sábado, 11 de janeiro de 2014

A DÚVIDA EM PESSOA

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Ensaio sobre a palavra criada 
e a palavra roubada.

Segunda parte.










A PALAVRA ADULTA:
MANIQUEU INFLUENCIANDO ORFEU

Pessoa em pessoa. E outras pessoas de Pessoa, entre tantas pessoas que pelo local transitavam, fitavam Pessoa. E Pessoa vociferava:

“...Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...”.
(1)

Rebati. Os mares já foram navegados. E você sequer conta disso deu. Camões te antecedeu, me prometeu. Sim, ele disse “Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, tanta necessidade aborrecida!”. Mas Camões morreu.


Pessoa não tinha troco para cem.


Desabonado, uma pessoa de Pessoa, um tanto calada, ergue o lápis, riqueza de sua pobreza, e profere:

“...Tenho alegria e pena porque perco o que sonho.
E posso estar na realidade onde está o que sonho...”.
(2)

Te cala novamente, Caeiro. E ante ao levante, na composição arfante, aquela mesma tão difamatória quanto infante, você sente o assobio da mandrágora te lembrando que o gosto da pungência adolescente chegou. Criou asas. Tua cria cresceu.

De letra reticente, hoje berra frente a comporta quase como um indigente. Transformado, modificado, adulterado. Tua cria, que um dia fora quase bandeirante, hoje é errante, prostituta pelos Recantos tantos que existem no abismo terminal dessa terra sem fim. Desapropriada de qualquer papel, mas prisioneira numa tela de cristal.

Estranhamente, a mente mente, e se diz inocente. Indolente, pois sim. Verdadeiro assalto esferográfico daquilo que um dia foi concebido às duras penas de um tinteiro.


Pessoa não sabia, mas o que nos diferencia de uma pedra é, meramente, a densidade.


De toalha bordada em punho, Pessoa argumenta ainda sobre os mares. Arquiteta, já quase insolente, sobre o arbítrio que a palavra tem sobre nós. Atroz. Bate o punho na mesa, e sem sutileza, sem sequer lembrar de sua quase realeza, entorna ao chão a cachaça que fora servida em borbotão. Mas desvia-se, rápido e amedrontado, do bisturi que à mesa foi fincado. Ricardo reclama, e já vomita palavras:

“...De rosas, inda que de falsas teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido.”.
(3)

Com a cachaça derramada, pessoas de Pessoa brigam com Pessoa. E Pessoa pouco entende.

Remenda a emenda numa única palavra. Rumina rouco, quase postergando o sarapatel. Preferiu pão seco, uvas e queijo de leite azedo. Era o que tinha. Mas se não gostasse, servia farinha.


Pessoa então entendeu. Poderíamos ser pedra caso não fôssemos tão densos.


Ao crescer tomou o rumo, ganhou o mundo, reduto maroto e roto, nos escárnios dos becos de línguas endiabradas. A palavra descobriu o gosto salgado que existe entre algumas pernas. Ervas finas não tiram o cheiro do lume apodrecido das cópias mal criadas.

Pessoa rogou, perguntou por que Deus deixava que suas pessoas o atormentassem daquele jeito. Foi quando, num traquejo educado, num verso enjeitado e arquitetado nas teias de um engenheiro, Álvaro disse-lhe ao ouvido:

“...Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?...”.
(4)


Pessoa pensou. Precisamos parir pedras.


Pedras? Tinta cria letra, mas de suas tetas brotam pedras?
Antes fosse, pois mais dura a palavra seria. E não essa vadia, que se entrega na folia a qualquer Arlequim. E vai assim, embora, vai sem mim.

Mas vai por que quer?
Ou vai aliciada? Palavra falada? Ou mal amada?
Palavra descuidada, usada e profanada em sua virgindade.
Palavra violada. Palavra minha, tua, de tantos.
Maculada em sua certidão. Copiada.

Ricardo Reis já balança, mas não cansa. Pula para o balcão e tal qual criança, faz lambança:

“...Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente...”.
(5)


Pessoa lamentou. Sem saber, lançou seus versos ao mar após seu barco já aportado.


Caeiro compadeceu-se de Pessoa. Foi em socorro:

“...E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...”.
(6)

Mas de pouco adiantou, pois logo Álvaro decretou:

“...Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever...”.
(7)


Pessoa cogitou: criar é ato digno. Amaldiçoar também, mesmo quando réquiem.


Alvoroçado, Pessoa me olha. É quase hora de cerrar as portas. Inquietas, as palavras das pessoas de Pessoa querem partir. E assim, ele viu que mesmo heterônimas, as palavras das pessoas de Pessoa amadureceram, cresceram e foram furtadas, dilaceradas e modificadas. E as pessoas de Pessoa aquietaram-se, fitando-o. Quem parira quem?

Eis a dúvida de Pessoa.

No súbito, uma voz de um qualquer, embriagado no embargo do boteco, replica:

Todos são fruto da palavra, e mesmo que ela apodreça, suas sementes tocarão o solo e criarão mais palavras. Escolhe a tua, Pessoa, e guarda no bolso da lapela, e para esse povo, nem dá trela. Pois da língua ferina que culmina nessa esquina de usurpadores, a cópia é a pior sequela.

Desanimado, Pessoa entoa:

“...Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão...”.
(8)

Lá do fundo, num tablado gasto e recoberto de talco, uma voz lamuriosa canta, acompanhada das sanfonas iluminadas pelas luzes de um lampião. Na flauta, um petiço repica marcando um violão cangaceiro. E assim tudo terminou:

“...Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fado...”.
(9)


Pessoa sentenciou: Vou, mas minha palavra fica. Um dia, minha palavra morrerá, e com ela, a criatividade vil de quem só sabe copiar.



Marcio Rutes



não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.


Notas e créditos:

(1) Trecho de Presságio, de Fernando Pessoa

(2) Trecho de Todos os Dias, de Alberto Caeiro

(3) Trecho de Pesa o Decreto, de Ricardo Reis

(4) Trecho de Esta Velha, de Álvaro de Campos

(5) Trecho de Seguro Assento, de Ricardo Reis

(6) Trecho de As Quatro Canções, de Alberto Caeiro

(7) Trecho de Datilografia, de Álvaro de Campos

(8) Trecho de O Último Sortilégio, de Fernando Pessoa

(9) Trecho de Tudo Isto é Fado, de Amália Rodrigues

(sem numeração) "Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, tanta necessidade aborrecida!" - Trecho de Os Lusíadas, de Camões


Esclarecimento:

Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis são heterônimos de Fernando Pessoa.

A presença dos heterônimos de Pessoa, no ensaio acima, é apenas uma forma de ilustrar um “encontro inusitado” entre criador e criaturas, mas jamais para insinuar que os heterônimos ou o próprio Fernando Pessoa tenham praticado cópia ou plágio de algo. Longe disso.

O que fiz foi apenas criar um cenário e buscar elementos de peso para discutir "o amadurecimento da palavra", enriquecendo, dessa forma, a segunda parte deste meu ensaio.

3 comentários:

  1. Meu querido Marcio, ensaísta,

    como bem sabes, o verbo derivar contém duas acepções em português : 1. provir e 2. desviar de seu curso. Provir quer dizer proceder, possuir a procedência em alguma coisa; ser originário ou descender; e, ainda, ser a conseqüência de. Como se já não bastasse este leque de sentidos, soma-se ainda a ele a acepção gramatical de "formar uma palavra com o radical de outra, mediante a adjunção de afixos e/ou desinências".

    Nesta segunda parte de teu ensaio que trata da espinhosa (e que nada tem a ver com Espinoza cidade, nem com Spinoza Baruch!) questão da palavra criada e da palavra roubada, meu preclaro amigo, existem exemplos da plurissemia deste verbo à bessa, se ouso dizer sem, com isso, plagiar o desenxabido blogueiro que tanto conhecemos ! *rs

    Foste buscar na figura do emérito vate lusitano o paradigma às tuas derivações. E – não como nau à deriva – derivaste. Procedeste, pois. Provieste. E sem navegares em mares (o mais correto seria dizer rios) de Manoel de Barros, provieste – não através de neologismos bizarros e nem de insensatas construções – contudo, a uma forma novadora de tecer ensaios. Sim, meu irmão, havia uma pedra no caminho, mas Drummond não pensou na diferença de densidades e, cabalmente, a evitou. Outros, no Maranhão, pouco ligam se existe uma ou mais Pedrinhas no caminho deles: passam por cima, como sempre, com os seus bulldozers, trituram-nas, e pssst! não se fala mais nisso.

    Mas Pessoa mas não se plagia: dissocia-se. Por não ter troco para cem, multiplica-se, ao invés de dividir. E a língua portuguesa é quem ganha com isso.

    Pessoa certamente que não pariu pedras porque não viveu no Brasil. Senão, teria facilmente descoberto as tetas de onde ordenharia leite de pedregulhos. E deste faria tinta. Escreveria laudas e laudas. Escrita mineral de origem láctea. De tirar o sono de qualquer poetisa nutricionista, bah!

    Alvaro alvoroçou Pessoa, mas não era rês para seguir Ricardo. Foram ver, apenas. Acreditarias ver uma Amália Rodrigues ou um Alberto Caeiro na batucada? Nem acho que gismontizaram, tampouco. Mas, no afã da folia momesca das línguas ferinas, protegeram a pessoa deles no interior da lapela de Santo António das Letras, o mais seguro. Todavia, como diria (talvez) um Camões, no recanto das trelas não é bem assim, lá todo mundo se elogia e, querendo ou não, todo mundo se plagia. E o sonetista Curupira (que tu conheces bem) dirá sempre amém.

    Mais uma jóia da sua brilhante lavra, Marcio, parabéns. *rss

    Marcio Rutes também não tem troco para cem. E penso que Orfeu não tangeu sua lira tanto assim no palco simplista de Maniqueu. O do Chacrinha era bem melhor.

    Aquele abraço, meu irmão, e uma boa semana para ti.

    André

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  2. Nas pessoas de Pessoa, quantas pessoas mais cabem, quantas personas mais, quantas personagens além?

    Na mesa do bar, uma rodada de chopp à moda lusitana, estava eu a admirar essa boemia clássica ao redor das minhas também divagações etílicas.

    "O meu misticismo é não querer saber.
    É viver e não pensar nisso" - Alberto Caeiro.

    Então que de troco em troco, pouco descobri dos segredos em cada gole de cachaça em redondilhas maiores e menores, esse versarel todo.

    Mas antes chorar tuas mágoas, tuas palavras aguadas, Camões, num copo de água ardente que numa água com sal, pois, pos! Dessas que se revoltam marés e afogam ninfas em suas margens. Marginais Odisséias.

    Eu também não tenho troco pra cem, nem pra dez. Tenho é um pasto de ovelhas, caso queira uma vaga de emprego, seu Caeiro.

    "Eu nunca guardei rebanhos,
    Mas é como se eu os guardasse"

    E Ricardo choraminga em cristal filosofal, meio cheio ou meio vazio?

    "Aqui, dizeis, na cova a que me abeiro,
    Não 'stá quem eu amei.
    Olhar nem riso
    Se escondem nesta leira.
    Ah, mas olhos e boca aqui se escondem!
    Mãos apertei, não alma, e aqui jazem.
    Homem, um corpo choro!"

    Mas tenho para mim, que palavra é uma dose e meia de pinga que escorre lágrimas na garganta e aquece os bolsos furados do verso. Reunião embriagada daqueles que não fogem e da fuga não morrem e continuam não tendo nem troco pra cem.

    Marcitooooooooooooo, confesso que sua obra é de dar um nó nos miolos de tamanha complexidade. E rebuscadamente fantástica é essa sua inspiração de juntar Criador e a criatura e mais, numa mesa de bar???!!! Hahaha Não faltava mais nada. Nem eu nesse bar hehe. Acha messssmo que eu iria perder? rs
    Showwwwwwwww.

    Muahhhhhhhhhhhhhhh
    Te amoooo.
    Sam

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  3. Márcio, meu querido amigo, depois de longo e tenebroso inverno sem fazer minhas visitas rotineiras aos blogs de quem admiro as letras, andei passeando hoje por Crônicas de Areia. Li alguns dos últimos textos postados e me deleitei, como sempre, com a sua excelência em colocar em palavras, os sentimentos do mundo e suas implicações. Voltando aos outros menos recentes, me deparei com esta maravilha de ensaio e através dele fui buscar a primeira parte, outra obra prima. Você fez um trabalho brilhante com os heterônimos de Pessoa, que sabemos, não são apenas nomes diversos, mas a personificação dos múltiplos "eus" que habitam em cada um de nós e nem sempre vêm à luz e que em Pessoa se elucidaram "aos nossos olhos" tão claramente. A sua abordagem sobre o plágio, sobre a propriedade da palavra em todas as suas nuances, foi fantástica. Parabéns, por todos ps textos, mas principalmente por esses dois ensaios excepcionais. Nem é preciso dizer mais, pois o nosso amigo querido, André e a querida Sam, já disseram com toda a propriedade, sobre a qualidade destes textos. Não deixei comentários nos outros textos, resolvi condensá-los aqui nesse breve comentário, pois preferi dedicar o meu tempo para saborear o máximo de leituras.
    Um abraço grande e continue a nos brindar com ensaios desta natureza.
    Celêdian

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