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Ensaio sobre a palavra criada
e a palavra roubada.
Segunda parte.
A PALAVRA ADULTA:
MANIQUEU
INFLUENCIANDO ORFEU
Pessoa em pessoa. E
outras pessoas de Pessoa, entre tantas pessoas que pelo local transitavam,
fitavam Pessoa. E Pessoa vociferava:
“...Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...”. (1)
Rebati. Os mares já
foram navegados. E você sequer conta disso deu. Camões te antecedeu, me
prometeu. Sim, ele disse “Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta
guerra, tanto engano, tanta necessidade aborrecida!”. Mas Camões morreu.
Pessoa não tinha troco para cem.
Desabonado, uma pessoa
de Pessoa, um tanto calada, ergue o lápis, riqueza de sua pobreza, e profere:
“...Tenho alegria e pena porque perco o que
sonho.
E posso estar na realidade onde está o que sonho...”. (2)
Te cala novamente,
Caeiro. E ante ao levante, na composição arfante, aquela mesma tão difamatória quanto infante, você
sente o assobio da mandrágora te lembrando que o gosto da pungência adolescente
chegou. Criou asas. Tua cria cresceu.
De letra reticente,
hoje berra frente a comporta quase como um indigente. Transformado, modificado,
adulterado. Tua cria, que um dia fora quase bandeirante, hoje é errante,
prostituta pelos Recantos tantos que existem no abismo terminal dessa terra sem fim.
Desapropriada de qualquer papel, mas prisioneira numa tela de cristal.
Estranhamente, a mente
mente, e se diz inocente. Indolente, pois sim. Verdadeiro assalto esferográfico
daquilo que um dia foi concebido às duras penas de um tinteiro.
Pessoa não sabia, mas o que nos diferencia de
uma pedra é, meramente, a densidade.
De toalha bordada em
punho, Pessoa argumenta ainda sobre os mares. Arquiteta, já quase insolente,
sobre o arbítrio que a palavra tem sobre nós. Atroz. Bate o punho na mesa, e
sem sutileza, sem sequer lembrar de sua quase realeza, entorna ao chão a
cachaça que fora servida em borbotão. Mas desvia-se, rápido e amedrontado, do
bisturi que à mesa foi fincado. Ricardo reclama, e já vomita palavras:
“...De rosas, inda que de falsas teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido.”. (3)
Com a cachaça
derramada, pessoas de Pessoa brigam com Pessoa. E Pessoa pouco entende.
Remenda a emenda numa
única palavra. Rumina rouco, quase postergando o sarapatel. Preferiu pão seco,
uvas e queijo de leite azedo. Era o que tinha. Mas se não gostasse, servia
farinha.
Pessoa então entendeu. Poderíamos ser pedra
caso não fôssemos tão densos.
Ao crescer tomou o
rumo, ganhou o mundo, reduto maroto e roto, nos escárnios dos becos de línguas
endiabradas. A palavra descobriu o gosto salgado que existe entre algumas
pernas. Ervas finas não tiram o cheiro do lume apodrecido das cópias mal
criadas.
Pessoa rogou,
perguntou por que Deus deixava que suas pessoas o atormentassem daquele jeito. Foi
quando, num traquejo educado, num verso enjeitado e arquitetado nas teias de um
engenheiro, Álvaro disse-lhe ao ouvido:
“...Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?...”. (4)
Pessoa pensou. Precisamos parir pedras.
Pedras? Tinta cria
letra, mas de suas tetas brotam pedras?
Antes fosse, pois mais
dura a palavra seria. E não essa vadia, que se entrega na folia a qualquer
Arlequim. E vai assim, embora, vai sem mim.
Mas vai por que quer?
Ou vai aliciada?
Palavra falada? Ou mal amada?
Palavra descuidada,
usada e profanada em sua virgindade.
Palavra violada.
Palavra minha, tua, de tantos.
Maculada em sua
certidão. Copiada.
Ricardo Reis já
balança, mas não cansa. Pula para o balcão e tal qual criança, faz lambança:
“...Que a mente, quando, fixa, em si
contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente...”. (5)
Pessoa lamentou. Sem saber, lançou seus versos
ao mar após seu barco já aportado.
Caeiro compadeceu-se
de Pessoa. Foi em socorro:
“...E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...”. (6)
Mas de pouco adiantou,
pois logo Álvaro decretou:
“...Ao lado, acompanhamento banalmente
sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever...”. (7)
Pessoa cogitou: criar é ato digno. Amaldiçoar
também, mesmo quando réquiem.
Alvoroçado, Pessoa me
olha. É quase hora de cerrar as portas. Inquietas, as palavras
das pessoas de Pessoa querem partir. E assim, ele viu que
mesmo heterônimas, as palavras das pessoas de Pessoa amadureceram, cresceram e
foram furtadas, dilaceradas e modificadas. E as pessoas de Pessoa
aquietaram-se, fitando-o. Quem parira quem?
Eis a dúvida de
Pessoa.
No súbito, uma voz de um qualquer, embriagado no embargo do boteco, replica:
Todos são fruto da
palavra, e mesmo que ela apodreça, suas sementes tocarão o solo e criarão mais
palavras. Escolhe a tua, Pessoa, e guarda no bolso da lapela, e para esse povo,
nem dá trela. Pois da língua ferina que culmina nessa esquina de usurpadores, a
cópia é a pior sequela.
Desanimado, Pessoa
entoa:
“...Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão...”. (8)
Lá do fundo, num tablado gasto e recoberto de talco, uma voz lamuriosa canta, acompanhada das sanfonas
iluminadas pelas luzes de um lampião. Na flauta, um petiço repica marcando um violão cangaceiro. E assim tudo terminou:
“...Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fado...”. (9)
Pessoa sentenciou: Vou, mas minha palavra fica.
Um dia, minha palavra morrerá, e com ela, a criatividade vil de quem só sabe
copiar.
Marcio Rutes
não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.
Notas e créditos:
(1) Trecho de Presságio, de Fernando Pessoa
(2) Trecho de Todos
os Dias, de Alberto Caeiro
(3) Trecho de Pesa
o Decreto, de Ricardo Reis
(4) Trecho de Esta
Velha, de Álvaro de Campos
(5) Trecho de Seguro
Assento, de Ricardo Reis
(6) Trecho de As
Quatro Canções, de Alberto Caeiro
(7) Trecho de Datilografia, de Álvaro de Campos
(8) Trecho de O
Último Sortilégio, de Fernando Pessoa
(9) Trecho de Tudo
Isto é Fado, de Amália Rodrigues
(sem numeração) "Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, tanta necessidade aborrecida!" - Trecho de Os Lusíadas, de Camões
Esclarecimento:
Alberto Caeiro, Álvaro
de Campos e Ricardo Reis são heterônimos de Fernando Pessoa.
A presença dos
heterônimos de Pessoa, no ensaio acima, é apenas uma forma de ilustrar um “encontro
inusitado” entre criador e criaturas, mas jamais para insinuar que os
heterônimos ou o próprio Fernando Pessoa tenham praticado cópia ou plágio de
algo. Longe disso.
O que fiz foi apenas
criar um cenário e buscar elementos de peso para discutir "o amadurecimento da
palavra", enriquecendo, dessa forma, a segunda parte deste meu ensaio.