sexta-feira, 20 de abril de 2012

CHICO CONTENTE - NÓ NA CACHOLA

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Piracicaba, fins de 1930.

--Cadê esse peste do Chico, que não aparece nunca!

Seu Anésio, que varria a frente do armazém, parou o que fazia e foi até o balcão. Lá, estava o padre Mirto completamente nervoso e, como se não bastasse, com coceira pelo corpo todo.

--Ih! Seu padre! Cada veiz qui o sinhô tá cum essas cumichão, é purque a coisa num tá boa. I além du que, a módiquê vóis micê tá aí nessa gastura toda isperando o Chico?

--Eu conto, Anésio. Eu conto! --o padre se virou para o balcão e pegou um copo cheio de cachaça, tomando seu conteúdo num único gole. --Mas antes, me põe mais um trem desse.

--Ara! I num é pecado tomá pinga desse jeito?

--Anésio, deixa que me entendo com essas partes. Tenho carta branca celestial para algumas coisas. Agora, enche logo o copo. E quanto ao Chico, tão dizendo por aí que ele endoidou o Teobaldo e mandou o coitado pro hospício.

--Virge Nossa do Pão Seco! I cumé qui esse miserento feiz um trem desses?

--Não sei, Anésio. O que sei é que a Tonha tá desesperada. Mas, olha o cabra aí. Já vamos descobrir.

Chico Contente atravessou a rua com toda a calma do mundo. Quando entrou no armazém de seu Anésio e viu o padre, fez menção de voltar para a rua, mas para sua infelicidade, o padre chamou por ele, e num tom nada compreensivo.

--Vem cá, seu traste, que você tem muito pra me contar.

--Bão dia pru sinhô tumém, seu padre. --Chico olhou meio de soslaio para o padre, e já em seguida se encostou no balcão e pediu para que o dono servisse algo para beber. --U sinhô drumiu bem?

--Não se faça de desentendido. To procurando sua pessoa faz dois dias, e nada. Tava se escondendo de mim, por acaso? Não tem nada pra me contar?

Tanto Chico quanto seu Anésio se olharam e permaneceram calados. O padre, como viu que nada aconteceria ou seria dito, continuou em seu inquérito.

--Trate de me explicar, e com detalhes, o que aconteceu pro Teobaldo ir parar num hospício.

--Arre! Intônce é isso qui u sinhô tá incomodado? Só pidi pra qui ele sispricasse cumé qui ele é pai du bisneto dele.

--Minha Virge Nossa do Pão Moiado e Amanhecido! Qui é isso? --Seu Anésio soltou a garrafa de cachaça no chão e abriu a boca, sem acreditar.

--O que? De onde você tirou essa asnice, Chico? --o padre empalideceu, arregalando os olhos. --O Teobaldo é um dos homens mais honestos que conheço. Além do quê, ele tem neto, e não bisneto. Vai, explica isso logo.

--Bão... é qui mi ocorreu uma dúvida! --Chico pegou uma garrafa fechada de cachaça e abriu, carregando-a para uma mesa e sentando-se. --Tudo si deu di cumeço quando o Teobaldo enviuvou...

“...cumpadi Teobaldo num é homi di ficá suzinho im casa, i logo tratô di casá. Num é pecado qui eu sei. Arranjô uma moça nova e dereita, a cumadi Tonha. Daí, u tal du distino aprontô, i o Zeca, fio du cumpadi Teobaldo no premero casório dele, tumém arrumô uma muié, só qui bem mais véia i viúva tumém. Acho qui num é pecado dele, mais da viúva véia já nem sei...

...quando u cumpadi Teobaldo i u Zeca si déro conta, as muié deles era mãe e fia. U Cumpadi casô cá fia, qui era a Tonha, i u Zeca casô cá mãe da dita. I cumeçô u nó na minha cachola.”

--Eita! --o padre se irritou, mas sentou ao lado do Chico, prevendo que a história seria longa. --Onde você quer chegar com isso, Chico?

“Seu padre! Quando um fio casa, a muié du fio vira nora, intônce, a mãe da Tonha, qui é muié du Zeca, além di sogra do cumpadi, é nora tumém, purque é casada co fio dele. I u Zeca, quí é genro da Tonha, passa a ser irmão di criação dela. I a Tonha, qui além di fia da muié do Zeca, passa a sê fia di criação du cumpadí Teobaldo. Nesse caso, já deu pobrema, a módiquê u Zeca casô cá pópria irmã, já que a muié dele virô fia di criação du cumpadi. I tumém ele passa a sê fio di criação da fia da muié dele, intônce, o traste casô cá pópria mãe?...

...i tudu piorô. U Zeca virô sogro do póprio pai, i pai di criação da fia da muié dele, qui nu caso, é mãe di criação dele mesmo. Nesse caso, u peste é pai dele póprio? Intonce, a fia da muié du Zeca, qui já era irmã dele, nessas artura, virô irmã di criação da pópria mãe, e tia do Teobaldo, qui casô tumém cá pópria irmã...

...pá intortá tudu di veiz, as duas imbucháro junta i ganháro fio dia desses. U fio du Zeca é neto du cumpadi Teobaldo i irmão da cumadi Tonha. Si é irmão da cumadi Tonha, intônce é cunhado du póprio avô i tio du Zeca. Si o fio é tio du Zeca, intonce ele é tio da pópria mãe. Já u fio du cumpadi Teobaldo é pior...

...u fio du cumpadi Teobaldo é irmão du Zeca i subrinho ao mermo tempo, e sendo irmão do Zeca, é cunhado da mãe da cumadi Tonha. Sendo fio da cumadi Tonha, passa a sê neto da muié du Zeca, intônce, é neto du Zeca tumém. U Zeca é tio du póprio neto, intônce o Zeca é tio do pai dele, o Teobaldo. Si u fio da Tonha e du cumpadi Teobaldo é neto du Zeca, intônce é bisneto du cumpadi Teobaldo, qui nesse meio tempo, virô tio dele mesmo, cunhado da pópria Tonha e pai du avô du póprio fio.”

--Anésio! --o padre chamou pelo dono da venda, mas sem obter resposta. --Anésiooooo.

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O dono da venda apenas olhava para a mesa, pálido e sem voz. Ao se dar conta, o padre puxava a ponta de seu avental e mostrava a garrafa de cachaça vazia.

--U sinhô vai querê mais pinga, padre Mirto? --a voz do dono do armazém soou murcha e sem muita direção. --Pódi bebê qui querdito qui hoji num vai sê pecado ninhum. Inté acho qui lá inrriba, os santo tudo tão percurando arguma coisa pra módi moia a guela tumém, purque ninhum deles há di tê intendido patavina ninhuma du que esse patusquela falô.

--Quero não, meu filho. Só quero um favor. Vai lá no hospício, e vê se o tal do dotorzinho que recolheu o Teobaldo pode me atender.

--U sinhô vai pidí pra módi disinterná o cumpadi Teobaldo, padre? --Anésio argumentou com o padre, mas sem desgrudar os olhos da mesa.

--Desinternar o Teobaldo? Que nada. --o padre completou, também sem afastar os olhos da mesa. --Depois dessa, acho que quem precisa de tratamento sou eu.

Marcio JR


16 comentários:

  1. Não dá mesmo para entender esta charada.
    Conhecia já a anedota contada num modo mais simples mas ainda assim também não dá para entender - embora tenha a sua lógica.

    Com esta linguagem bem brasileira a anedota ainda se torna mais viva e divertida.

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  2. Puxa, muito legal e divertida e claro que deu nó até no padre e em qualquer um. rsrs
    E com a garrafa esvaziando pior ainda...Muito bem contado, com esse linguajar típico.

    És muito especial! Valeu!!
    Lindo fds,abração,chica

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  3. querido amigo vim conhecer seu blog atraves da querida menina voadora,adorei a leitura por aqui parabens por sua exelente post deixo um abraço desejando um final de semana abençoado bjs com carinho marlene

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  4. Pois é!! Interiô, cachaça, cunversê... dá nisso meRmo. Hospicíu... kkkk

    Abração véi...
    Tatto

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  5. kkkkkkkkkkkkkk... deu nó foi NA MINHA caxola! rsrs Você sempre com essa originalidade, tanto na forma com que tece a história, no humor que é sua marca e principalmente na fala, respeitando o jeito e sotaque de cada personagem, diante à sua regionalidade, costumes.

    Seus contos, crônicas, são tesouros imensos, sabia?

    Aproveito a oportunidade, meu querido, para lhe dar um abraço forte e bem demorado. Para agradecer por esse presente e mais, por essa surpresa que aqui encontrei, em referência ao meu filho, opa, livro! rs

    A maior parte de tudo isso ter acontecido foi por culpa sua rs. Você que me incentivou, me acompanhou, me auxiliou em tantas vezes, e com a paciência que definitivamente, só poderia ser sua mesmo rs.

    Meu coração agradece tamanho carinho e o "apadrinhamento"

    Beijo na alma, querido meu.
    Sam

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  6. HA!ha!ha... muito bom... fiquei com a cachola igual ao do Padre. E Chico não é mole!! Adorei..
    Bom Fim de Semana...
    Bjss

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  7. Risos...
    Maninho... Você deu um nó no tico e no teco aqui rsrsrs.
    Que fantástico texto, mas não sei por que o espanto você encanta todas às vezes.
    Amei simplesmente.
    Felipe ainda está rindo maninho, e eu não consigo comentar com ele gargalhando rsrsrs.
    Ele disse: “muito bom, muito bom mesmo!”
    Risos...
    Te adoro Marcio

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  8. Marcio, querido amigo, saudadona de ti.
    Puxa, perdemos o contato, nem eu venho, nem você vai.
    Eu fujo do rabiscos, logo depois volto.
    Nunca vi um vai e vem como esse meu.
    Agora acabei de ler teu comentário lá na postagem que a Anne fez de um rabisco meu no Recanto dos Autores, vim te fazer uma visitinha.
    Mas posso confessar-te que estou sem coragem de ler?
    Mas durante o dia, voltarei e lerei com calma.
    Agora deixo um beijo carinhoso e um abraço de urso.
    Tenha uma deliciosa madrugada.

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  9. Meu querido amigo,
    confesso que tive que esboçar um organograma para poder melhor entender essas complexas inter-relações familiares que tão bem traçastes aqui. Coisa mais doida, sô! de dar nó em qualquer cachola, com certeza! *rs

    Depois de meses afastado das letras e deste convívio tão simpático, voltar a ler a tua tão saborosa prosa é um real deleite, realmente. Um conto pleno de verve, muito bem construído e carregado desse humor regional que sabes tão bem traduzir. Marcio Jr nos melhores dias dele, e assino embaixo!

    Um grande prazer para mim voltar a te ler e comentar teus belos textos, meu irmão. Que os ventos da melhor inspiração continuem soprando para ti.

    Bom fim de semana, meu amigo, um forte abraço.

    André

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  10. Marcio,que história prá lá de boa!Me lembrei do velho caipira do Mazzaroppi!...rss...muito legal e de endoidecer mesmo todo esse parentesco!...kkk...parabéns para a Sam e acho que a conheço do Recanto,não sei se é a mesma!Vou dar uma olhadinha!bJS E bom sábado!

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  11. Divertidíssima a história, Márcio e fiquei até tonta com a explicação do Chico Contente ao padre.rs... histórias de um tempo que não voltam mais.

    Piracicaba que eu adoro tanto... Domingo retrasado estivemos em Piracicaba almoçando no restaurante Chevete. Lá eles preparam um lombo de filhote na brasa com molho de manteiga e alcaparras que é de comer rezando...

    Parabéns a sua amiga pelo livro, querido.

    Beijo.

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  12. Este comentário foi removido pelo autor.

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  13. Troquei uma letrinha aqui.
    Arrumei.

    Já sei o que a tia te aprontou maninho, o namorado fez a mesma coisa quando ingressei por lá.Risos...
    A tia e o Lipe isso sim! Euzinha ?Estou apaziguando a coisa aff!

    Kkkk...Vocês precisam me ajudar a fechar a boca do Lipe hem? Esse moço, agora quer fazer uma viagem por lá.Rssss..

    Beijo e bom começo de semana mano

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  14. Meu caro amigo, Márcio!

    Só mesmo traçando um diagrama desta intricada história genealógica, para entender o que Chico Contente contou. E só uma mente de escritor, privilegiada, para narrar um conto com esta complexidade de ideias, sem se perder, com um humor refinado e respeitando a fala regional com a naturalidade que ela exige.

    Delícia de texto! Leitura que flui levemente do começo ao fim.
    Repetitivo dizer o quanto é prazeroso desfrutar da leitura de seus textos.

    Um grande abraço, meu amigo.
    Celêdian

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  15. Eita confusão dos diabos, sô!
    Adorei Márcio.
    Por dimais de bão.
    abração com carinho

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  16. Maninho tudo ok para amanhã.
    A nossa Sam conseguiu! Que orgulho sinto.

    Beijinho maninho

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