Óie, padre! Matute cumigo. —Chico olhou mansamente para o padre, mas daquele jeito malandro que todos conheciam bem. —Nóis vai nas barranca du Biguá, i tudo nóis sabemo qui lá tem cascaver, urutú-cruzero, corar i surucucú. Vai qui nóis dá di frente cum bicho armado?
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—Você tá de truta comigo. Que lá tem cobra, eu sei. Mas o que isso tem com relação a toda essa pinga que você tá carregando na mula?
—Mais qui tonto é um sinhô? Cum tudo u respeito, padre Mirto. Si a cobra pica, daonde qui tá um remédio pra isfregação? Nem implastro de foia gorda tem naquele rio! I adimais, si a danada pica um di nóis, tem qui cortá u efeito du veneno, i um gole di pinga pódi ajudá. I a dor da murdida? A pinga pódi amainá as dor si for tomado uns gole. I si dé febre no vivente? A pinga vai ajudá nus efeito di quentura. E além disso...
—Tá! Tá bom! Você me convenceu. —padre Mirto entregou os pontos, se dando por vencido. —Mas e a outra mula? Por que todos esses embornais pendurados nela? Não vai me dizer que é mais pinga?
—Nada, padre. —Chico olhou para os outros pescadores e cuspiu do lado, quase acertando o pé de seu Anésio, que estava próximo. —Nessis imborná tá as cobra. Vai que nóis num acha ninhuma pra módi mordê nóis.