domingo, 4 de janeiro de 2015

PONTOS DE VISTA


Arquivo pessoal
Era mais uma manhã de Natal. Diante do trabalho árduo dos últimos tempos, aquele era um dos poucos momentos de sossego em meu quarto, e eu aproveitava para colocar a correspondência (eletrônica) em dia e preparar mimos para minha mulher.

O relógio marcava algo em torno das 9 horas da manhã, e como em incontáveis outras vezes, olhei pela janela para, mais uma vez, exercer um papel  “voyeristico”.  O que vi foi uma vizinha toda especial , bela e se exibindo para mim. Por vezes, seu companheiro aparecia, e então eram eles que assumiam o papel de observadores.

Ficamos assim por um bom tempo, quase numa comunicação telepática. Penso que a paixão pela observação mútua estava plantada em nós, isso frente as tantas vezes em que exercitamos essa adoração entre nós. A admiração era tanta, ao menos de minha parte, que cansei de estancar o que fazia para ficar olhando para ela ou, em algumas vezes, para o casal. No entanto, naquele dia de Natal, as divagações tomaram tanto a mim quanto a eles também. Evidentemente, não posso afirmar nada por eles, mas do jeito que me olhavam, creio que também estavam intrigados comigo.

Eu descansava, enquanto o casal trabalhava exaustivamente, como se o Natal pouco significasse para eles. Por que eles agiam assim? Seria um custo tão alto para eles se parassem e aproveitassem esse dia tão especial? E eles, dentro daquilo que a natureza ensinou, o que pensavam sobre minhas atitudes?



MEU PONTO DE VISTA

Um ano inteiro de trabalho. Fins de semana e feriados ajudaram a repor as energias, mas o Natal... ah! o Natal é o Natal, não é? Época de festa, de presentear e ser presenteado, de fazer ceia, de rever amigos, de confraternizar, badalar, descansar, começar a pensar nas resoluções para o novo ano, e gastar, gastar e gastar. Sim, claro. Afinal, trabalhamos o ano inteiro para aproveitar justamente esse finzinho de temporada. Alguns, mais precavidos, pensam num futuro mais distante, e poupam um tanto. Mas a maioria torra o que tem e, o que é pior, o que não tem, nessa época.

Arquivo pessoal
Mas, e aquele casal? Trabalhavam todos os dias da semana. Sequer viajavam ou aproveitavam para bater asas por aí, em folgas ou fins de semana. Mesquinhos? Egoístas com eles próprios? Unhas-de-fome? Quem sabe! Afinal, cada um é cada um, e sabe onde o calo aperta.

Ela é linda, altiva, forte e completamente elétrica. Quase exótica. O peito é algo que me deixa boquiaberto, tal é o porte e a beleza. E ele... me apaixonei quando vi. É o exemplo do macho que toma as rédeas do provento, e está sempre pronto para colocar a mão na massa. Ele é daqueles que olha por cima, austero, imponente. Porte físico avantajado, ágil, briguento, e se olhar torto para ele, já viu. Ela escolheu bem. E além de ser um companheiro exemplar, é um pai como poucos tiveram. Pode trabalhar o quanto for, pouco importa, ele está sempre presente.

A crença deles, pelo que imagino, está na sobrevivência. Eles são do tipo dominantes. O que é deles, é deles e pronto. Se deixar, vão expandindo seus domínios. Se apropriam mesmo. Donos de um gênio forte, se completam em força quando estão juntos. Mas não pense que ela é frágil quando está sozinha. Que nada. É uma mãe daquelas que mata primeiro e pergunta o que está acontecendo somente depois que a “vítima” parou de respirar.

E como são exibidos.

Mas, será que não vão parar sequer no Natal? Vão trabalhar até nesse dia tão festivo? Isso chegou a me lembrar da fábula da Formiga e da Cigarra. Enquanto a formiga trabalhava sem parar, a cigarra cantava. Ficou provado que a cigarra teve um fim de vida mais triste, enquanto a formiga teve um inverno mais ameno, com mais alimento e chances de sobreviver a ele, mas, lá na frente, ambos morreram com o passar do tempo. Morreram sim, mas a cigarra se divertiu mais.

Puxa vida. Que saco de existência esses meus vizinhos estão ensinando para os filhos.



PONTO DE VISTA DELES

Piu. Piu. Piu.




RESUMO DA ÓPERA

Enquanto eu divagava, meus “vizinhos” sobreviviam. Faziam aquilo que a natureza ensinou a eles. E se eles não fizessem, ninguém faria por eles.

Pouco importa se é natal, páscoa, dia das mães ou dia do índio. A crença deles está na pureza de suas essências, na limitação de raciocínio que os impede de engenhar e construir artefatos e, claro, no instinto que os impele e os mantêm vivos.

¹
Eles trabalharam naquela manhã de Natal, assim como fizeram em cada dia de suas curtas existências. Não ganharam dinheiro pelo que fizeram, mas também não gastaram nada para ter uma bela refeição à mesa... digo, no ninho.

Eu, no entanto, gastei o que ganhei, e vou ter que trabalhar novamente para ganhar mais dinheiro e, com isso, poupar para o próximo Natal ou, o que é pior, pagar as contas que fiz para conseguir realizar meus festejos.

Eles não são reclusos de crenças ou dogmas. Se é Natal, ou se existe um Criador, para eles pouco importa. Estão aqui para cumprir um papel, que é o de manter viva a própria espécie. E confesso que isso me causou uma pontinha de inveja.

Ainda estão lá. Da minha janela, vejo o Sabiá macho pulando de um lado para o outro, enquanto a Sabiá fêmea se vira para picotar uma minhoca. O festerê involuntário, ao que parece, vai ser bom e com mesa farta. Até pensei em colocar algumas coisas para eles, como ração ou, quem sabe, até algumas minhocas, e assim, dar meu presente a eles, mas fiquei quieto, só observando.

Deixa eles. Afinal, eles trabalharam tanto, e merecem a tranquilidade desse dia de Natal, mesmo que eles sequer saibam que isso existe.

Eu? Vou ficar por aqui, como um voyeur, olhando e admirando o casal de Sabiás que tanto adoro. De tantos amigos que tenho, esses dois são os que mais têm meu respeito e admiração.



Marcio Rutes



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¹ Imagem pertencente a Rubens Craveiro.