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A pressa, muitas vezes, é inimiga de todos os atos, e quando aliada aos maus costumes, é ainda pior. Naquele prédio, chamado Reino da Dinamarca, parecia que todos tinham o péssimo hábito de apertar os dois botões de espera do elevador, independente para onde fossem. Quando a porta do elevador abria, pouco importava seu trajeto, e todos se enfiavam para dentro. O resultado era mais demora, e muita reclamação quando alguém entrava e constatava o trajeto contrário daquele que era pretendido. Porém, todos os moradores ostentavam certo status, nem sempre verdadeiro, mas ostentavam. E assim, fingiam que nada viam e viviam, alimentando-se meramente de aparências.
Certa feita, o elevador parara no 15º andar e, como sempre, sacolejou um pouco. Ninguém deu atenção, e mais alguém entrou. Estavam, àquela altura, em 5 no mesmo ambiente, e todos faziam aquele semblante de quem olha uma paisagem, ou seja, miravam a tudo e fingiam não enxergar nada, apenas deixando o olhar se perder pelo horizonte. Na descida, outro sacolejo, e dona Emma, senhora de seus bem vividos 85 anos, suspirou.
--Só falta enguiçar! --ela comentou, como se antevisse o feito.
Cinco segundos depois, um sacolejo maior e, bruscamente, o elevador parou. Dona Camélia, vizinha de dona Emma, blasfemou imediatamente.
--Pago esse condomínio para compartilhar espaços com essas bocas de sapo. --fazendo clara referência à dona Emma em seu presságio.
--Gente, não vamos brigar! Já, já tudo volta ao normal. --Guilherme, um janota de brechó e com sorriso amarelado, emendou rapidamente. --Este elevador é seguro. Eu garanto.
Antes, nada tivesse dito. Bastou a frase ser proferida, e as lâmpadas se apagaram.
--Meu Jesus! Hecatombe!
--Quem falou essa asneira? --Dona Emma perguntou, como se sentisse indignação pela ignorância que ouvira.
--Foi a Jandira! --a resposta, em voz masculina, veio do fundo do elevador. --Ela só sabe falar do “fim do mundo Maia”!
--Tinha que ser essa oxigenada! --Dona Camélia completou, em tom zombeteiro. --E você deve ser o traste do marido dela, que só sabe pagar as contas dessa perua descabida e mal vestida! Tá aí, com esse micro-vestido e acha que está trajada. Despudorada.
--Mais educação, gente! Se não podemos conviver harmoniosamente lá fora, ao menos aqui vamos manter o respeito até que alguém venha em socorro. --tornou o janota, querendo amainar os ânimos.
--Eca! Que cheiro é esse? --Jandira perguntou e segurou no braço daquele que ela pensava ser o marido. --To com medo, morzim. Não gostei do barulho deste cheiro.
--Jandira! Cheiro não faz barulho! E seu marido está para o outro lado. Eu sou o Guilherme. Mas, que este cheiro está horrível, isso está! Que foi isso, afinal?
--Foi essa desenxabida da Camélia. Deve ter almoçado batata-doce e soltou um pum! --Dona Emma emendou rapidamente, num tom maldoso.
--Não solto pum. Sou chique. Eu flatulei.
Novo ruído, agora estridente, tomou o ambiente, e foi seguido de outro sacolejo, o que ouriçou ainda mais aos pobres náufragos do elevador. Repentinamente, todos ficaram em silêncio, e um silvo recortado e repetido se fez ouvir.
--Ecaaa. E agora? Esse maldito cheiro de novo, e fez barulho, seu Guilherme. Viu como cheiro faz barulho? --Jandira comentou, quase berrando aos ouvidos do homem que estava ao seu lado.
--Jandira, meu amor. O Guilherme está do outro lado. Eu sou o seu marido. Não precisa gritar, pois está escuro, e isso não diminui minha capacidade auditiva. Mas, honestamente, você está com a razão. Dona Camélia, por favor!
--Não foi ela, fui eu! --Dona Emma respondeu, tomando as dores da outra senhora. --To nervosa, e quando to assim, meus intestinos entram em pânico. E qual é o problema? Vou fazer de conta que o senhor nunca peidou pela vida afora.
--Aaaiiii! Quem me bateu? --o janota berrou, nitidamente descontente e irritado.
--Fui eu, seu tarado! --Dona Camélia também berrou. --Que história é essa de apalpar meus seios?
--Não apalpei seio nenhum! Só queria apertar os botões do painel, sua maluca! E me bateu com o que, afinal? Com um cacetête?
--Não. Com meu bastão retrátil de metal, de 60 centímetros de haste. Mas para tarados, tenho outra coisinha aqui. Quer ver?
Uma faísca azul iluminou todo o ambiente, e veio acompanhada de um barulho esquisito, imitando uma descarga elétrica. A gritaria foi geral, e quando a luz azul cessou, o que se escutou foi o estatelar de alguém ao chão.
--Gostou do meu choque elétrico, seu mauricinho de quinta categoria?
--Dona Caméliaaaa! Foi o meu marido que a senhora estrebuchou. Ele enfarlicou, e nem um suspiro o tadinho soltou. A senhora matou ele! --Jandira reclamou, meio soluçante.
--Errei? Não tem problema. Tem mais um pouco de carga. Vem cá, seu traste, que vou te mostrar a não abusar mais de velhinhas indefesas! Cadê você?
O ambiente iluminou-se novamente num tom azulado, mas desta vez, ninguém gritou.
--Errou novamente, sua maluca! --o janota respondeu, em tom zombeteiro.
--Mas acertei alguém! Quem foi? --Dona Camélia mostrou-se reticente.
--Ah! Não! Quem soltou esse pum agora? --Jandira perguntou, recuperando-se do susto anterior.
--Acertei a Emma! E meu Deus! Que cheiro de peixe podre é esse? Ela peidou de novo! Tudo culpa sua, seu tarado. Vem cá, que tenho mais um presentinho pra você!
--O que a senhora vai fazer agora? Tá maluca?
Diante da dúvida sobre o que Dona Camélia faria, o janota tentou sair para o lado e tropeçou, caindo e enroscando-se ao vestido de Jandira, que por ser pequeno e preso apenas na altura dos seios, foi basicamente arrancado do corpo da moça. Ela, agora nua e tentando se abaixar para socorrer o marido, desesperou-se ao perceber que alguém arrancara sua única peça de roupa. Sem saber o que fazer, apalpou o chão e agarrou-se à roupa de Dona Camélia, puxando com toda a força, mas voltou ao chão.
--Você está aí, seu tarado? Quer arrancar minha saia, é? Vou te mostrar a não abusar de uma donzela meio virgem! Toma! --Dona Camélia também se desesperou, sem saber ao certo o que acontecia.
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Novo barulho, agora parecendo um spray ou algo do gênero. Em instantes, o ambiente foi tomado por uma nuvem extremamente ardida aos olhos, o que fez Jandira puxar ainda mais a saia de dona Camélia para baixo, até quase tirá-la. Dona Camélia não entendeu o que estava acontecendo e desequilibrou-se, sentando-se e espirrando novamente aquele líquido. Jandira levantou e levou com ela a saia da senhora idosa, enquanto o janota protegia o rosto com o vestido da moça.
--Que inferno foi esse que você espirrou, sua velha doida? --o janota perguntou, arfante e tentando limpar o rosto.
--Spray de pimenta. E devolve minha saia, seu tarado, que eu saí desprevenida da cintura pra baixo.
--Não peguei sua saia. Tá maluca? To com um pano na mão, que nem sei o que é!
--É meu vestido, seu tarado! E me devolve, que também to sem nada por baixo. To peladinha aqui! --Jandira suplicou, tateando as pernas de dona Camélia.
O reboliço foi geral e ninguém se entendia. E também pouco notaram que, lentamente, o elevador descia até o térreo.
Lá embaixo, Emanuel, o porteiro, já esperava o elevador com as portas externas abertas, e quando ele chegou, o que se viu foi algo inusitado.
--Pela madrugada. O que é isso? --questionou o porteiro, que, de posse de seu telefone celular de última geração, filmava a tudo o que via.
No hall de entrada, várias pessoas também estavam boquiabertas. Dentro do elevador, o gás de pimenta ainda forçava seus ocupantes a manter os olhos fechados pela ardência.
Jandira estava completamente nua. O janota, com o vestido de Jandira aos olhos, dava a impressão de que cheirava o vestido da moça, e ela, com os olhos e a boca ardendo, passava a saia de dona Camélia pela boca, tentando eliminar o gás de pimenta que a incomodava. A moça, querendo se por em pé, segurava agora as pernas do janota.
Ao chão, o marido de Jandira, ainda desmaiado e estatelado, estava com a boca bem próxima à boca de dona Emma, que se mantinha deitada de barriga para baixo. O detalhe que mais chamou a atenção de todos, no entanto, foi justamente a situação de dona Camélia, que além de se encontrar nua da cintura para baixo, ainda esfregava o rosto em algum tecido para tentar, assim, limpar o gás de pimenta dos olhos. E o primeiro lugar que ela encontrou, diante de seu desespero, foi o tecido da saia que cobria as nádegas de dona Emma.
O murmúrio contagiou a todos, mas foi imediatamente contido por um barulho estranho, como um silvo que se repetia de forma entrecortada. E logo, alguém professou em alto e bom tom.
--Camélia, minha véia. Não bastasse a pouca vergonha de eu descobrir que você é sapatão, vocês ainda poluem o ambiente com esse cheiro de gambá bêbado! Ecaaaaa. Quem comeu batata-doce?
No dia seguinte, uma nota enorme no jornal chamou a atenção do porteiro do prédio.
SIM, HÁ ALGO DE PODRE NO REINO DA DINAMARCA*.
*Príncipe Hamlet, em Hamlet, de William Shakespeare.
Marcio JR