sábado, 16 de fevereiro de 2013

RETALHOS


Reedição (publicação original: 08MAI11)

Geada em Curitiba / image by Google
Existem três coisas que geram um fascínio automático em minha mente: um sorriso qualquer pela manhã, um par de olhos curiosos e a palavra “saudade”. 

Era um inverno rigoroso, e minha mãe, que sempre gostou de acordar antes do sol nascer, me chamava muito cedo para ir à escola. Não era muito longe de casa e, após o parco café da manhã, saíamos eu e minha irmã, cada um com seus poucos cadernos e com as mínimas roupas de frio que tínhamos. O calçado fino me faz lembrar até hoje do chão gelado e da sensação horrível e dolorosa que isso trazia. Essas lembranças faziam par com o vento frio que nos cortava o rosto, resultante das geadas que deixavam tudo branco e com um aspecto belo, mesmo sendo terrível de se aguentar. No meio da caminhada, surgiam do horizonte aqueles filetes de sol, que mais pareciam mágicos, misturando-se ao vapor que saia de nossas bocas quando respirávamos. Adiante, mais e mais crianças se juntavam a nós, e ao nos darmos conta, éramos muitos.

Próximo à escola, sempre reparava uma senhora, já bem velha, sentada numa cadeira, quase fora de seu portão. Ela pouco se importava com o frio, e durante anos esteve ali, com sua face amarrotada e castigada pelo tempo. Seu cabelo estava sempre preso, e era esplendidamente branco, um verdadeiro algodão. Quando passávamos, ela nos mirava, calma, e nos seguia apenas com aquele par de olhos curiosos. Ela sabia que na volta, passaríamos por ali e, como se ela não soubesse, pegaríamos escondidos algumas frutas de seu pomar. Ela sempre via, mas nunca nos reprimiu ou negou uma daquelas frutas.

Pessegueiro / image by Google
Hoje, ao passar nesse mesmo lugar, a nostalgia me tomou. Senti saudades daquele frio nos pés, por mais cortante que ele fosse, e dos raios de sol secando o orvalho ou derretendo a geada. As árvores frutíferas não estão mais lá, sequer a casa está. Fiquei lá parado por alguns minutos, observando, até que veio em minha mente uma imagem daquela senhora. Lá estava ela, novamente, me olhando com aquele par de olhos curiosos. E é engraçado, pois foi somente hoje que lembrei da única vez em que a vi sorrindo. Foi numa manhã, a única em que fui à escola sozinho. Ao passar naquele lugar, ela mirou-me diretamente nos olhos e soltou aquele singelo sorriso. E então, naquela mesma noite, ela se foi.

Muita coisa aconteceu desde então, coisas boas e ruins. Mas é engraçado que são coisas tão simples, como essas acima, que nos marcam por toda uma vida.



Marcio JR

Um comentário:

  1. Senti a sua falta.Que bom que voltou, querido.A sua estória me emocionou... De uma ternura encantadora.Uma cena assim bela nunca que esquecemos.

    Beijinhos e um lindo fim de semana.

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