sábado, 4 de fevereiro de 2012

...MORREU LÁ, SENTADO E CHORANDO!

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Era sempre uma cena triste, passar naquela ladeira e olhar a velha oficina de marcenaria e carpintaria. Na janela pequena, aquela que dava para a rua, aparecia seu Almar, carpinteiro, marceneiro, artesão e pescador dos bons. Ele ficava por lá, sentado na velha cadeira de palha, que o amparou por anos a fio. Essa cadeira fez parte de sua vida. Ela viu nascerem gamelas, cuias, pilões, violas de cocho, rabecas, violões... pois é, hoje chamaríamos o seu Almar de luthier, mas ele, mesmo um mestre sem entender as letras, se considerava apenas um marceneiro, nada mais do que isso. E como ele era bom. Tratava a madeira com uma paixão ardente. Falava com ela. Entendia cada nota que ela emitia mesmo antes de virar um instrumento.

música: UM VIOLEIRO TOCA (Almir Sater) - by YouTube

Seu Almar nasceu pobre, filho de agricultores, lá no começo do século passado. Família grande, muitos irmãos e um pai que amava música. Cresceu e, onde era a propriedade do pai, um vilarejo grande se formou, tirando um pouco a magia do lugar. Desde cedo se enveredou pela carpintaria, mas a marcenaria era algo natural dentro dele. Ainda criança, aos doze anos de idade, fabricou as ferramentas que lhe faltava para fazer pequenos artefatos de madeira. Eram utensílios domésticos para a mãe e objetos para auxiliar ao pai na lida da roça. Não viveu disso, não ganhou dinheiro, pois era da carpintaria que se sustentava, mas levou a marcenaria até o fim da vida como um linimento para a alma.

Cada ferramenta que ele fabricava era uma extensão de seus dedos e mãos. Tratava melhor delas do que um pai trata a um filho. Era delas que ele tirava alegria, e ele retribuía a elas com imenso respeito e amor. As ferramentas, fosse da carpintaria ou da marcenaria, eram responsáveis por algo que muito orgulhava àquele homem: jamais deixara de cumprir algo que tratara, fosse um serviço ou qualquer outra coisa. Jurava sempre que levaria isso até o fim da vida.

Das terras do pai, restou um pedaço de chão dobrado para ele, que logo foi tomado pelo vilarejo. Nunca teve posses, mas nem precisava de muito. Tinha sua carpintaria e, também, Mariquinha.

Ah! Mariquinha. A Maria dos cachos negros, como era chamada quando ainda menina. Longos cabelos e um sorriso sempre tímido nos lábios. A lavoura judiou dela desde criança, e aos quinze anos, se viu sozinha no mundo. Os pais, lavradores, morreram numa peste, sabe-se lá qual, pois sequer ela lembrava. Seu Alberto, pai de Almar e homem de alma boa, recolheu a moça. "Onde come um, comem dez, e ela não vai ficar no relento", disse ele, com um vozeirão de espantar até cavalo no pasto. Mas era esperto, e logo viu que teria mais do que uma filha. Teria uma nora.

No entanto, seu Alberto sempre cuidou. A moça casou pura, sem que Almar sequer tivesse beijado a moça antes do casamento. Ao menos assim se crê até hoje. E dona Mariquinha, prendada, fez de seu Almar o homem mais feliz daquele mundo. Tiveram filhos, oito no total, todos muito bem criados e educados. Nunca faltou nada. Nenhum deles há de dizer que o suor de seu Almar deixou algo faltar, seja na mesa das refeições, seja no companheirismo de pai, seja na educação que tiveram.

Mas o tempo não perdoa, voa. Cada um dos filhos, no seu devido momento, casou e foi para a cidade grande. Seu Almar sempre falava que enquanto tivesse dona Mariquinha e a carpintaria, viveria feliz, pois os filhos, mesmo com uma saudade danada de doída, esses ele criou para o mundo. Assim, envelheceu, e também Mariquinha, que mesmo com a pele amarrotada, era vista por seu Almar como “a seda que recobria um coração”. Não importava, para ele, a seda da pele, pois para essa, ele nunca ligou. Mas a seda dos sentimentos de um coração puro, que ele sempre enxergou na companheira, seria eterna.

Então, após os filhos partirem para a vida própria, dona Mariquinha passou a acompanhar seu Almar até a oficina todos os dias. Ele sentava naquela cadeira, a que dava para a janela, e ela ficava diante dele, em outra cadeira. Lá, ela cantarolava e asseava as ferramentas, enquanto ele trabalhava lentamente, conforme as mãos comandavam. Foi assim por vinte anos.

Os filhos vinham vez ou outra, e traziam os netos, mas nenhum se interessou em seguir os passos do avô. Até que um dia, numa manhã ensolarada, dona Mariquinha não acordou. E seu Almar chorou pela primeira vez na vida.

Os anos seguiram, poucos, até a morte de seu Almar. E dia após dia, ele foi para a carpintaria. Sentava na cadeira e trabalhava. Cantarolava as mesmas canções que dona Mariquinha cantava. E quer saber? Seu Almar conversava. Conversava muito. Conversava com dona Mariquinha. Loucura? Talvez. Para ele, no entanto, era a seda de um coração puro que vinha para descansar os olhos avermelhados pela saudade.

Quem olhava de fora, se entristecia. Via seu Almar lá, sentado e naquela agonia. Na hora de ir para casa, ele terminava o asseio das ferramentas. Não descuidou delas. Arrumava cada uma no lugar e fechava tudo. Ao sair, esperava um pouco e dizia, em pensamento: “Logo estaremos juntos. Assim que Deus quiser, eu irei”.

Numa tarde de setembro, um cliente muito antigo passou pela oficina de seu Almar. Ele encomendara uma viola de cocho há mais de um ano, mas não tinha pressa. Era uma forma de manter aquele pobre homem ocupado, tendo o que fazer do tempo. E naquele dia, o instrumento estava pronto.

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Ao entrar na oficina, o homem cumprimentou seu Almar, mas não obteve resposta. Ele estava ali, sentado naquele mesmo lugar e sorrindo, olhando para a cadeira em que dona Mariquinha sempre sentava. Ao lado, a viola prontinha. O homem ainda chamou novamente, mas logo viu que seu Almar não responderia. Havia uma paz imensa naquele lugar, e seu Almar, como dizem por aí, só esperou terminar seu compromisso, honesto que era, para depois ir encontrar a mulher amada.

Seu Almar morreu lá, sentado e chorando! Chorando o amor à vida, aos filhos. Chorou e cantou seu amor pelo trabalho, pela profissão, pelas tão estimadas ferramentas. Mas morreu sorrindo, sabendo que dona Mariquinha só esperava ele terminar aquele serviço contratado para vir buscá-lo. Ela sabia, como todos, do orgulho que ele possuía em jamais ter enganado ninguém. E não seria ali, nem diante de tanta saudade, que ele deixaria de cumprir um trato.

O marceneiro, o carpinteiro, o homem da alma musical não está mais lá, naquela janela. No entanto, muitos que passam por lá juram que escutam, ainda, a velha lixadeira fazendo barulho, uma mulher cantando e um homem amando intensamente a vida e a esposa.


Marcio JR


17 comentários:

  1. algumas vozem são (e)ternas e zelam de alguma forma, histórias como se fossem fábulas debruçadas nas mesmas janelas com floreiras, aquelas de sempre, mas de antigamente.
    e das lembranças, como roupas penduradas nos varais, secando em dias de sol e chorando suas chuvas, suas luvas diárias de vestir os vãos de algo ou alguém que seja belo, tornam-se bonitezas, mesmo que solitárias penduradas nos cílios, no vão dos dedos, perdurando na memória da vida, amoes que tempo nenhum definará.

    Tão bom vir sempre aqui, querido meu.
    Meu beijo e carinho,
    Sam

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  2. Um texto bonito e envolvente.
    Caminhamos na história como observadores e ao mesmo tempo participantes.
    A vida é assim. Aprendemos a afinar as cordas que lhe dão música, dores e alegrias, mas tudo tem um fim.
    Porquê...????

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  3. Maninho a tua sensibilidade nos deixa emoção pura.
    Tua escrita vem da alma, dos sentimentos vastos. Aquele que afaga com carinho e cuidado.
    Ao te ler, vou descobrindo ainda mais a tua grandeza.
    Amo teus textos, teus comentários, tua meiguice e carinho.
    Quem não entende a finura do teu coração, não sabe o que é o brilho do sol na manhã.
    Você é maravilhoso e eu te adoro.
    Beijinho

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  4. Que lindo,Marcio! Emocionante e deu pra imaginar tudinho ... Adoro te ler! Mais um conto daqueles especiais!!! abração,tudo de bom,chica

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  5. Estou em choque !!
    Que belo
    Como é bom voltar aqui e me deparar com um texto dessa grandeza
    Saudades
    Beijinho

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  6. Simplesmente maravilhoso e emocionante!
    abração com carinho.
    uma semana de muita paz, alegria e harmonia para ti.

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  7. Uma história de amor parecida com a dos meus pais. Só que ele partiu e minha mãe ficou. Segundo ela para cuidar dos dez filhos que teve com ele...Fiquei muito emocionada... maravilhoso..
    abraços

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  8. Marcio,uma história comovente desse violeiro!É um dom especial construir uma boa viola e adore a musica do Almir Sater tb!Beleza de texto!Bjs e boa semana!

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  9. Me emocionei aqui, Márcio.Sua história é linda...

    Beijinhos

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  10. Bom dia querido maninho.
    Te ler e reler é sempre um belo presente.
    Você transforma palavras em pedaços de carinho e emoção.

    Adoro!

    Beijinho Marcio.

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  11. Essa é daquelas que dão um nó na garganta... Lindo Conto, parabens!

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  12. Marcio, querido amigo, demorei mas cheguei.
    Te ler é ficar com emoção à flor da pele...história linda por demais.
    Estava com saudades daqui, sumi mas não te esqueci, viu?
    Um beijo no teu coração meu amigo.
    Parabéns pelo dom da escrita.

    Tô com vontade de comprar teu livro, assim que der, pedirei, ok?
    Te desejo MUITO SUCESSO!

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  13. Ô meu mano véi... rss

    Aí... Aí... Assim tu memôciona, vô chora não viu!!
    Enquanto tu conta os conto bunito, Eu conto os que dão funiquito... rss

    Abraços e feliz por tua decisão... valew
    Tatto/Xipan

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  14. Oi Marcio!
    Você é fogo mesmo,rs.
    Acabei de ler seu comentário lá no Recanto.
    Não vale me fazer chorar.
    Só tenho a agradecer a Deus em primeiro lugar e a você por pegar no meu pé, pois muitas vezes deu medo, vontade de desistir mas hoje sei o quanto é importante a gente acreditar, ter pessoas que acreditem na gente e nos incentivem.
    Ter você como padrinho é uma honra, orgulho e acima de tudo motivo de alegria.
    Só posso te desejar um milhão de vezes tudo de melhor para ti.
    Saibas que sinto muita sua falta nos meus blogs e até dos "puxões" de orelha também,rs.
    Eu também estou te acompanhando e nunca vou esquecer esse gesto de carinho e amizade.
    Sou eternamente grata a ti.
    Felicidades infinitas e muito sucesso em tudo que fazes e por ser esse amigo de todos.
    abração com carinho

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  15. Prezado Márcio, boa noite!
    Entro aqui como intrusa em sua página para dar uma espiadinha e adimirar suas novidades.
    Vejo que após um longo período você retoma a brincar e encantar com as letrinhas.
    Parabéns com o novo visual do blog e com a publicação deste belo livro!
    Uma linda noite para você!
    Lembranças
    Ange.

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  16. Lindo seu texto parabéns!! estou te segundo no blog bjosss

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  17. Oi! Lendo teu texto lembrei-me do meu avô, tive saudades.
    Li os outros textos, escreves muito bem, cada parágrafo existe uma leveza. Parabéns!
    Infelizmente não consegui te seguir, mas vou te colocar nos meus favoritos. Tenha uma semana abençoada!

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