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A tarde acabava de forma preguiçosa, com o sol se pondo lento a oeste. Adiante, uma imensidão de água, onde os raios solares refletiam naquele espelho fantástico e faziam com que tudo se tornasse mágico. Era um presente de Deus para aqueles que se arriscavam a desbravar aqueles confins do Pantanal Matogrossense.
Na casa, tudo estava quieto, mas eles, os seres humanos, logo chegariam para descansar. No local, somente a patroa corria de um lado para outro, afoita pela lida diária e o preparo do jantar. Mas era silenciosa e não incomodava. O cão ficava ali, apenas observando. Quando era mais novo, ia para o alagado e ajudava no manuseio da boiada, mas agora estava velho, e aproveitava as regalias que esta condição lhe dava. Assim ficava, deitado à porta e observando as águas mansas daquele imenso rio em que tanto nadou e brincou.
Alguns latidos se fizeram ouvir, e o cão sabia que a matilha estava se aproximando, trazendo com eles o patrão e os empregados. Entre eles, vinham os filhos do patrão, hoje peões trabalhadores e de muita estima, mas que ele viu crescer e cuidou com uma fidelidade que apenas os cachorros têm em relação ao ser humano. Mesmo de longe, ele já escutava, também, o trotar dos cavalos e a algazarra da “peonada”. Vinham felizes e bradando, quase cantando. Era como se mais um dia fosse vencido naquela dureza que se vivia naqueles confins.
Logo, chegavam e se dispersavam. Quem era da casa, ia se ajeitar para o jantar, e os demais, que eram empregados, partiam para os alojamentos. Lá, tinham o necessário para viver, e assim como o cão, aguardavam a vez para se alimentar. A demora era pouca, e alimento não faltava. Nesse meio tempo, o cão se afastava da casa e ia até as cocheiras. Por mais de uma década fez isso. Ia até lá e cuidava para que nenhum cavalo ou mula se afastasse, principalmente as bardosas, que insistiam em não aceitar muito bem o trato dos peões. Depois, lentamente, voltava para a porta da cozinha e esperava seu trato. Mancava um pouco de uma das patas traseiras, e isso irritava o patrão, que o achava inútil. Por vezes, o patrão pensou em sacrificá-lo, mas era contido por um sentimento de dívida. Aquele cão salvara seu filho mais velho quando um touro brabo disparou e tentou chifrá-lo. O cão, em sua fidelidade, atacou ferozmente e conteve o touro, mas sofreu as consequências e por muito pouco não perdeu a pata traseira ou até mesmo a vida. Nunca mais foi o mesmo.
Depois do jantar, a família da casa grande se reunia na sala e ligava o velho rádio. Era um rádio antigo, em forma de capela, onde o patrão buscava notícias sobre o que acontecia em regiões mais distantes. Mas havia algo que encantava o cão. Era uma coisa que chamavam de música, e tocava vez ou outra. O cão, quando escutava aquilo, colava o focinho ao chão e fechava os olhos, deixando-se hipnotizar. Sem saber, ele sentia saudades. Saudades de tempos passados, onde ele era forte, lépido e tinha serventia. Desde muito novo acostumou-se a ficar ali, ouvindo aquele rádio depois do jantar. Adorava aquilo e quase dormia quando isso acontecia.
Algum tempo depois, uma ferida grande apareceu na coxa esquerda do cão, exatamente onde o touro o acertara. Por mais que os filhos do patrão tentassem tratar, não tinha jeito. A ferida apurava e tomava o corpo do cachorro. Veterinário não existia por perto, e os remédios caseiros já não serviam mais. Então, o patrão decretou. Seria sacrificado.
A patroa chorou, e os peões, que testemunharam a bravura do animal contra o touro, se recusaram a fazer o determinado. Respeitavam o cão como se fosse um deles, e jamais matariam aquele animal. Os filhos do patrão imploraram ao pai que deixasse o animal tentar se curar sozinho, ou que o tempo se encarregasse daquele fatídico ato, mas ele estava irresoluto. Não arredava pé da decisão que tomara.
Frente a isso, como ninguém se propunha a sacrificar o animal, o patrão mesmo encarregou-se de tal coisa. Colocou o cachorro no carroção e foi para a mata, afastando-se de todos, pois ninguém queria presenciar a cena. Seria mais fácil dessa maneira.
Repousou o animal sob a sombra de uma árvore e engatilhou a espingarda, mirando o meio da cabeça, mas seus dedos tremeram na hora de puxar o gatilho. O cão olhava diretamente para seus olhos, e aquilo o fez parar. Não conseguiria fazer aquilo, e sentia culpa por não ter tratado dignamente daquele que colocou a própria vida em risco para salvar alguém, ou no caso, o próprio filho do patrão.
Porém, era preciso. O animal estava sofrendo, ele sabia disso. A dor da ferida devia ser insuportável, e não havia meio de fazê-la regredir. Apontou novamente a espingarda para a cabeça do cachorro e preparou-se para atirar. O cão, calmamente, levantou-se de onde estava e veio se deitar mais próximo. Olhou para o patrão com serenidade e colou o focinho ao chão, como se o velho rádio estivesse ali, tocando aquelas músicas que tanto lhe traziam saudades. Fechou os olhos e, estranhamente, soltou um grunhido. Parecia aceitar o que aquele homem estava por fazer. Era como se soubesse que seu caminho acabava ali e que a morte era sua única opção. Naquele instante, o patrão pensou ter perdido a sanidade, pois jurou que uma lágrima escorrera dos olhos do animal. E o patrão chorou também.
Na fazenda, todos pararam o que faziam e esperaram. Pouco tempo depois, um tiro de espingarda ecoou pela mata, e foi acompanhado de um uivo esganiçado do cão. A passarada saiu em revoada, e aquele instante colocou lágrimas nos olhos de homens que jamais imaginaram que pudessem chorar. Estava feito.
Uma hora depois, o carroção apontou na porteira. Era o patrão voltando. Ele acenava para a patroa e para os filhos, e ao chegar mais próximo da casa, ordenou que trouxessem cobertores e água quente. Na carroça, no meio de um volume de capim verde, o cão estava estirado. Não estava morto, pelo contrário, estava bem vivo, mas com a pata traseira e a coxa completamente queimadas.
O patrão, sem conseguir sacrificar o animal, tentou um último recurso. Jogou pólvora sobre a ferida e, como não tinha como acender, atirou numa pedra para provocar faísca. Pensava, dessa maneira, esterilizar ou limpar de vez a ferida, porém acabou deixando tudo em carne viva. O cão uivava de dor, mas não estava indócil. Os peões pegaram o cão e carregaram-no para o estábulo, fazendo o que estava ao alcance deles. Afrente, o filho mais velho do patrão comandava tudo, e mais atrás, vinha o patrão, deixando a mostra a camisa encoberta pelo sangue do cachorro.
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rádio capela - by Google |
Hoje, quem chega na fazenda, é recebido pelos cães numa algazarra tremenda. O velho cão não está mais lá, deitado na porta da cozinha, mas ainda está presente na memória de todos e num retrato num canto da sala. Nesse retrato, ele aparece deitado aos pés do patrão, que depois de tudo, tratou dele por mais cinco anos. O cão perdeu a pata traseira e parte da coxa, mas valente como era, resistiu e ganhou ainda mais o respeito daquele homem rústico e que não gostava de demonstrar sentimentos.
Perto da porteira, uma árvore enorme faz sombra para um cercado pequeno de madeira. Lá, descansa o cão em seu último refúgio. Ao lado, um presente do patrão. O velho rádio capela, que tocava as músicas que o cão tanto gostava.
Marcio JR