terça-feira, 26 de junho de 2012

VALENTINA E A LUA NEGRA


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conto surreal


Valentina ouviu as vozes da consciência, e pensou ser o momento de retomar o controle de seus dias. Valentina, então, parou na esquina do destino e olhou para todos os lados. Olhou também para cima e para baixo, e não viu nada de novo além de seu rosto refletido na poça d’água. E Valentina entristeceu.

Seu porte de mulher altiva estava murcho naquele instante. Superar uma história que estava tatuada em seu seio era uma meta, e virar a página de um amor, o seu intento mais imediato. Conseguir tais feitos, no entanto, era algo que corroia seu coração e atiçava seu metabolismo.

Esquecer um amor. Seria possível? Transpor um rio repleto de crocodilos ferozes talvez fosse até mais fácil do que arrancar um sentimento que criara raízes tão profundas pelo corpo. Um amor que invadira cada célula de seus órgãos, sem sequer pedir licença, certamente não cederia assim, do dia para a noite.

Valentina procurava nos rostos que passavam naquela esquina um complemento para a angustia que sentia. Ela não era a única, não poderia ser. E Valentina chorou. Chorou sim, mas já nem sabia se por amor, por saudade, se por tesão ou, ainda, pela raiva que brotava de seus olhos combalidos. Ele não valia aquelas lágrimas, ela sabia disso, mas, mesmo assim, ela as derramava ao chão. A sujeira daquela viela era até mais digna daquele despejar de agonia, pois ao menos o chão a sustentava ali parada, sem cobrar nada, sem acusar, sem impor limites absurdos ou, ainda, sem castrar seus sentimentos.

Algumas pessoas invisíveis passavam por ela, munidas de pedras nas mãos. Valentina olhava diretamente para os olhos daquelas pessoas e via, unicamente, desprezo. Era aterrador saber que a castigariam por um crime que não quisera cometer. Crime? Sim, Valentina era criminosa. Cometera o crime de não se valorizar, de não se levantar diante da inescrupulosa mente dominadora de um homem que a queria sob sua tutela. Cometera o crime de amar sob qualquer circunstância, mais do que a ela própria.

Ao chão, uma coroa de espinhos roçava em seu tornozelo, e no retumbar das vozes, ela pensou ter escutado alguém proferir: “paga por teus pecados e carrega tua cruz”. Mais adiante, surgiu um edifício que se perdia para cima, e lá no alto, três cruzes esperavam seus condenados.

Valentina rodou o olhar, e reparou uma turba se amontoando ao seu redor. Ela, desesperada, pensou em correr, mas suas pernas estavam pesadas e não conseguiram mantê-la em pé. Caiu de joelhos e, sem esboçar reação alguma, foi encoberta por aquelas pessoas estranhas e desordeiras.

Em instantes, algumas pessoas levantaram Valentina no ar e a carregaram para o edifício que sustentava as três cruzes. Cantavam, gritavam e agitavam lenços vermelhos. Do horizonte, sem nuvem alguma, brotava uma lua negra, circundada de uma auréola branca e aparentemente fria. O ambiente foi tomado por uma corrente de ar espessa, como uma névoa densa e que vertia diretamente do corpo de Valentina ao ser carregado.

Valentina, no entanto, continuava exatamente no mesmo lugar, ainda de joelhos. O que aquelas pessoas carregavam então, se ela estava ali, sem sequer ter sido tocada?

Ao olhar novamente para aquele grupo, Valentina assustou-se. Não era ela, e sim um homem quase transparente e completamente desesperado. Era ele, seu amado. Ela, inquieta, levantou-se e tentou correr até ele, mas foi contida por uma barreira invisível que se formou em pleno ar. E assim, as pessoas se foram.

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Algum tempo depois, no alto daquele edifício, três homens ocupavam as três cruzes, e em cada uma delas, uma labareda brotava flamejante. Não havia, no entanto, arrependimento naqueles três homens. E sequer eram três homens. Era apenas um, ladeado por suas consciências, a boa e a má. Duas cruzes queimaram instantaneamente, enquanto a terceira, que estava a direita, permaneceu intacta. Não existia, nela, essência alguma. Não havia o que queimar, pois ela era vazia. Era a parte boa daquele homem.

Lá embaixo, as mãos de Valentina sangravam. Próximo a ela, um daqueles lenços vermelhos que as pessoas agitavam caiu suavemente, e serviu para que ela estancasse o sangramento em uma das mãos.

Valentina despertou pela manhã, apavorada. Um sonho, um terrível e cansativo pesadelo. Seus olhos, ainda receosos, percorreram todo o quarto. Tudo em seu devido lugar. No coração, uma sensação estranha de tranquilidade. Pensou naquele homem que ela tanto amou e que a fez sofrer, mas sequer lembrou de seu rosto. Não conseguia lembrar, por mais que se esforçasse.

Aquele pesadelo teria sido uma ferramenta para fazê-la exorcizar a amargura que sentia? Não desejava mal algum a ele, mas gostaria de esquecê-lo. E se o que sonhou a ajudou a retirar do coração aquele que tanto a fez sofrer, então que assim fosse.

Pela janela, o sol brincava com a cortina. Ela pensou em levantar e ir para a cozinha, mas ao se apoiar na cama, sentiu uma dor horrível na palma de uma das mãos. Olhou-as e viu alguns riscados na pele. Ao aproximar os olhos, reparou várias pontas de espinhos cravadas profundamente. Quando levantou o olhar e mirou a estante que ficava diante da cama, foi acometida por um sobressalto. Lá, jazia algo que a fez mergulhar novamente naquele pesadelo. Uma coroa de espinhos, parcialmente queimada. Ao lado, um lenço vermelho manchado de sangue.


MarcioJR

10 comentários:

  1. Nooooooooooossa, que espetáculo de conto,Márcio! De cair o queixo!! Lindo e instigante, Valentina coitada... E como ela, mesmo sendo surreal teu conto, há muitas... Adorei, como sempre! abração,lindo dia!chica

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  2. Um conto que prendeu minha atenção e que teve um desenlace de arrepiar.
    Não tenho esse dom teu e admiro quem o tenha.
    Estás de parabéns meu querido Marcio.
    Beijos com carinho.

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  3. Pobre alma vazia... que descanse em paz (ou queime no inferno - whatever!)

    Quanto a Valentina, tenho a mais absoluta certeza de que as feridas em suas mãos estão plenamente curadas e que a coroa de espinhos, por mais peculiar que possa parecer, hoje, serve de adorno ao móvel da sala. Nem todos entendem.

    Já as cicatrizes, bem..., elas ficaram. A parte boa é que servem de alerta a cada despertar de um pesadelo. Têm vezes que a vida real pode ser até mais assustadora.

    :o) / Beijitos!!!

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  4. Márcio, amigo querido, não diria que me surpreendi com a excelência deste texto, pois já conheço a sua competência para tal. Entretanto, surpreendeu-me sim o conteúdo e a forma admirável com que você deu dimensão real, ao sonho de Valentina. A mistura do onírico com os sonhos reais dos anseios e esperas dela, neste jogo de dormir e acordar ficou perfeito. A ficção e a realidade se fundem em harmonia e deixam o mistério tomar "corpo" ao longo do conto, tornando a leitura interessantíssima.

    Tenho muito prazer em ler seus textos, Márcio.
    Um grande e carinhoso abraço, meu amigo.
    Celêdian

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  5. Marcio,que história aterradora e o texto nos pega e não solta mais!...rss...muito a refletir e a sentir,gostei demais!Simbolismos bem interessantes tb!Obrigada pelo seu comentario tão divertido em meu blog!A Chica tb vai gostar!...rss...ah!já sarei da virose,obrigada!bjs e boa quarta!

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  6. Um amor de verdade, quando termina, sempre deixa cicatrizes...
    Bjs.

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  7. Amigo querido,

    O nosso inconsciente por vezes nos prega peças e imaginei neste teu conto uma viagem ao mais profundo Eu,por aquela mulher atormentada pelo desejo de esquecer um amor,pelo remorso por ter vivido um amor"proibido?",ou por um espírito desejando se punir...mas no final,como sempre, a surpresa:teria sido um sonho ou não?Mas como você mesmo afirmou tratar-se de um conto surreal,tudo é possível,até mesmo um passeio sonambulístico de sua heroína,conduzida pelo seu remorso.

    Seus contos nos prendem,Márcio e nos fazem pensar...refletir e meditar.

    PARABÉNS!!!

    Bjsssssss,
    Leninha

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  8. Aqui, o simbolismo se faz esteio, se faz suporte de toda a narrativa. Um paralelismo com uma outra crônica, já milenar e de cunho bíblico, também se faz patente. Porém, para Valentina, o acordar-se do vivido onírico revela-se catarse. Catarse salutar pois sarando as feridas da alma, traz a epifania, a revelação. E o relato se faz, aqui, parábola. E nos deixa uma lição edificante, a explicação simbólica para os conflitos mais calados que se passam nos labirintos de uma alma, de um espírito torturado pela indecisão, pelo sentimento de mártir. A compreensão, surgida com a manhã, e com o despertar de um sonho-pesadelo eivado de metáforas e de angústias, é redentora.

    "Vá dormir que a dor passa." Ou então, "o sono é o melhor conselheiro." A crônica bem poderia terminar no final do penúltimo parágrafo. E continuaria sendo lógica e clara. Os leitores ficariam satisfeitos com o desfecho, com a resignação de Valentina diante dos fatos de sua realidade. E o texto guardaria, além do literário, o seu conteúdo edificante.

    Porém, o meu amigo Marcio JR tem mais de uma corda no arco dele. Ou, como se diz por aqui onde moro, "ele tem mais de um boné". E, não satisfeito apenas com o belo relato literário (quase que psicológico) que nos legou, o autor decidiu repassar o desfecho de literatura fantástica que assaltou Valentina, à dimensão de seus leitores. E foi buscar no simbolismo da Lilith, esse lado misterioso – ou perverso, para alguns – do mítico feminino e sua semiótica, esse "anti-astro" que orbita no eixo loucura-instinto de cada ser humano, alguns indícios que nos deu para elucidarmos um tal mistério. E nos deixou uma batata quente nas mãos! *rs Como explicar, meu amigo, esse lenço embebido de sangue e esses espinhos encravados na mão de Valentina, essa transubstanciação ao se levantar da cama – como explicar?

    Teus escritos sempre me surpreenderão, meu amigo Marcio, tanto na linguagem como no assunto, no conteúdo e na originalidade. No entanto, por mais surpreendentes que possam parecer, é impossível de neles não reconhecer as impressões digitais de teu talento literário em cada linha, em cada frase, em cada palavra. Magistral, simplesmente!

    Meu irmão, essa minha falta de tempo anda cada vez mais egoísta, tenta me privar do deleite que me traz as letras de bons cronistas como tu. Todavia, continuarei inventando minutos e olhos e virei, sempre que puder, deliciar-me com essas tuas tão saborosas (e cada vez mais sábias) crônicas, com certeza.

    Tenha um belo dia, meu amigo, e que seja este, como sempre, muito inspirado. Bom fim de semana.

    Um forte abraço,
    André

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  9. Valente.
    Valentia?
    Valentina!

    Pouco importa o nome quando o que fica mesmo é a ess6encia. Uma história desembrulhada aos poucos, sem perder o rumo, apesar de tantos passos, ora amargos, ora mergulhados no próprio sentir, onde a mulher, aconchega um amor, apesar de todas as adversidades. Um sonho ora pesadelo, ora um ensinamento que a pega pelas mãos e decide enfim, direcionar teus olhos numa auto-reflexão.

    Dificil querido, tentar encontrar palavras para descrever essas nuances de sensações que senti à cada linha, à cada desenrolar dessa história que me fascinou. Instigante sempre teu jeito de nos envolver nas palavras. e Bem sei, há tantas valentinas e valentinos por esse mundo, não é mesmo?

    E, quem de nós nunca alimentou uma personagem dessa por dentro, inconsciente ou não?

    Uma pausa para reflexões também, é o que nos proporcionaste, Marcito!

    Beijo meu querido :)
    Sam.

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  10. Bela criatividade Marcio, voce com este dominio de palavras e historia cria passagens, que nos levam aos mais variados sentimentos.Confesso uma viagem ao caminhos do cristianismo em certa passagem do texto, apedrejei Madalena, vi a Via Crucis e como na ressureição.Incrivel não? Mas é sua capacidade de colocar o leitor no texto como se fosse sugado.Nisto está a arte de bem escrever meu amigo.Aplausos voce tem o DNA.
    Um abração de minha admiração.

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