(1) Serra da Mantiqueira (veja crédito da imagem ao final do conto) |
Para alguns ele era
Antonho Antunes. Para outros, apenas Antunes. O fato é que quando ele chegou naquela casa, foi a maior briga pelo
nome. Cogitaram tudo, indo do clássico ao absurdo. Chegaram a matutar o nome de
Sapé Queimado para o coitado. Até de
Missanga ele foi chamado. Seu Givanildo queria que ele fosse Antunes, enquanto
a esposa batia o pé e contrariava. Será Antonho. Acabou ficando Antonho
Antunes.
Confesso que tenho
mais apreço por Antunes, então assim chamarei esse pobre nessa curta história.
Antunes não teve descanso
desde que nasceu. Ele não era daquele lugar. Fora achado num campo por seu
Givanildo, que sem o menor respeito (coisa que nunca teve) tratou de leva-lo
embora. Cresceu rápido, mas completamente raquítico, pois a alimentação era
mínima e totalmente inadequada. Assim que pode, já trabalhava duro, e apanhava
muito quando as coisas não iam bem para os escambos que seu Givanildo
praticava.
Antunes conheceu soiteira.
O couro vivia vergado pelas lambadas ardidas que tomava. Mas não reclamava.
Apenas trabalhava de cabeça baixa e com o estômago roncando. Dormia, na maioria
das vezes, ao relento. Preferia assim, pois detestava ficar entre quatro
paredes. Gostava do ar mais fresco da noitinha, de ver a luz da lua ou de
sentir a chuva.
Das tantas e tantas
noites que varou em claro, tantas também foram as vezes em que o olhar se
perdeu pelas montanhas vizinhas. Lá sim deveria ter algum cantinho para viver
em liberdade. O mundo parecia ser tão diferente naquele lugar tão ao alcance
dos olhos, mas tão distante de um corpo aprisionado. Corpo sim, alma jamais.
Certa feita, depois de
uma chuva torrencial, Antunes voltava do roçado e tropeçou, rolando por uma
ribanceira. Seu Givanildo desceu até ele e, de posse de um cajado de madeira,
bateu tanto no pobre que sua cabeça abriu, quase arrancando uma orelha. Antunes
não esboçou a mínima reação. Apenas ficou deitado até que aquele homem cansasse
de bater. Fingiu-se de morto.
O tempo passou.
Antunes cresceu bastante, mas continuava um saco de ossos. Jamais teve
esperanças de conseguir se libertar da opressão daquele homem mesquinho e
desumano que o levará ainda pequeno, mas também jamais deixou de sonhar com as
montanhas. Noite após noite, olhava para lá e se deixava levar pelo ar frio
que tanto fazia bem a ele. Até que o sol quente da manhã lembrava que ele tinha um roçado
inteiro para cuidar e, claro, algumas chibatadas para levar.
Se alguém por aquelas
bandas soubesse contar, certamente teria perdido as contas de quantas vezes
Antunes foi surrado até ficar entrevado no chão seco. Antunes aprendeu
apanhando. Fingia um desmaio, e seu Givanildo já comentava: “Tem que trabalhar nu
circo, seu imprestáver. Parece inté que tá morto. Faiz inguarzinho.”. Depois,
ele levantava meio capengando e tomava o rumo de casa.
Teve uma vez em que
Antunes cansou de apanhar. Revoltou-se. Atacou seu Givanildo como pode.
Cabeçadas, dentadas e chutes não faltaram. Seu Givanildo, assustado, levantou a
soiteira, mas não adiantou. Antunes estava carregado de raiva. Forçou-o a
caminhar para trás até que, inesperadamente, uma urutú cruzeiro deu um bote
certeiro. Seu Givanildo estremeceu. Matou a cobra a pauladas e partiu ensandecido
para cima de Antunes, mas o máximo que conseguiu foi agarrar-se a ele.
Com algum custo, os
dois chegaram até a casa de seu Givanildo. Chamaram o médico da região, mas não
teve jeito. O homem morreu dois dias depois. Mas não sem antes deixar uma ordem para o
filho mais velho: “Mate esse desgramado do Antunes.”.
Gaité, o filho de seu
Givanildo, não teve coragem de cumprir aquela ordem. Mas nem por isso agiu com
algum caráter. Negociou Antunes para um dos produtores de carvão da área, daqueles que vivem explorando trabalho escravo. E
Antunes logo percebeu que tudo continuaria igual ao que sempre fora, ou até pior.
Então, de que adiantara ele ter se rebelado?
Mas algo inesperado
aconteceu. Já no primeiro dia de lida, perto de um arroio, o carvoeiro ficou
descontente com o serviço de Antunes. Desta vez a surra foi com uma correia.
Antunes estava
enfraquecido, pois não se alimentava já fazia vários dias. Escorregou e caiu,
ficando com a cabeça completamente dentro da água, o que fez com que o carvoeiro
parasse e observasse.
―Matei o traste. Mas
num prestava pra muita coisa mesmo. ―comentou o carvoeiro. ―E se não morreu,
num guenta muito. Que fique aí, pra alimentar argum animar ou os urubú, que
devem estar famintos.
O carvoeiro virou as
costas e foi-se embora. Quando chegou ao local onde ficavam os fornos, ordenou
que um de seus empregados fosse até o local e recolhesse a lenha que Antunes
puxava antes do ocorrido. O empregado foi, mas voltou com uma notícia não muito
boa para o patrão.
―Sinhô! Num achei o
tar lá no arroio. Será que o peste inviveu di novo e deu no pinote?
Cavalo idoso - by Google |
E assim, Antunes conseguiu
sua tão sonhada liberdade, fingindo algo que as surras ensinaram. Para o
carvoeiro, ele tinha morrido, e se o tal ficasse por lá mais alguns minutos,
isso realmente teria acontecido. Mas bastou que ele virasse as costas para que
Antunes levantasse rapidamente e ganhasse o rumo das montanhas.
Marcio Rutes
não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.
Notas
(¹): A imagem da Serra da Mantiqueira mostrada logo no começo deste conto foi retirada da web, mais precisamente do site do Instituto Pinho Bravo.
Visite o site do Instituto:
Link da imagem:
(²): Morro da Imbuia é um nome fictício, e não faz parte do complexo da Serra da Mantiqueira.
O conto não é ambientado na Serra da Mantiqueira. A utilização da imagem deu-se, unicamente, pela extrema beleza que a Serra da Mantiqueira revela, casando perfeitamente com a liberdade tão sonhada pelo personagem principal.
Sabe qual a sensação que fica depois de ler esse conto, amor? de uma tristeza que açoita muito mais que chibatada, moral e física.
ResponderExcluirUma agonia de quem pede ajuda com olhos melindrosos e afoitos, por esperanças. E por saber que tudo isso é real, que se vê por aí, em cabrestos e celas ilusoriamente atracadas em mãos que se vangloriam sem pudor, mas que permanecem sujas de crueldade.
Se eu pego um 'cabra' desse eu faço lascar o couro dele sem dó, também.
Outra coisa que me tira do sério é esses infernos de rodeio, e a poorra da Romaria que tem por aí (como tem aqui). Arrghhhhhhhh!
Mas, trazendo o seu conto ( triste por sinal, apesar do final feliz e merecido, mas demorado pra esse animal) para a realidade... estamos cansados de ver todo e qualquer tipo de mau trato com animais. Seja na judiação, no trabalho e principalmente na indiferença que se alastra por aí.
Éguas prenhas puxando carroças e levando bordoadas, animais mal alimentados, sem um abrigo do frio e chuva, animais esquecidos e amarrados em postes, em campos, terrenos baldios.
Animais são abatidos (porque é mais fácil e mais barato pra qualquer vigilância que se diz de defesa animal) pra se livrar do problema. E ainda assim, se dizem preservar a vida. E se preservam, não a mantém com sua dignidade e tampouco com o mínimo de ética, de BIOÉTICA. E não estou falando de BIOÉTICA DESUMANA, mas animal mesmo.
São muletas e fantoches, sem a menor chance de compaixão, dos humanos. Humanos?
Ser Humano? Pra começar, o erro já começa na palavra.E chego a cogitar a hipótese de que ser 'desumano', ainda que criticada essa denominação acima, carrega ainda alguma delicadeza. E SER? nem chegou a ser e se glorifica numa condição que não é.
O então 'não SER Humano' é o Ser mais filho da puta que existe!
Sua ganância cega teu próprio olho de tanta falsa riqueza que, nem tropeçando milhões de vezes na própria ignorância é capaz de tirar o seu próprio cabresto egocêntrico e podre de se considerar o acima de tudo e de todos. Se é que pode considerar alguma coisa.
Mediocridade também vem de berço e não precisa ser de ouro.
Atropelam qualquer principio de ética e dignidade animal e quando e SEMPRE quando a cumpre, é por benefício, interesse próprio. Por lucros.
Sim, há exceções. mas até que a minoria prevaleça, muita ferida já foi aberta e secou de sangrar. Não por hemostasia, não. Mas por hemorragia hipócrita de uma sociedade que quer 'comandar rebanhos' mas que está longe de saber controlar seus próprios arreios. E se diz com a boca cheia de merda: a favor da boa convivência. Mas, qual? se com essa vivência desastrosa, ainda só sabe engatinhar?
Amei o final, meu amor. Mas achei seu conto muito muito triste. Senti uma revolta das grandes dentro de mim. E sabe, grandes escritores/contista são assim: reviram a história dentro da gente.
Te amooooooooooo
E ah, os nossos cavalos serão felizes, muito felizes. Na verdade, quem estiver conosco! <3
Sam,
Samara Bassi.