quinta-feira, 31 de maio de 2012

A IMPORTÂNCIA DO AGORA E DO DEPOIS


dente de leão - by Google

A semente de dente de leão pousou lenta nas mãos da menina. Para ela, aquilo era a liberdade, poder voar como uma semente. Nascer da terra, transformar-se numa singela flor, virar semente e explodir para o mundo. Isso era importante.

Sentada no alto da montanha, ela observava o vale. O que havia naquele lugar que a prendia tanto? Casas simples, pessoas andando lentamente, alguns animais aqui e outros ali, o clima que não era quente e nem frio. Enfim, puro marasmo. Assim, ela levava a vida, contando cada minuto que passava e sonhando com o minuto seguinte. Viver seria somente isso? Ver a vida passar através de um caleidoscópio em preto e branco e sem a mínima perspectiva de colorir?

Ela olhou para trás e viu a estrada. Se seguisse por ela, iria de encontro à cidade grande. Lá sim a coisa era diferente. Agitação, pessoas que não paravam um minuto sequer. Grandes lojas, aparelhos eletrônicos em cada canto mostrando a modernidade, e a modernidade mostrando mais aparelhos eletrônicos que sequer seriam aproveitados, pois o imediatismo não deixava as pessoas se adaptarem a algo.

Na cidade grande, as pessoas eram “elétricas”. Elas se tatuavam, compravam cachorro-quente quando queriam, iam ao cinema, tinham TV à cabo, apareciam em outdoors, sonhavam sonhos diferentes de consumo a cada noite, saíam de madrugada... tinham a madrugada iluminada, com luzes fortes nos postes, para andar o quanto quisessem. Melhor. Não precisavam andar, pois tinham motos, carros, patinetes e táxis. Lá, na cidade grande, não existiam vacas ou cabritos pelas ruas.

Olhou novamente para o vale. De lá, veio o cheiro do doce de leite sendo preparado na única fabriqueta que empregava o povo do vilarejo. Possivelmente deveria ser algo em torno das quatro horas da tarde. Então, sua mãe estaria, neste exato momento, servindo o café da tarde. Pão de forma com geléia, café fresquinho, torresmo, bolo de fubá ou bolinhos de chuva. Chuva. Ela olhou para o alto e viu gotas de chuva encontrando seu rosto. Na cidade também chovia, e lá existiam lanchonetes e guarda-chuvas coloridos.

Na cidade grande existia tanta coisa diferente. Mas tudo tão artificial.

Uma lufada de vento bateu em seus pensamentos, e quando ela se deu conta, a semente de dente de leão escapou de sua mão. Ela levantou e correu atrás da semente, mas já era tarde. Ela voou alto e foi, justamente, na direção do vale. Não havia liberdade, afinal. Não para a semente, que a única coisa que fazia era voar ao sabor do vento. Ou, quem sabe, a semente tivesse algum acordo com a natureza, e ficasse sempre por ali, num lugar onde ela pudesse se plantar ao chão e brotar livremente. Então, ela era livre? Ficava ali por que queria isso? Na cidade, existe asfalto, e ela não brota no asfalto.

bolo de fubá - by Google
Outro dia terminou, e a menina não decidiu o grau de importância que aplicaria para seus minutos futuros. O que ela sabia, no entanto, é que naquele momento, sua semente estava plantada naquele vale, e isto era importante para ela. Correu atrás da semente, olhando-a ao longe, e sentiu-se livre, finalmente. Não entendia muito bem essa sensação momentânea, mas sequer deu atenção ao fato. Pensava, apenas, no pão com torresmo que encontraria na mesa do café. Não existia, por certo, pão com torresmo na cidade, isso ela sabia. Não aquele pão que sua mãe fazia.

Amanhã ela voltaria ao alto daquela montanha e pensaria na importância das coisas que poderia fazer nos outros “amanhãs”. Mas amanhã é amanhã, e esses minutos ainda estão no futuro. O importante é o “agora”, o presente, a vida real e imediata. O futuro deve ser programado com cautela e paciência, mas sem negligenciar o presente, pois se fizer tal coisa, possivelmente nem futuro a menina terá.


Marcio JR

17 comentários:

  1. Marcio, que leitura maravilhosa que acabo de fazer aqui!!!

    Me vi sentada com ela, olhando pro vale e "vendo" tudo de lá... Pena, a cidade é tão fria apesar de tanta gente...
    Lindo, lindo teu texto!!! ADOREI!! abração,tudo de bom e vamos viver bem, curtir cada minuto, aproveitando tudinho dela...chica

    ( E nossa amiga, Otília, tá sumida mesmo.Tô com saudades!)

    ResponderExcluir
  2. "Não havia liberdade, afinal. Não para a semente, que a única coisa que fazia era voar ao sabor do vento."

    Há algo de desconcertante e belo nessa narrativa. É isso que fazemos soltamos as palavras ao vento e elas nos atinge. Sim, apesar de toda a liberdade da escrita há o delírio de escrever, isso nos torna cativos, tanto para quem escreve quanto para quem lê.

    Poeticamente perfeito.

    Abraços,

    ResponderExcluir
  3. Que se escapem as sementes, mas que permaneçam os sonhos...
    (so close no matter how far...)

    Bjin!

    ResponderExcluir
  4. A cena que descreveste com tanta propriedade, meu querido Marcio, é-me por demais familiar. Dentes-de-leão, vales, montanhas, pão e café fresquinhos… falta-me, no entanto, apenas o bolo de fubá. Hélas... Mas, nem por isso, creio, deixei de entrar inteiramente em tua tão bela crônica. O paralelismo entre vida campestre, mais próxima aos valores da natureza, e a vida citadina, bem mais afastada desses, transparece de forma clara. Eu diria mesmo de forma gráfica. A menina se situa em um limiar geográfico onde, com um só golpe de vista, pode englobar a montanha e a estrada que leva à cidade.

    Outro paralelo: o do tempo. Os pesos relativos que podem assumir o futuro irreal (porque futuro) na realidade do presente. A importância que reveste certos confortos para nós, as delícias da boa cozinha, sadia, natural, a tranquilidade bucólica da vida nas montanhas, importâncias que contrastam sobremaneira com os parâmetros de conforto que temos na cidade. O eterno sereno da vida frugal, o efêmero das engenhocas que nos traz o stress indesejado e desnecessário.

    A menina não se decidiu. É natural: ela é ainda jovem, quiçá, muito jovem ainda. Almeja-se que seja escolha consciente, um dia. Talvez não aleatória, como o vôo e o pouso de uma semente de dente-de-leão. As chaves já foram dadas: cautela e paciência. Planejar a partir do presente, não do futuro que não existe ainda. E quando nele chegar, jamais esquecer que o futuro já será então o presente.

    Uma crônica enriquecedora, meu amigo, urdida com este equilíbrio de sabedoria e simplicidade que é o apanágio dos grandes escritores. Esta é uma dessas crônicas que ficam na memória do leitor, isso é certo. Assim como me fica sempre a saudade de uma fatiazinha de bolo de fubá….

    Brilhante, meu irmão! para mim, é sempre um prazer visitar tuas tão belas (e sábias) letras. Espero também que já estejas totalmente recuperado desse vírus que te acometeu. Minhas melhoras e o meu forte abraço.

    André

    ResponderExcluir
  5. Márcio fiquei encantada com o seu texto.Tão bem narrado como sempre!!! Tornei-me a personagem. Só que sou uma pessoa mais para cidade do qque para o campo... Amei..
    Beijinhos

    ResponderExcluir
  6. Amigo Márcio,

    Seu texto me fez voltar no tempo,a uma montanha que descortinava o infinito,a uma menina-moça-mulher com a cabeça repleta de sonhos e um dente de leão na mão...mágica montanha e mágicos momentos.

    Bjsssss,
    Leninha

    ResponderExcluir
  7. Dois aspectos importantes para a gente definir nossos planos seja de presente ou futuro, eu acho (e você contemporizou-os muito bem aqui): a particularização da realidade individual e a totalização da realidade vista do ângulo daquele (a) que idealiza. Fantástico, meu amito!

    PS: melhorou da virose? Desejo que sim.
    Abração e ótimo final de semana. paz e bem.

    ResponderExcluir
  8. Linda reflexão meu amigo!
    Espero que estejas melhor da dona gripe.
    Um ótimo fim de semana para ti.
    abração com carinho

    ResponderExcluir
  9. Visite também : www.duranteamadrugadadf.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
  10. A menina que sonhava alto queria o simples e poderia ser até impossível, mas queria mesmo era "crescer pra passarinho" e ter na liberdade a sua (c)asa, a sua estrada de acontecer no mundo e fazer o seu chão, como dente de leão que se semeia aos ventos, aos pensamentos que se levam em brisa leve.

    A menina sabia das forças que muitas vezes a faziam voltar, que a impediam de seguir adiante, mas nunca se esqueceu da maior das forças - a do sonho no peito. Da frescura dos olhos e das saudades que alagam um oceano no peito e mesmo assim, a ensinaram a navegar em águas, tantas vezes turbulentas.

    A menina, tem em si uma sina de riscar a terra por onde caminha com a ponta dos pés e como quem traça com giz uma linha na lousa, desenha uma ída, com partidas floridas e colorida de passos, por todo o percurso.

    A menina semeia a todos os ventos. Sim.


    Meu querido, fico aqui, navegando em tuas palavras, sem a pressa dos mundos afobados. Fico aqui, como quem se embala na rede e se aninha por entre os vão e são suas palavras, como abraços que nos cativam e nos aconchega... por dentro. E aqui, nada mais o que vem de fora, nos abala. Nada. É o meu lugar seguro.

    História mais linda.

    Amei.

    Beijos meu querido! Te adoro.

    Mil petelecos no nariz! rs
    Sam.

    ResponderExcluir
  11. Mesmo na calma do campo, com o cheirinho do pão e torresmo no ar, a mente divaga e a alma inquieta, pede decisões.independente de onde estamos sempre queremos mais... Como sempre excelente texto, Márcio.Envolvente.Me senti na pele da menina.Beijinhos, meu querido e bom domingo.

    Ps: seus comentários são verdadeiros poemas.Adoro!Será que um dia veremos poemas por aqui?rs

    ResponderExcluir
  12. Liberdade "é poder voar como o vento", aragem que paira incerta em todos os cantos, leva o frescor, transporta sementes e "voa" para outras paragens, sem que nada lhe limite o voo ou lhe pode as asas. Assim, o pensamento que norteia os sonhos da menina, que se deslumbra com a liberdade. Tanto ainda por descobrir, no próprio presente, no futuro que a aguarda e ela decerto descobrirá, o valor de todas as coisas, no momento certo, nem sempre com a mesma simplicidade que ainda tem no seu coração de criança, mas se ela tiver cautela e paciência, como bem você mostrou em sue texto, com toda certeza saberá ser livre.

    Meu querido Márcio, a sua sabedoria aliada à sua doçura, fazem de você este grande escritor, que nos presenteia com textos tão belos assim.
    Um abraço afetuoso, meu amigo.
    Celêdian

    ResponderExcluir
  13. Voltei pra agradecer o carinho e desejar uma linda semana,abração,chica

    ResponderExcluir
  14. Marcio,um texto sensivel,com linda msg!Vc extrapola em talento,eu adorei!Bjs e boa semana!

    ResponderExcluir
  15. Que belo texto, consegue deixar quem lê viajar em suas palavras.
    Parabéns.
    Bjs

    ResponderExcluir
  16. Uma cronica perfeita Marcio para nos levar a uma viagem e reflexão sobre o que pesa na vida.Viajei pelas montanhas e vales visualizando as sementes de Dente de leão e me deliciei com as guloseimas simples e boas,que mãos simples tão bem fazem,onde cada cheiro é bem definido.Uma reflexão cabe no sentido de saber buscar nas coisas simples o que nos revela e prepara para um viver mais proximo de nossos sonhos.
    Um abração amigo.

    ResponderExcluir