domingo, 26 de fevereiro de 2012

CÃO PANTANEIRO

image by Google

A tarde acabava de forma preguiçosa, com o sol se pondo lento a oeste. Adiante, uma imensidão de água, onde os raios solares refletiam naquele espelho fantástico e faziam com que tudo se tornasse mágico. Era um presente de Deus para aqueles que se arriscavam a desbravar aqueles confins do Pantanal Matogrossense.

Na casa, tudo estava quieto, mas eles, os seres humanos, logo chegariam para descansar. No local, somente a patroa corria de um lado para outro, afoita pela lida diária e o preparo do jantar. Mas era silenciosa e não incomodava. O cão ficava ali, apenas observando. Quando era mais novo, ia para o alagado e ajudava no manuseio da boiada, mas agora estava velho, e aproveitava as regalias que esta condição lhe dava. Assim ficava, deitado à porta e observando as águas mansas daquele imenso rio em que tanto nadou e brincou.

Alguns latidos se fizeram ouvir, e o cão sabia que a matilha estava se aproximando, trazendo com eles o patrão e os empregados. Entre eles, vinham os filhos do patrão, hoje peões trabalhadores e de muita estima, mas que ele viu crescer e cuidou com uma fidelidade que apenas os cachorros têm em relação ao ser humano. Mesmo de longe, ele já escutava, também, o trotar dos cavalos e a algazarra da “peonada”. Vinham felizes e bradando, quase cantando. Era como se mais um dia fosse vencido naquela dureza que se vivia naqueles confins.

Logo, chegavam e se dispersavam. Quem era da casa, ia se ajeitar para o jantar, e os demais, que eram empregados, partiam para os alojamentos. Lá, tinham o necessário para viver, e assim como o cão, aguardavam a vez para se alimentar. A demora era pouca, e alimento não faltava. Nesse meio tempo, o cão se afastava da casa e ia até as cocheiras. Por mais de uma década fez isso. Ia até lá e cuidava para que nenhum cavalo ou mula se afastasse, principalmente as bardosas, que insistiam em não aceitar muito bem o trato dos peões. Depois, lentamente, voltava para a porta da cozinha e esperava seu trato. Mancava um pouco de uma das patas traseiras, e isso irritava o patrão, que o achava inútil. Por vezes, o patrão pensou em sacrificá-lo, mas era contido por um sentimento de dívida. Aquele cão salvara seu filho mais velho quando um touro brabo disparou e tentou chifrá-lo. O cão, em sua fidelidade, atacou ferozmente e conteve o touro, mas sofreu as consequências e por muito pouco não perdeu a pata traseira ou até mesmo a vida. Nunca mais foi o mesmo.

Depois do jantar, a família da casa grande se reunia na sala e ligava o velho rádio. Era um rádio antigo, em forma de capela, onde o patrão buscava notícias sobre o que acontecia em regiões mais distantes. Mas havia algo que encantava o cão. Era uma coisa que chamavam de música, e tocava vez ou outra. O cão, quando escutava aquilo, colava o focinho ao chão e fechava os olhos, deixando-se hipnotizar. Sem saber, ele sentia saudades. Saudades de tempos passados, onde ele era forte, lépido e tinha serventia. Desde muito novo acostumou-se a ficar ali, ouvindo aquele rádio depois do jantar. Adorava aquilo e quase dormia quando isso acontecia.

Algum tempo depois, uma ferida grande apareceu na coxa esquerda do cão, exatamente onde o touro o acertara. Por mais que os filhos do patrão tentassem tratar, não tinha jeito. A ferida apurava e tomava o corpo do cachorro. Veterinário não existia por perto, e os remédios caseiros já não serviam mais. Então, o patrão decretou. Seria sacrificado.

A patroa chorou, e os peões, que testemunharam a bravura do animal contra o touro, se recusaram a fazer o determinado. Respeitavam o cão como se fosse um deles, e jamais matariam aquele animal. Os filhos do patrão imploraram ao pai que deixasse o animal tentar se curar sozinho, ou que o tempo se encarregasse daquele fatídico ato, mas ele estava irresoluto. Não arredava pé da decisão que tomara.

Frente a isso, como ninguém se propunha a sacrificar o animal, o patrão mesmo encarregou-se de tal coisa. Colocou o cachorro no carroção e foi para a mata, afastando-se de todos, pois ninguém queria presenciar a cena. Seria mais fácil dessa maneira.

Repousou o animal sob a sombra de uma árvore e engatilhou a espingarda, mirando o meio da cabeça, mas seus dedos tremeram na hora de puxar o gatilho. O cão olhava diretamente para seus olhos, e aquilo o fez parar. Não conseguiria fazer aquilo, e sentia culpa por não ter tratado dignamente daquele que colocou a própria vida em risco para salvar alguém, ou no caso, o próprio filho do patrão.

Porém, era preciso. O animal estava sofrendo, ele sabia disso. A dor da ferida devia ser insuportável, e não havia meio de fazê-la regredir. Apontou novamente a espingarda para a cabeça do cachorro e preparou-se para atirar. O cão, calmamente, levantou-se  de onde estava e veio se deitar mais próximo. Olhou para o patrão com serenidade e colou o focinho ao chão, como se o velho rádio estivesse ali, tocando aquelas músicas que tanto lhe traziam saudades. Fechou os olhos e, estranhamente, soltou um grunhido. Parecia aceitar o que aquele homem estava por fazer. Era como se soubesse que seu caminho acabava ali e que a morte era sua única opção. Naquele instante, o patrão pensou ter perdido a sanidade, pois jurou que uma lágrima escorrera dos olhos do animal. E o patrão chorou também.

Na fazenda, todos pararam o que faziam e esperaram. Pouco tempo depois, um tiro de espingarda ecoou pela mata, e foi acompanhado de um uivo esganiçado do cão. A passarada saiu em revoada, e aquele instante colocou lágrimas nos olhos de homens que jamais imaginaram que pudessem chorar. Estava feito.

Uma hora depois, o carroção apontou na porteira. Era o patrão voltando. Ele acenava para a patroa e para os filhos, e ao chegar mais próximo da casa, ordenou que trouxessem cobertores e água quente. Na carroça, no meio de um volume de capim verde, o cão estava estirado. Não estava morto, pelo contrário, estava bem vivo, mas com a pata traseira e a coxa completamente queimadas.

O patrão, sem conseguir sacrificar o animal, tentou um último recurso. Jogou pólvora sobre a ferida e, como não tinha como acender, atirou numa pedra para provocar faísca. Pensava, dessa maneira, esterilizar ou limpar de vez a ferida, porém acabou deixando tudo em carne viva. O cão uivava de dor, mas não estava indócil. Os peões pegaram o cão e carregaram-no para o estábulo, fazendo o que estava ao alcance deles. Afrente, o filho mais velho do patrão comandava tudo, e mais atrás, vinha o patrão, deixando a mostra a camisa encoberta pelo sangue do cachorro.

rádio capela - by Google
Hoje, quem chega na fazenda, é recebido pelos cães numa algazarra tremenda. O velho cão não está mais lá, deitado na porta da cozinha, mas ainda está presente na memória de todos e num retrato num canto da sala. Nesse retrato, ele aparece deitado aos pés do patrão, que depois de tudo, tratou dele por mais cinco anos. O cão perdeu a pata traseira e parte da coxa, mas valente como era, resistiu e ganhou ainda mais o respeito daquele homem rústico e que não gostava de demonstrar sentimentos.

Perto da porteira, uma árvore enorme faz sombra para um cercado pequeno de madeira. Lá, descansa o cão em seu último refúgio. Ao lado, um presente do patrão. O velho rádio capela, que tocava as músicas que o cão tanto gostava.



Marcio JR


20 comentários:

  1. Márcio...Nem preciso dizer que me debulhei aqui... Lindo, emocionante e tão cheio de sentimentos verdadeiros:amor, respeito e gratidão..
    Adorei, parabéns!!!

    abração,chica

    ResponderExcluir
  2. Somos nós, animais na nossa pretenssão, ilusão falsa de nos acharmos superiores, de dominarmoas nossa face de terra, seja na casa, no nosso quintal, no subordinar aqueles que nos rodeiam, de alguima forma. Que a sensibilidade seja ainda uma arma poderosa, e branca no incentivo de respeito igualitãrio à vida, esteja ela em qualquer ser.Bem como o respeito natural da morte, quando ela cursa seu caminho previsto, sem intervirmos com base na crueldade das nossas ganâncias de sempre querer lucrar com o que o próximo ainda pode nos oferecer, alimentando nossas próprias futilidades mesquinhas.
    Que não nos elevamos como ríspidos e oriundos seres, na intençao de fazer do próximo, simples objeto incumbido à disposição e quando não mais servir, ser lodo e lama, ser rastro, ser devastado pela ignorância dos olhos daqueles que não nos enxergam além daquilo que puderam um dia, lucrar conosco.

    Aiiii Márcitcho, fui lendo e que coisa, foram entando ciscos nos meus olhos que acabou por eu não conseguir ver mais nada de tão embaçada vista a minha srrs.

    Me emocionou cada linha e sinceramente, que vontade que deu uma hora de pegar essa espingarda e mudar o alvo... pra testa do patrão hein! rsrs

    Quem entende o que um olhar de bicho quer dizer, sente Deus mais facilmente.

    Lindo, lindo.
    Meu beijo, querido.
    Sam

    ResponderExcluir
  3. Maninho, não consegui ler seu texto lindo.
    Venho amanhã mais calma lê-lo.
    Hoje quero só agradecer esse colo, que sempre vem de você quando eu preciso.
    Estou triste demais hoje.

    Beijokas.

    ResponderExcluir
  4. Meu Deus! Maninho como faz isso comigo?Estou chorando do começo ao fim desse texto!
    Bom dia Marcio.Ontem não havia jeito de comentar.
    É um conto muito belo, a gratidão, a lealdade, faz uma mistura tão linda no amor.

    Os animais são seres vivos, e sentem dores, tristezas, e quem disse que não sentem lembranças?
    Será que são tão irracionais assim?

    Tive um cão chamado Felicidade e ele era meu companheirão nas ruas.Um dia o carro o matou, e eu fiquei completamente desolada.
    Me comoveu muito te ler.
    Você tem o dom da escrita, é um sábio e eu admiro muito você, além de amar.

    Maninho obrigada pelo carinho.
    Sinto tua falta, mas sei que estais atarefado assim como todos nós.Mas achamos ainda, um fio de tempo para não enferrujar o carinho por escrever.

    Estou aqui esperando o mestre, que já é costume o atraso rsrsr.

    Te deixo um beijão e fica com Deus.

    ResponderExcluir
  5. Tá certo!!! amigo Marcio..

    Não é pusquê existe pessoinhas rusticas, que elas precisem ser desprovidas de sentimentos... nénão? Bela história... Conheço umas tantas assim, só não sabo contar da forma espetacular cocê faz... rss

    Abraços
    Tatto/Xipan

    ResponderExcluir
  6. Triste e leva á reflexão.
    Emocionante do começo ao fim Márcio.
    Uma ótima semana para ti.
    abração e obrigado pelas visitas.

    ResponderExcluir
  7. Não deu pra não chorar!Eu adoro cães!Triste e linda demais sua história,Marcio!Quero tb agradecer de coração o seu gentil comentario lá no Recanto!Vc é um blogueiro generoso!Bjs,

    ResponderExcluir
  8. Emocionante. Primeiramente me chamou atençao pelo Pantaneiro, (moro no Pantanal).Amo cachorros, não deu para não chorar!
    Beijos!

    ResponderExcluir
  9. Obrigado pelo carinhoso comentário lá no BAÚ você captou bem o que tento passar com meus personagens é mais ou menos isso que disse numa tirinha herois para um Tempo Bicudo vivemos num mundo onde a violência está se tornando banal, nos telejornais de minha cidade quando se fala das Estatísticas de mortes nas cidades da região vem sempre a explicação que "a maioria dos casos estão ligada ao tráfico de drogas" praticamente dizendo é coisa do tráfico então não podemos fazer nada.
    Falei sobre isso num dos meus escritos O MUNDO ESTÁ PERDENDO A GRAÇA.
    Mas voltando para cá Cão Pantaneiro mais um conto comovente que nos deixa com o coração embargado não tem como não chorar lembrei de meus tempos num sitio no interior do Paraná meu pai tinha uns 12 cães de caça infelismente quando algum deles ficava louco tinha que ser sacrificado. Parabens sempre seus Contos contem sempre muita verdade! Um abraço e tudo de bom em tudo e sempre.

    ResponderExcluir
  10. À medida que fui lendo o texto fui recordando da minha infânica quando ia passar férias na casa do meu avô, na roça. Os delalhes, o homem rústico que parecia meu avô,com seu cão que andava sempre ao seu lado, todo o cenário fez-me recordar e sentir uma saudade imensa daquele tempo. Meu avô não é mais vivo e sua roça não existe mais...Adorei Márcio uma história linda e comovente.. show.. bjss

    ResponderExcluir
  11. Boa tarde, Marcio. Sinceramente afirmo, que nem todos os textos conseguem prender tanto a minha atenção e me emocionar.
    Você certamente conseguiu.
    Eu amo cachorro, mas não os de raça violenta, não me arrisco, de modo algum, no entanto, o que você descreveu foi um cão com uma alma linda, instinto salvador, e uma inteligência e amor sem igual.
    Eu também não iria conseguir sacrificar o cão herói, não somente por este fato, mas deu para compreender o sentimento das pessoas, e o respeito nutrido pelo animal.
    Com certeza, esse cão era guerreiro, e ainda viveu mais cinco anos mesmo nas suas condições.
    Ele recebeu um presente muito lindo que é o símbolo da música, e deve estar no céu dos cães a ouvir as músicas que vinham do velho rádio.
    Parabéns!
    Um beijo na alma, e fique na paz!

    ResponderExcluir
  12. Olá Márcio
    Uma história muito bonita e comovedora.
    Tenho aqui em casa cães e gatos que nunca fizeram dessas proezas, mas ainda assim são tratados com carinho.
    Penso que a maioria das crianças deveria ser habituada a viver e a tratar destes animais para os compreender e respeitar.

    ResponderExcluir
  13. Risos...

    Maninho, pensei forte então escrevi o texto de agora.
    Eu tenho amigos tão queridos.
    Realmente o que tiver de ser será. A tia Otilia é sempre muito amorosa quando fala comigo, eu a adoro. É como se já a conhecesse há muito tempo acredita?
    Você não vai parar coisa nenhuma, somos sensíveis uai!Por isso o mar nos olhos rsrsr.
    E chorar é bom pra pele” rsrsrs.
    Somos mesmo aprendizes maninho e o bom é que sempre seremos. Mas acho que crescer é dorido algumas vezes, por isso vou crescer devagarzinho.
    Estou fazendo o que não pude quando era menina rsrsr pipoca, chocolate quente, banho de chuva.Bom mas isso tem seu momento, porque agora ando numa fria com meu relatório sobre sapos rsrsrs.
    Vim agradecer o carinho e dizer que valeu meu precioso.

    Adoro você!Beijokas maninho.

    ResponderExcluir
  14. Meu querido amigo, estou chorando...
    Visualizei cada pedacinho da história, e na hora do barulho do tiro, deu uma dor no peito.
    Depois fiquei aliviada em saber que o patrão não conseguiu fazer o que pretendia.

    Mas o rádio, perto de onde o cachorro foi enterrado, foi um final emocionante demais.
    Você escreve lindamente, amo!!

    Beijos com carinho.

    E.T. Leia essa postagem que fiz, falo de você nela.
    http://majoli-rabiscosdaalma.blogspot.com/2012/02/amigos-e-nuvens.html

    ResponderExcluir
  15. História linda, Márcio, que me emocionou muito.

    Os animais tem esse dom de despertar em nós os bons sentimentos que as vezes nem sabemos que somos capazes de sentir... Eles merecem todo nosso carinho, cuidado e respeito.

    Eu me lembro de quando meu irmão trouxe uma gatinha branca bb para casa.Nunca tivemos bicho nenhum e meus pais entraram em pânico.Como vamos cuidar de um gato? Eu não vou querer gato dentro de casa!!! Bem, cada um dos filhos fez o que pode para acomodar a gatinha bb no quintal.Compramos comida, remédio para pulga, casinha, areia... Dois dias depois, chegando da escola, encontrei a "Tina" (o nome dela) dormindo enroladinha em cima da minha cama.Tão pequenina e como estava muito frio, arrumei um cobertor e coloquei sobre ela.Depois disso ela nunca mais ficou no quintal separada da família.Onde estávamos ela estava também.Até que 15 anos depois ela se foi, mas nunca mais ficamos sem ter animais em casa.É uma alegria tê-los por perto.


    Beijinhos, querido.

    ResponderExcluir
  16. Olá maninho.
    Você como sempre sendo meu anjinho da guarda.
    É muito bom saber que tenho alguém tão querido assim por "perto".
    Você mora no meu coração Marcio.
    Obrigada por tanto carinho.

    Um beijo maninho do meu coração.

    ResponderExcluir
  17. Oi Marcio!Esse cão pantaneiro foi passear no meu Recanto hoje!Bjs e boa semana!

    ResponderExcluir
  18. Marcio,hoje vim reler esse cão pantaneiro e agradecer por permitir que eu postasse seu conto em meu bloguinho!Fiquei feliz que gostou e os leitores,mais ainda!Obrigada de coraçào pela sua gentileza sempre!Bjs e que a semana seja mais light pra vc!

    ResponderExcluir
  19. Olá maninho.
    Vim deixar um beijão.
    E então, como vão os estudos moço?
    Maninho estou em Manus agora, vou ficarum ano por aqui.Depois te conto tá?
    Beijokas.

    ResponderExcluir
  20. Belíssima e emocionante história onde o amor verdadeiro demove a frieza dos sentimentos humanos, muitas vezes camuflados na "crueza" deles, por tantas contingências a que se submete o homem. Cães são amigos fiéis, mesmo em detrimento da racionalidade, são capazes de demonstrar, ao modo deles, a extrema sensibilidade, que tantas vezes o próprio homem ignora.
    Lindo texto, meu amigo.
    Um grande abraço, Márcio.
    Celêdian

    ResponderExcluir