sábado, 10 de março de 2012

RE-ENCONTRANDO AS ORIGENS

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O quarto sufocava. Por mais que tentasse fechar os olhos, eles insistiam em permanecer abertos. O sono não vinha, e durante anos ela ficou assim, numa insônia torturante. Lá fora, a lua era convidativa, principalmente quando se juntava com a lufada de ar fresco da madrugada. O luar permitia ver o imenso gramado e as árvores, que mesmo com a penumbra batendo sob suas copas, não pareciam assustadoras como nos filmes de terror. Um pouco mais distante, a ponte e a saudade. O riacho fazia barulho, um barulho corrente e borbulhante. Ela encostou a cabeça na soleira da janela e, aos poucos, adormeceu.

Seu corpo transportou a saudade do peito para o gramado, e mesmo dormindo, se viu lá, solta na luz do luar. Descalça, sentiu nos pés a maciez rude da grama recém aparada. Seus pés, de pele fina, sentiram a necessidade de tocar mais vezes o chão, não pela tentativa de engrossar mais a pele, mas sim pela enorme energia contida em seu corpo e que precisava ser descarregada. Suas mãos eram alvas e, estranhamente, pequenas. Ela estava pequena. Ela estava criança, adolescente. Uma linda e tímida adolescente de uns 16 anos de idade.

música: Reflections of My Lyfe (The Marmalade) - by YouTube

Silvos curtos chegaram aos seus ouvidos. Cigarras. No entanto, não eram cigarras da madrugada, e sim daquelas que se escuta durante o dia. Estranhou aquilo, mas pouco importava, pois não passava de um sonho, e ali, naquele devaneio, tudo poderia acontecer. As árvores balançaram, exatamente como ela via acontecer em sua infância, e ela foi até lá, até o lugar onde costumava passar várias horas de seu dia quando mais nova.

Caminhou lentamente, deixando a grama e o orvalho umedecerem seus sentimentos. A saudade doía muito, a embargava, e ao se aproximar da figueira, sentiu um aperto enorme no coração. Estava ao lado da ponte, e um medo imenso estampou seus olhos. Não queria olhar para o outro lado da ponte, mas precisava, sabia disso. Sabia que suas origens estavam lá, esperando por ela, cobrando pelo esquecimento e pelo abandono.

Sua natureza pobre nunca a assustou. Cresceu ali e pouco conhecia de outros lugares ou de outras culturas. Era órfã de sentimentos em sua caminhada pela vida, pois tudo o que conheceu e quis estava bem ali, do outro lado daquele riacho, que em outros tempos foi um belo e vívido ribeirão de ilusões. Levantou a cabeça e forçou os olhos. Alguém estava lá, chamando-a para o outro lado.

Sua mente deu mil voltas. Sentimentos brotaram e a angustiaram. Seria ele? Estaria lá aquele que a fez sonhar e se apaixonar, para depois abandoná-la naquele lugar distante? Aquele mesmo que a entregou à sorte da saudade? Ela o amava, sempre amou, e o que restava agora era o sentimento de falta. Tantos anos esperando sua volta, sua mão, seu sorriso.

A surpresa foi maior do que aquela que ela imaginava. Não era ele, e sim, ela mesma, chamando-a. Sem pestanejar, ela pisou a ponte e caminhou. Estranha sensação. Depois que ele partiu, ela nunca mais cruzou a ponte. Talvez por medo, ou quem sabe uma negação do passado. Mas agora não. Ela caminhava sozinha, sem saber direito o que buscava.

Do outro lado, ela mesma a esperava. Mais adiante, ele repousava sob alguns arbustos, dormindo. Ela ficou parada, admirando-o. Ele estava jovem também. Mas, que loucura era aquela? Por que ele estava ali, dormindo ao relento? O sonho virara pesadelo?

Remexeu as entranhas da memória e relembrou do dia em que ele se fora. Na noite anterior, teriam um encontro, mas ela se amedrontou diante da timidez e da falta de coragem em assumir seus sentimentos mais íntimos. Ela o amava e desejava, e ele a amava silenciosamente, respeitando-a em seus temores. Naquela noite, justamente naquela em que ela poderia fazê-lo ficar e mudar toda uma história, ela se acovardou e fugiu. Ele dormira ali, exatamente como fazia agora.

No dia seguinte, ele partiu, juntamente com a família. Partiram para outra vida, para outra existência. Um acidente na rodovia os fez de vítimas, e ninguém sobreviveu.

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Quem sabe se ela suprimisse o medo e o tocasse, ele acordaria e desistiria de partir, mas era somente um sonho, um sonho do qual ela não queria acordar. Um sonho onde ela poderia tê-lo e protegê-lo, nem que somente diante dos olhos e sem tocá-lo. Mas ela o tinha perto.

Estranhamente, depois de vários anos, ela conseguia sonhar novamente. Buscou tanto isso, vê-lo mais um dia, mais um instante, um mero instante.

Estava decidida, ficaria ali, naquele mundo novo que se apresentou a ela. Um mundo onde, por mais que a saudade doesse, ela tinha algo que tanto buscava, seu primeiro, único e verdadeiro amor.

Jamais acordou. Sua vida, agora, está na essência de um amor do qual ela fugiu. Seu semblante, para quem a olha deitada naquela cama, é sereno e terno. Mas, o que ninguém imagina, é que ela se recusa a despertar. Está lá, zelando pelo sono eterno de alguém que ama.




Marcio JR


17 comentários:

  1. E das tantas águas pasadas que se retornam por debaixo da mesma ponte, a menina sabe que os dias são ciclos e círculos vestidos de sol e lua e que mesclam as saudades como quem se deita pra adormecê-la na realidade breve dos fatos.
    O sonho é um meio guardado de se fazer real, por aquele vão de dedos onde o perfume dos cabelos ficaram dormidos e foram registros enternecidos, envelhecidos e amarelados dos tempos que a menina nunca há de se esquecer.
    Porque o retorno é uma certeza incontestável, é uma partida breve das distâncias que ficaram pelo caminho.
    É sim aquela partida, a compreensão sustentável mania de manter nos olhos, os passos de volta e das mesmas partidas, voltas sem ídas.

    A menina sabe e mais, sente: A ESPERAnça vem mesmo do verbo esperar.

    Que lindeza isso, meu querido.
    Uma inspiração preciosa, uma história que nos prende, nos compreende, nos preenche do ínicio ao fim, mas...
    Será que toda história tem um fim?

    Por fim, só me resta aplaudí-lo e confessar: Você é um Mussssttttttt Marcitchooooooooo!!!!

    Só poderia ser você, mesmo! ô talento! ;)

    Beijo na alma, meu querido.

    Você me cativa o coração, sempre!

    Sam.

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  2. Nooooooooooooooooooooossa!!Arrasaste e me fizeste arrepiar de emoção.

    Que lindo,Marcio!!! Um amor que finalmente acontece, ainda que assim...

    Quando falta a coragem em vida, isso acontece! abração,chica e tuuuuuuuuuudo de bom!

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  3. Ôloco véi!! .. rss

    Gonócio emocionativo... né? Parabens!!

    Abração do Xipan
    Tatto

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  4. Venho deixar um abraço imenso e retribuir o carinho, seja por tantos anos, ou por alguns dias. Mas principalmente, pela troca e bonitezas que surgem e dos amigos que conquistamos e que no fundo, no fundo, não são tão virtuais assim...

    Tem um presente pra você aqui: http://samarabassi.blogspot.com/2012/03/vasto-coracao.html

    Espero que se sinta num abraço e que goste.
    Deixo o meu carinho,
    Sam.

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  5. Meu querido amigo Márcio,

    fiquei aqui pasma e absorta acompanhando cada passo da sua esplêndida história e até o desenlace, pareceu-me quase que "concretamente" estar vivenciando o sonho da personagem, por tão minuciosamente bem tratada, transcorreu a sua narrativa.

    É um texto para ler e reler e captar todas as nuances de uma trama de cunho psicológico altamente complexa ("Não era ele, e sim, ela mesma, chamando-a..." "Do outro lado, ela mesma a esperava.") , mas que quer aparente e despretensiosamente parecer a simples dor de uma saudade. A causalidade de um tempo de insônia, seguida do tempo de adormecer e não mais querer despertar, para que no sono se faça eterno um sonho, o mesmo que a deixou desperta por tanto tempo, pois não foi capaz de apalpá-lo na realidade. Tantos sentimentos se misturaram na cabeça dela, que você brilhantemente soube explorar na versão de um sonho. Fantástico, fantástico!

    Sempre um prazer enorme desfrutar do que você escreve, meu querido Márcio.
    Um abraço com carinho.
    Celêdian

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  6. Maninho, que impressionante esse texto.
    Tua narrativa tão bem criada, e bordada aqui com preciosidade.
    Um conto de amor que pelo visto teve um trauma grande. Ela se fechou num casulo, num sonho, ou precisou sonhar para confortar a alma e se deixou ficar.Ela resolveu então morar dentro do sonho por dor, ou amor.Senti certa tristeza no correr da estória.

    Você é um escritor maravilhoso querido, muito bom te ler.Adorei!

    PS: maninho a resposta a tua pergunta.Vim para Manaus está com duas semanas.Ganhei uma bolsa para concluir meu projeto.Fiquei fascinada era tudo que eu queria nesse quesito, e não hesitei vir.Meus pais ficaram um pouco pé atrás, Felipe não queria de jeito algum.Risos... Meu pai veio comigo e depois que eu já estava instalada voltou.E Felipe ainda não ficou satisfeito,rsrsr. Mas enfim é algo que era preciso ser feito.
    Vou ficar um ano, vou em casa quando poder ir.Mas será por pouco tempo né?Então tudo bem.

    Beijão meu escritor favorito.

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  7. Nossa! Meio triste mais encantadora!
    A sua narração ficou perfeita prendeu minha atenção do início ao fim...

    Boa Semana para vc Márcio, tudo de bom..
    Abrços

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  8. Nossa,de tirar o fôlego!Li num repente,tamanho o envolvimento com esse conto fantástico!Gostei demais e tb da musica!Bonita escolha!Bjs e boa semana pra vc!

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  9. Viver apesar de tudo, e ser feliz, mesmo que seja apenas em sonho...

    Me emociono sempre com a delicadeza com que compõe cada detalhe dos lugares das suas histórias e o carinho com que trata seus personagens.Seu conto é fabuloso, Márcio.Parecia que eu estava lá também...

    Beijinho.

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  10. Marcio,vim reler o seu conto e dizer que fiquei feliz que gostou da entrevista!Sempre fico apreensiva antes de postar,pois a pessoa pode não gostar de alguma imagem ou comentario,mas vc aumentou a visitação no meu bloguinho,obrigada!...rss...bjs e bom domingo!

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  11. Tens uma maneira toda própria de escrever, mesmo qnd o momento do teu texto é triste, existe uma leveza. Parabéns! Tenha um lindo início de semana. Bjs

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  12. Marcio li sua entrevista lá na querida Anne e fiquei curiosa em te conhecer, aqui chegando encontrei uma casa na Net decorada com belos textos, li os últimos três e não sei escolher o melhor, agora por acaso bem este último tocou-me fundo, que lindo Marcio, sabe eu estava pensando que ela havia desencarnado, mas parece que não, apenas adormecida recusando-se a retornar, nossa um amor que a faz rejeitar a vida, parabéns beijos Luconi

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  13. Maninho, minha autorização sempre para ti. Você é meu maninho querido, e sei que sempre estará pensando no meu bem. E com esse coração de anjo, que bate dentro do teu peito então, digo sempre sim.
    Amei teu comentário, como sempre bem dentro do quesito srrssr.
    Estou com saudades, mas ando tão cansadinha... Sempre me preparo para as visitas, mas quando começo a visitar consigo visitar poucas pessoas, e apago rsrsr. Ando precisando dormir mais .Desculpa a minha ausência tá?
    Sabes bem que moras no meu coração.

    Beijão

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  14. Bom dia Márcio, conheci seu espaço pela entrevista na Anne, parabéns, já te sigo.

    http://ventosnaprimavera.blogspot.com

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  15. Olá, estou com um blog novo e gostaria de ajuda sua e de todos.

    poderia seguir o blog?
    http://drcirosantos.blogspot.com.br/
    Obrigado

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  16. Marcio, passando para reler seu texto,agradecer sua visita e saber como está!bjs e bom final de semana!

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  17. Muito lindo seu conto Márcio. Envolvente. Sabe usar as palavras como ninguém! Adorei! Beijos!

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