domingo, 22 de julho de 2012

FARDO

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Sentou-se lá, distante. Da rodovia chegavam alardes do movimento da tarde, que entre veículos e pessoas, o que restava era o barulho do caos. Sem pressa, apoiou as mãos naquele chão árido e levantou, deixando que a visão se perdesse naquele tumulto. E caminhou.

Entrou pela cidade já na entrada da noite, sempre andando sem pressa. Os altos edifícios assustavam um pouco, e o turbilhão de pessoas que despencavam por suas bocas era alucinante. Uns corriam para seus veículos e se trancavam. Pareciam mal humorados. Outros se atropelavam pelas calçadas, correndo e se desviando até de suas próprias sombras, que eram estampadas ao chão pelas luzes artificiais. Pressa e desconfiança, era o que se via nesses.

A noite já caminhava alta e fria, e ele se encolhia entre os trapos que vestia. Nas portas fechadas do comércio, reparou algumas pessoas espalhando papelões pelas soleiras. Nos becos, as prostitutas se mostravam quase nuas para arrebatar clientes.

Num desses becos pelos quais ele atravessou, viu certo homem trajando um macacão branco e imundo despejando na lixeira uma quantidade grande de restos de comida. Um pouco adiante, várias crianças esperavam, perdidas e encobertas pelas sombras. A fome as levava até ali. E na rua principal, decorada por luzes de todos os tipos e intensidades, vários bares eram disputados por pessoas empoladas e mostrando descontração.

O frio aumentava, mas ele não parava. Caminhou como se procurasse algo, até que avistou, ao longe, uma cruz enorme e iluminada. Foi até lá e subiu as grandes escadarias, parando somente diante da suntuosa porta. Era uma igreja, mas estava fechada. Ao olhar para o chão, notou marcas estranhas, como se algo tivesse sido incinerado naquele lugar, deixando, assim, o granito manchado. E não estava errado. Um mendigo fora vítima de desordeiros, e terminou ali, queimado.

Baixou a cabeça e prosseguiu em sua jornada. Da rua, olhava para alguns televisores ligados pelos bares. Na programação, políticos espalhavam efusivamente que "muito se fazia pelo bem do povo". Um pouco mais adiante, a polícia enfrentava, entre tapas e tiros, alguns traficantes de drogas. No meio do tumulto, uma bala perdida acabara de acertar uma jovem estudante que retornava para seu lar.

Em seu trajeto, passou por um parque da cidade, e parou para olhar o lago. Na outra margem, uma jovem atirava algo, embrulhado em jornal, diretamente na água. Ela correu e, pouco tempo depois, alguns indigentes recolhiam aquele embrulho. Era uma criança recém nascida e que, por pura sorte, ainda estava viva.

De seus olhos brotava tristeza. Não queria mais ver aquilo, e rumou para fora da cidade. Caminhou muito e depressa. O céu, mesmo frio, mostrava um brilho fantástico, mas parecia parado, estacionado e apenas acompanhando os passos daquele homem. E assim foi, até as luzes da cidade ficarem para trás e se apagarem. A rodovia, antes larga, virara agora uma via estreita, e pouco depois, perdeu o asfalto. As luzes que guiavam seu caminho brotavam das estrelas e da lua, e como companhia, só escutava o pio das corujas.

Subiu montanhas e atravessou vales, até que, pela manhã, chegava num povoado pobre, na beira de um rio. Havia muito lixo por todos os lugares, mas não existia sinal maior de destruição. Tudo estava quieto, sem alardes e gritos, e a única igreja, uma pequena sala bem ao centro da comunidade, não tinha porta. Pelas frestas nas paredes das choças, o que se via eram pessoas dormindo amontoadas, mas ninguém estava ao relento ou passando frio. Quem não tinha casa, era recolhido pelos demais e se alimentava com o pouco que nutria a todos. Tudo era dividido.

Seu caminho terminara. Estava dentro de uma das choças, mais precisamente no quarto de uma mulher grávida. Maria era a mais humilde daquele vilarejo, e em poucos dias seu filho nasceria. Era uma gravidez de risco, mas ela, em momento algum, tentou cometer aborto. Ele ajoelhou diante dela e estendeu a mão, tocando aquela enorme barriga. Lágrimas correram de seus olhos, vermelhas e incandescentes, e em instantes, seu corpo virou fumaça, desaparecendo por completo.

Ao despertar, como fazia diariamente, Maria ajoelhou-se e apanhou um pequeno e envelhecido crucifixo. Ao olha-lo, antes de iniciar sua oração, notou algo estranho. Dos olhos do Cristo, vertiam pequenos cristais vermelhos, que pareciam escorrer num suplicio nítido. E sem se dar conta, ela amparava nas mãos toda a tristeza que um homem carregava a mais de dois milênios. A tristeza de ver que muito pouco fora compreendido pelo ser humano.

Marcio JR

12 comentários:

  1. Nossa, Márcio! É difícil até começar.

    Esse teu conto carrega uma energia tão densa e ao mesmo tempo tão liberta que soa meio que contraditório. Será que escolhemos nossos caminhos por nós mesmos, ou simplesmente somos barcos à deriva da correnteza e mais preocupados em moldar nossos passos de acordo com que a humanidade caminha?

    Somos, de fato, postos à prova todos os dias, desde as mínimas coisas até as mais difíceis decisões. E laboriosas situações também. Estamos diante das escolhas antes mesmo de abrir os olhos e mesmo depois de fechá-los.

    Se sonhamos, ou temos pesadelos, será por consequência dos tipos de pesamentos que alimentamos um dia inteiro? e "quiça", uma vida inteira?

    Nos deparamos com muros e vielas e nossos olhos continuam vedados pros atalhos que nos trariam algum alento.

    Alguns de nós, pra não dizer a maioria, cegamos pelas inutilidades que nos são despejadas dia e noite pelos centros das cidades, por esse afoito e desmedido ato de sobreviver pulando abismos e ainda assim, cuspindo no pranto que em que comemos.

    Apontamos o dedo e esquecemos dos nossos próprios débitos diante das nossa próprias escolhas e dos caminhos que deixamos ou decidimos percorrer.

    Cuidamos tanto da vida alheia, que a nossa, fica à merce das traças mentais e das hipóteses dos "e se"... e mesmo assim, não damos um passo à frente sem olhar pra quem está atrás e criticar.

    Nos achamos, na nossa mesquinharia, muito à frente e superiores. Ilusão mais besta essa de se conter nas mãos dos outros e deixar nossos olhos inertes nessa escuridão de dentro, que mal conseguimos enxergar o nosso próprio desnivelamentos à frente do nosso nariz.

    Tropeçamos e não aprendemos à desviar das pedras.
    E quando o próximo cai, nos sentamos para gargalhar melhor. Pra que?

    Escolha ingênua, inconsciente, errônea?
    Pena ainda não haver manual de (sobre)vida nesse "mundo de macacos"

    Carregamos cruzes e nos lamentamos, sim, na nossa causa justa de assim ter o direito de fazer. Mas é quando nos trombamos, assim, brutamente mesmo ( o que acontece muitas vezes pela vida) que é pra ser visto meio que na marra, que há cruzes mais pesadas que as nossas e e que, diante delas, as nossas poderiam ser comparadas à gravetos.

    Eu, ainda na minha visão imatura do que seja escolhas, não digo certas, nem erradas, mas boas e más... carrego um dicionário que ainda aprendo a decifrar.

    Não pra orientar ninguém no seu caminho, mas pra escolher o meu próprio... todo santo dia.

    Uma reflexão bem surreal e à contraposto, de uma veracidade sem igual.

    Adorei, meu querido.
    Sou apaixonada por esses seus contos.
    Deixam minha mente à mil.

    Beijo na alma,
    Sam

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  2. Marcio,viajei nessa sua história meio maluca e muito real...que mundo vivemos,não? E se Cristo voltasse sentiria mesmo todo esse fardo!Excelente conto!bjs,

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  3. Oi, Márcio.
    Um conto real, como seres humanos, grupos, sociedade acho que não temos feito as tarefas de casa das lições preciosas que o Mestre tem nos dado.
    Mas precisamos acreditar que um dia aprendemos :)
    Bjs

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  4. Maria "amparava nas mãos toda a tristeza que um homem carregava a mais de dois milênios"... e assim, desvelada a identidade do caminhante que parecia procurar por alguma coisa, fica a pergunta: A humanidade foi salva?

    Profundo toque para despertar, Marcio.
    Um abraço, bons dias nesta semana!

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  5. Sensacional,Marcio!!Triste história tão real, infelizmente...Mais uma linda página aqui!!abração praiano,chica

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  6. Marcio,voltei!Hoje postei uma poesia sua no Recanto dos autores tb,obrigada por permitir!bjs,

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  7. Marcio,olha eu aqui tra vez...rsss...seus comentarios chegaram até mim,os dois!Obrigada por sua presença em meu blog tb!Sei que a vida real é correria!bjs,

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  8. Oi, Márcio. No meu blog tem uma homenagem a todos os meus amigos que me dão o provilégio de "lê-los". Confira.
    Bjs

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  9. Um olhar perfeito e profundo sobre o cotidiano,que voce belamente escreveu criando emoções várias.Perfeitamente real meu amigo.
    Parabens pela criatividade e pelo dia do escritor.
    Meu terno abraço de paz e luz.

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  10. Márcio, meu querido amigo, entre todos os seus admiráveis textos, este é especialmente maravilhoso. Você abordou com extrema lucidez, as mazelas humanas que tornaram o mundo moderno, um verdadeiro caos. Em cada faceta delas, expostas com muita veracidade, fica a sensação do quanto somos pequenos e incapazes de exercermos o lado humano que nos compete. Fica também a sensação que passados dois mil anos, continuamos os mesmos seres esquecidos do sentido de humanidade. Compreender o nosso papel aqui é algo que está longe do entendimento do homem. O que ainda pode nos consolar, é saber que ainda há esperança, mesmo que remota, de que um dia o homem compreenda que o ser humano é um ser para o outro.

    Esplêndido texto, meu amigo.
    Um carinhoso abraço para você.
    Celêdian

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  11. Este teu curto conto, meu amigo Marcio, impressionou-me já pelas sonoridades das primeiras linhas (alardes, tardes, árido, mãos, chão, visão…). A expressão despencavam por suas bocas é originalíssima! perdoe-me se se trata de algo novo ou regional aí no Brasil e do conhecimento de todos, porém, para esse teu amigo expatriado aqui soa como algo realmente inédito, insólito.

    A narrativa se passa, aos meus olhos, como em um film noir, por entre sombras e penumbras, frio e quiçá, um leve nevoeiro, como o da foto que utilizaste para ilustrar o texto. Uma realidade crua e dura, meu irmão, a que descreves.

    Gosto muito dessa maneira "on the road" na qual lanças teus personagens, esse "pé na estrada" de transitar, sem lenço, sem documento, da paisagem urbana à paisagem mais rural, mais campesina, mais montanhesa. Esse entrar e sair por cordilheiras sem passaporte, é magnífico! no entanto, após esse "travelling" por entre as misérias da cidade grande, o incógnito personagem aporta à cena final, onde se dá, efetivamente, a epifania. A narrativa "dark" desfaz-se, aos poucos, de suas sombras e ganha aqui, inesperadamente, clarões feéricos. Surrealistas. Místicos. Transcendentais.

    Meu bom amigo curitibano, teu conto nos deixa uma mensagem passiva, pois existirá sempre passividade em um processo que não depende de um e nem da boa vontade de um ser excepcional, de um Avatar. A evolução se faz individualmente, certo, porém nem sempre em fase com a evolução coletiva. O seu maravilhoso relato-conto nos ensina isso, nas entrelinhas. E comove pela beleza da linguagem, pela emoção contida nas imagens, nas circunstâncias que tão bem escolheste para construir este teu tão belo texto. Aplaudo-te de pé, meu querido Marcio.

    De passagem apenas episódica por aqui, meus dias atualmente se transcorrem um pouco longe do computador; busco os espaços abertos e ensolarados que, sei bem, não vão durar muito tempo por aqui. Porém, sempre que puder, estarei vindo a este teu novo espaço, onde encontrarei sempre uma ótima leitura. E este teu texto aqui é uma prova insofismável do que digo. Continua inspirado, querido amigo, tenhas um bom fim de semana, fica bem.

    Um forte abraço do
    André

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  12. Boa noite, Márcio.Vim me deleitar na sua escrita, que além de intensa, sempre tem uma mensagem que nos faz pensar.Tudo começa e termina no ser humano.As mazelas e a salvação.Mais uma criança irá nascer e com ela nasce tb a esperança de que algo mude para melhor.No entanto não a vejo como salvadora, mas sim como símbolo de aprimoramento, mesmo que esse ainda seja difícil de ver.

    Querido, tenha um domingo maravilhoso.

    Beijo grande.

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